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Para onde caminha nossa democracia?

Entrevista a John Doe*
Para matéria em revista anônima*


Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Aposentado do Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
Fevereiro de 2023

 


Entrevistador (AC): 1- Na sua avaliação, quando a discussão sobre a confiabilidade das urnas deixou de ser técnica para se transformar em política? Pela minha pesquisa, isso se deu em 2014, com o resultado das eleições. É isso?

Pedro Rezende: Esta sua pergunta é bem interessante, também pela forma com que é posta. Nessa forma ela sugere, ou insinua como tese, que a confiabilidade de um sistema de votação, em evolução pelas possíveis inovações tecnológicas aplicáveis ao respectivo processo eleitoral, deve ser entendida e discutida a partir das características técnicas dessas inovações, e não de como as inovações podem afetar características transcendentes a esse processo, as que são conceitualmente fundamentais para se constituir uma democracia.

Acompanhando essa discussão, como especialista em segurança computacional e cidadão, estive por muito tempo intrigado com uma questão que, nesse contexto, se impõe como antecedente a essa tese: Por que a autoridade responsável pelo nosso processo eleitoral insiste em enquadrar tal discussão somente em referência a características técnicas que ela nos impõe como desejáveis para tal evolução? E insiste de forma simplista e dogmática, até mesmo em instâncias normativas, em disputas legislativas ou judicativas?

Isso até 2012, quando fui convidado a palestrar em mais uma conferência internacional sobre votação eletrônica. Para apresentar uma contribuição científica original, escolhi me aprofundar nessa questão. Precisava entender como esse intrigante contexto poderia estar sendo direcionado. Pus-me então a analisar os caminhos que esta mesma "dialética evolutiva" ia trilhando, em países onde eu via o regime político sendo afetado por ela. E consegui organizá-los num referencial hermenêutico, para classificar os possíveis objetivos reais ou finais na informatização de processos eleitorais. O que nos permitiu entender melhor a questão.

Voltando então à sua pergunta, a confiabilidade do sistema de votação que usamos não passou a ser discutida pelo aspecto político, em vez do aspecto técnico, de repente. Essa "inversão" no espaço público foi gradual, e à revelia da inabalável resistência da instituição que se vê dona do sistema. Que seja. Talvez em geral, para leigos digitais, desinformados e despolitizados, e para velhas mídias corporativas, a eleição de 2014 tenha sido um marco dessa transformação; Mas não para os mais engajados, como nós do CMInd, pois vínhamos tentando contornar essa resistência desde 2010, pelo menos. E daí, gradualmente.


AC: 2- O então deputado Jair Bolsonaro, ou alguém de seu gabinete, chegou a procurá-lo para entender melhor sobre questão da transparência das urnas quando ele propôs uma emenda sobre o tema à PEC da reforma política, nos idos de 2015?

PR: Parte da resposta será sim, se a pergunta for sobre a transparência do processo eleitoral, já que as urnas em si, de arquitetura DRE, são sempre opacas em uso. Para a parte do "como", que teria sido indireta, consideremos um caso que talvez tenha inspirado a forma de sua pergunta: Muito se discute sobre a importância de se "abrir o código-fonte do software", para a transparência atingir um nível aceitável. O debate é focado em como abrir esse código -- "da" ou "na" urna? -- sem comprometer a segurança do processo. Nele há um impasse, inevitável e inerente à arquitetura DRE, na qual o aceitável para a dona do sistema é inócuo para um especialista isento.

Esse impasse é sistêmico, e persiste desde os primórdios da informatização com sistemas desse tipo, o do TSE desde 2002. É por isso que outros pioneiros nessa modernização, via arquitetura DRE, passaram a investir na evolução técnico-jurídica da arquitetura de seus sistemas, optando por torná-las mais conservadoras quanto à desmaterialização de registros no respectivo processo. E então, por volta de 2004, surge a alternativa VVPAT. Em 2010, a convite de editores da série de resenhas científicas State-of-the-Art-Survey, da editora Springer-Verlag, contribuí com uma análise desse impasse, seus contornos e desdobramentos, no livro Towards Trustworty Elections.

Entrementes, a dona do nosso sistema havia logo percebido uma utilidade para esse impasse, na estratégia evolutiva que escolheu: Fixando-o em suas táticas de propaganda e doutrina, para manter a respectiva discussão focada só em aspectos técnicos, nunca políticos, de suas ações e decisões. A exemplo daquela de convidar, em 2022, as Forças Armadas para "participar da auditoria" (do/no?) seu sistema. Doutro lado, uma classificação técnico-histórica para possíveis estratégias evolutivas foi a base para o CMInd contornar essas táticas, bem como para o referencial hermenêutico que depois apresentei, em 2012, numa conferência internacional.

Essa classificação de estratégias foi formulada ainda em 2010. Estimulado por um dos editores da Springer-Verlag, famoso criptógrafo e autor de arquiteturas realmente revolucionárias para sistemas de votação, em visita a Brasília ele me opinou em privado que o CMInd lhe parecia, digamos assim, empacado ante aquelas táticas. Pus-me então a pensar numa forma de ultrapassá-las, deixando-as na defensiva ante o fetiche modernizante. Uma ideia simples de marquetagem, inaugurada pela competitiva indústria de telefonia móvel, me pareceu também útil como base para isso: classificar as fases evolutivas das pertinentes tecnologias digitais, em gerações.

Apresentei então minha classificação, lastreada em literatura técnica sobre sistemas eletrônicos de votação pioneiros, numa audiência pública sobre novas normas, realizada no TSE. Observando ali, e depois na velha mídia, reações de seus apaniguados, percebi que essa ideia para tal ultrapassagem poderia dar certo, inclusive para um eventual "despertar das massas". E então aconteceu, que um parlamentar federal, aliado de Bolsonaro, procurou a advogada do CMInd em 2015 com um pedido de justificativa técnico-jurídica para uma CPI sobre nosso sistema de votação. Publicamo-la em abril de 2016, mas após a eleição de 2018 não se falou mais nessa CPI.


AC: 3- O senhor acompanha os artigos do senhor Carlos Rocha, da empresa Samurai, que recentemente produziu um relatório apontando problemas em quase metade das urnas do país? O senhor teria alguma avaliação ou análise do trabalho do senhor Rocha sobre esse tema?

PR: Manifestações públicas do CMInd, que é um Comitê Multidisciplinar Independente, e minhas como membro ativo dele, após dramáticos eventos nos bastidores da eleição de 2014, citados na aludida publicação em apoio a CPI, e os de 2018, com indícios de prevaricação no mais alto escalão, vêm se pautando em antes evitar possíveis armadilhas nesse espaço cada vez mais perigoso. Sabemos que o citado engenheiro teve, ou mantém, relações negociais com a dona dessas urnas, tendo chefiado o projeto vencedor da primeira e tortuosa licitação delas, em 1996. Pelo critério da independência, evitamos, quando convém, comentar trabalhos que possam não se pautar pelo mesmo critério.


AC: 4- O senhor acompanhou o relatório apresentado pelo PL pedindo a anulação dos votos em 280 mil urnas, por erros? O relatório foi produzido pelo senhor Rocha. O senhor concorda com essa análise?

PR: Entendo que, neste caso, o PL se valeu da notória competência técnica do engenheiro Carlos Rocha, aludida na resposta anterior, para apresentar sua demanda, nos limites do que consideraram cabível pela letra do ordenamento jurídico vigente, e sustentável técnica e politicamente. Quanto à minha competência para analisar, no que dela entendo ser aqui pertinente, está mais em outro plano, ainda mais abstrato: na semiologia das interações entre filosofia política ou do Direito e tecnologias digitais. No plano semiológico, minha análise do caso não contempla concordar ou discordar de escolhas, opiniões ou decisões específicas trazidas à baila por protagonistas.

Minha análise contempla, outrossim, acompanhar o caso para avaliar se ele corrobora, se refuta ou se é indiferente à minha hipótese sobre onde nossa pretensa democracia se situa, e como caminha, no referencial hermenêutico que expus academicamente para isso a partir de 2012. Em breves palavras, esse referencial descreve as três direções possíveis que um projeto de informatização de processos eleitorais pode almejar ou seguir, no que concerne a seus objetivos reais ou finais. Simplificadamente, as seguintes:
  1. Tecnologia eleitoral como fim em si mesmo (Tecnologia-fim): Administrador dos processos eleitorais dirige reforma normativa cujos efeitos lhe concentram mais poder político, em detrimento dos demais.
  2. Tecnologia eleitoral como meio para um fim (Tecnologia-meio): Legislador exerce autonomia para reforma normativa de cunho eleitoral cujos efeitos afetam a partição de poderes no regime político.
  3. Tecnologia eleitoral como cavalo-de-batalha (Tecnologia-eixo): Poderes num regime político com três ou mais partições disputam hegemonia para dirigir reforma normativa sobre processos eleitorais.
No ensaio "Holismo e Reducionismo para Classificar Problemas com Sistemas de Votação" (já linkado ao final da segunda resposta), onde analiso reações de apaniguados ante a classificação em gerações apresentada dois anos antes no TSE, pude fazer minha primeira aplicação deste referencial. Pois as atividades do CMInd já haviam pontuado, no plano semiológico, eventos suficientes para podermos observar uma trajetória, percorrida pela experiência brasileira com seu projeto e sistema eletrônico de votação até então; precisamente, entre 1995 e setembro de 2012.

Nesse percurso, o caminho evolutivo do respectivo regime normativo compeliu cinco alternâncias para a arquitetura do nosso sistema de votação: ora para VVPAT (2ª geração), por iniciativa do Poder Legislativo, ora de volta à DRE (1ª geração), por pressão ou decisão do Poder Judiciário, cuja instância suprema abriga, numa espécie de apêndice, a própria dona do sistema. Isto mostra tal trajetória percorrendo a 3ª direção nesse referencial -- Tecnologia eleitoral como cavalo-de-batalha, ali representada pela sequência de Leis n° 9.504/1997, n° 10.402/2002, n° 10.740/2003, n° 12.034/2009, e pela ADIn n° 4543, esta com decisão liminar em outubro de 2011.

E agora, com a liminar da ADIn 4543 afirmada pelo pleno em 2013, e mais três alternâncias para a dita arquitetura -- Lei 13.165/2015, ADIn 5889 (2020) e PEC 135 --, compelidas ou quase por eventos cada vez mais dramáticos, podemos atualizar aquela primeira análise, e avaliar como nossa democracia tem caminhado por esse referencial: Atualmente, guinada para a 1ª direção. Veja que a primeira de suas perguntas aqui já identifica o "evento da guinada", e pede confirmação: foi em torno da eleição de 2014? Confirmado: quando o polo político que pautava a confiabilidade do sistema se inverte, e a base desse polo é despertada para a real natureza do impasse em pauta: antes institucional e política do que técnica.

Consequentemente, para não perder o controle de enquadramentos da discussão pautada, a dona do sistema "dobra suas fichas" na disputa por hegemonia normativa, a caminho da eleição de 2022, e além: Passa a radicalizar suas táticas de propaganda e doutrina, agora turbinadas por excessos judicialescos com efeitos de intimidação, censura, encarceramento ou falência, abusando da sua privilegiada posição, absolutista, na partição de poderes herdada da Constituição de 1934. Como no caso em tela. Com o condão de também se alinhar com a agenda globalista, e de radicalizar a polarização ideológica na cena política, corroborando previsões inferidas na minha primeira análise referenciada, publicada há 11 anos.


AC: 5- O senhor gostaria de acrescentar algo, para encerrar esta entrevista?

PR: A Constituição de 1934 foi a terceira das sete que já tivemos desde nossa suposta independência. A atual, com apenas 34 anos teve a sua 135ª tentativa de emenda recentemente bloqueada, no decurso da dita guinada hermenêutica rumo a uma juristocracia. O acesso público aos originais das sete também foi bloqueado, noutro evento não menos dramático em 2003, talvez para despistar uma admitida fraude nessa mesma sétima. Em contraste, na "História da Constituição Americana" escrita por Charles Mee Jr., em tradução de 1993 encontramos a seguinte passagem:
    "Em maio de 1787, algumas dezenas de delegados -- todos homens, todos brancos, todos membros de boa reputação da instituição política americana, todos homens de posse -- donos de escravos e plantações, fazendeiros, negociantes, advogados, banqueiros e armadores - reuniram-se em Assembleia Legislativa, na Filadélfia, onde, nos meses subsequentes, redigiram a Constituição dos Estados Unidos"... "Ao término da Convenção, nenhum dos delegados -- nem um sequer -- estava inteiramente satisfeito com a constituição que haviam elaborado. Alguns recusaram-se firmemente a assiná-la, e os que a assinaram fizeram-no com graus variáveis de relutância, desalento, angústia e desagrado"
O que nos leva a refletir: Primeiro, por que a Constituição dos EUA, que desagradou os autores, perdura até hoje, com apenas 27 emendas em mais de dois séculos? E segundo, por que tanto contraste, entre aquela experiência constitutiva e a nossa? Na opinião de um membro do Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra (ESG) com quem compartilho um grupo no Telegram, quanto à primeira questão, porque os constituintes na Filadélfia, ao forjarem o país que representavam, optaram por um direcionamento plutocrático.

A plutocracia tem sido a realidade do regime político estadunidense, independente de quem o governe, desde que se siga as decisões dos homens de posse que se arvoram donos da nação, desde 1787. Assim foi construído um país para as finanças, para o dinheiro, e não para as pessoas, seus habitantes. Quanto ao contraste, começamos observando como Joe Biden agiu recentemente ante a prestação de contas do presidente Lula: como nos encontros entre seus antecessores -- cobrando alinhamento ideológico, agora acrescido de parcelas pelo apoio à "mudança de endereço" do ex-presidiário. Junte-se a isto o enquadramento geopolítico das condições que nos levaram a fazer e refazer constituições, resta indagar sobre os sentidos de independência e soberania.

Tanto para as nações em nosso continente, constituídas evemtualmente como repúblicas, quanto para a democracia em forma representativa, como ressurgida do iluminismo, as revoluções que as viabilizaram foram alavancadas por uma inovação tecnológica nos meios de comunicação e expressão: a imprensa de tipo móvel. Esta inovação foi condicionante para um novo tipo de moeda corrente, o da cédula de papel-moeda, e para a representação de sufrágios eleitorais, a cédula de votação. Para cujo êxito foi essencial a aplicação criteriosa de novas práticas que caracterizassem novos modos de expressão ou supressão da privacidade, do anonimato, da liberdade, da integridade e outros conceitos de matiz ou de origem semiológica.

No ensaio "Sobre Privacidade, Anonimato e Vigilantismo com a Internet", publicado no n° 260 da série "IDU Ideias" do Instituto Humanitas Unisinos (2016), analiso a evolução desses conceitos no contexto "revolucionante" para novas formas de organização social e de governança, fecundado pelo advento e universalização da inovação seguinte: a das tecnologias digitais (TIC). Esta fecundação já se faz nítida no espaço público, a exemplo de um comentário pertinente em entrevista da ex-procuradora e deputada autora da PEC 135, de que a palavra mais prostituída hoje em dia é "democracia". Rumo à agenda 2030, à aventura transumanista e além. Pretendo então encerrar esta entrevista refletindo sobre o título sugerido.

O conceito iluminista de democracia foi capturado e virtualizado por agências do globalismo, que usam o nome como meme oco para carga útil à engenharia do consentimento -- no sentido de Bernays. A eficácia dessa operação de PNL é melhor entendida com a definição de Gilles Deleuze para o virtual: Não é o oposto de real, nem sinônimo de irreal; mas a indistinguibilidade entre o real e o irreal. Daí ao sobrenatural, estamos a um passo. Com o espectro político-econômico assim desarranjado, em meio a iniciativas paralelas noutros teatros de uma guerra geral de amplo espectro, com as bases funcionais para o poder armado de um governo global, inicialmente subterrâneo mas totalitário, emergindo desse quadro evolutivo, ansiamos por esperança.

Mas a inclinação natural do Estado à tirania, agora alavancada pelas TIC, parecem negá-la, apontando para uma trajetória humanamente sinistra. A riqueza virtual nela acumulada irá secar no deserto da escassez material que as próprias táticas de desarranjo do status quo induzirão. Somos seres com vida no espírito, em busca íntima de sobrevida. E a Bíblia não fala de democracia. Contudo, fala de tiranias, enumera os dias das derradeiras -- 7 anos, e traz recado para as judiciárias -- Em Isaías 10:1,4: Mas sobretudo a Bíblia também traz promessas: Se entregarmos nosso coração e mente à promessa de vida eterna pelo Caminho do Filho Redentor, o Cristo, enquanto a esperança neste mundo nos trai, recebemos esta no espírito. Até o fim da linha, e além. Maranata!



Autor

Pedro Antonio Dourado de Rezende é professor aposentado do Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Brasília. Advanced to Candidacy a PhD pela Universidade da California em Berkeley. Membro do Conselho do Instituto Brasileiro de Política e Direito de Informática, ex-membro do Conselho da Fundação Software Livre America Latina, e do Comitê Gestor da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-BR) entre junho de 2003 e fevereiro de 2006, como representante da Sociedade Civil. http://www.pedro.jmrezende.com.br/sd.php

Direitos do Autor

*- entrevistador anonimizado por exigência do próprio
Pedro A D Rezende, 2023: Este artigo é publicado no portal do autor sob a licença disponível em http://creativecommons.org/licenses/by-nc/2.5/br/