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Sobre Possíveis Tutelas Jurídicas de "Dados"


Pedro A. D. Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
  14 de Janeiro de 2013


A tentativa de se introduzir tutela jurídica sobre "dado", como se "dado" fosse um bem simbólico apropriável (como por exemplo, uma "marca" no direito marcário, ou uma "criação do espírito" no direito autoral), como na sorrateira trajetória parlamentar do AI5 Digital, é uma extensão tão abusiva de qualquer ramo semelhante no Direito que, não importa de onde venha, trará consequências práticas para a Computação e a Informática -- no que tange à teoria da prova no Direito -- capazes de humilhar a criatividade de um Lewis Carroll nas suas mais pueris fabulações.

Pois "Dado" é algo que só existe em função de algum código ou linguagem; e serve tão somente para codificar informação, em função de algum contexto cognitivo. Isto quer dizer um contexto no qual sinais podem transmiti-los, através de um canal no tempo ou no espaço, entre uma fonte e um destino tais que ao menos um deles seja cognitivamente capacitado; aquele que tiver seu estado de conhecimento modificado em função da informação assim transferida.

Assim reza a teoria matemática da Informação, proposta inicialmente por Shannon, que nos deu como seu mais apreciado fruto a própria informática. Se assim as tomarmos, constatamos que estas funções são impossíveis de serem abarcadas pelo conceito jurídico de propriedade sem prejuízo da consistência lógica de sua aplicação prática em qualquer ordenamento jurídico minimamente coerente.

As inconsistências brotam do fato de que, na prática, um mesmo dado ou informação pode estar em muitos lugares, ao mesmo tempo, sem nenhuma relação gerativa entre suas ocorrências ou instâncias. O filtro dogmático que pretende justificar a tutela jurídica de "dado" ou "informação" é tecido pela implícita presunção da existência de alguma relação gerativa entre essas ocorrências ou instâncias; mas o que vale para obra autoral, não vale necessariamente para "dado".

Vejamos um exemplo que expõe a falácia dessa presunção: Se há no mundo 1 bilhão de internautas que precisam criar senhas, e 90% deles as criam com menos de nove carcteres imprimíveis num teclado ASCII, então, por um argumento de contagem, haverão pessoas com senhas, digamos, idênticas. Quem teria "roubado" a senha de quem? A quem caberia, num tal regime de tutela, provar o "roubo" ou o "não-roubo" de tal senha?

Ou, noutro cenário mais interessante. A quem seria atribuída a propriedade do dado "3.14159...", que representa, no sistema numérico posicional decimal, a constante geométrica de nome "pi"? Se ele for declarado público, estaria eu proibido de "apropriar-me" dele, em meus cálculos? Ou teria que pedir permissão? E a propriedade da tabuada de multiplicar nesse sistema numérico, que já está em minha mente? E a do léxico de um idioma? Quem controlaria, e como, a titularidade -- pública ou privada que seja -- desses dados?

Na prática, tal presunção só pode ser útil para banalizar critérios de eficácia probante referentes a fatos tipificáveis como novos atos ilegais: provar-se-á com mais chance de sucesso e menor custo econômico, porém com bem menos acurácia (basta mostrar "posse" dos dados). Provar-se-á crimes praticáveis com cópia ilegal de bits, já cobertos por leis vigentes no caso de marcas e obras autorais (embora com custo elevado em meio digital para os padrões tradicionais de acurácia), mas a um custo social que nos parece inaceitável. Qual seja, o de delegar a definição de ilícitos penais a donos ou controladores de canais digitais e sistemas informáticos numa sociedade que deles depende cada vez mais como infraestrutura.

Este é um cenário posto para o reinado das ficções Kafkieska e Orwelliana. Reinado do que podemos chamar de "dogma dado-coisa", crença que vê tal presunção como fato óbvio, trivial ou irrelevante, e por isso implicitamente aceitável em norma jurídica. Doutro lado, podemos contemplar a crença que vê este dogma como canal para o duplipensar (doublethinking, de Orwell  em "1984") na lide jurídica.

Assim, quando o espaço para o debate legislativo, sobre a proposta Azeredo ou qualquer outra, se mostra pré-viciado pelo dogma dado-coisa, ou fechado para o tipo de discussão que o título desta artigo propicia, a interpretação que me cabe fazer é a de que o interesse motivador por trás da propagação desse dogma é compatível com o interesse de se controlar o custo da eficácia probante de tipos penais ainda inexistentes, à guisa de um tema geral supostamente premente ("crimes informáticos") mas à revelia de seu custo social.

No que se refere ao comentário de Nelson Hungria ao Código Penal em que ele fala das "energias cinéticas" como passíveis de furto, roubo etc, podemos considerar o seguinte neste contexto.

Se abordarmos os possíveis desdobramentos desse tipo de comentário jurídico com ajuda da teoria de Shannon, e sob a perspectiva semiológica de Charles Peirce, limites e distinções se tornam claros: Energias cinéticas são ou produzem sinais, e não simbolos. A energia elétrica numa antena ou no fio de uma conexão de internet forma sinais que codificam bits (que por sua vez codificam letras, instruções de programas, pixels, etc). Assim como a tinta de uma caneta vertida ao papel forma sinais que codificam letras (ou algarismos, etc).

Sinais codificam símbolos em face de algum código, e portanto, não tem valor simbólico algum sem esses (códigos). Ruido no fio da rede é como rabisco no papel. Dados são sequêcias de símbolos, codificados em sinais nalgum código, para representar informações em algum contexto cognitivo associado à sua transmissão. Dados, se não estiverem no espaço cognitivo de um receptor ou transmissor dos sinais que o codificam, não representam valor informativo algum. Tal valor, portanto, advém do contexto cognitivo onde dados representam -- ou possam representar -- informações para alguém; não advém de si mesmos.

Assim, "roubo" de energia elétrica, através de "gatos" no poste, não tem analogia útil alguma (do ponto de vista semiológico) com vazamento de senha ou de outros dados "pessoais" (contexto!), e sim, com roubo de caneta bic ou de banda passante (capacidade de transmissão) no roteador do seu provedor de acesso  à Internet (em ataques do tipo DoS). Doutro lado, um colega observou que o ente "sinal" ainda pode ter um valor (não necessariamente pecuniário) quando vinculado ao símbolo (que lhe dá significado). Pode também ter, adicional ou alternativamente -- conforme o caso - um valor pelo potencial energético que representam (a cinética, mencionada por Nelson Hungria, como no dispositivo KERS usado em carros da Formula1, por exemplo).




Autor


Pedro Antonio Dourado de Rezende rofessor concursado no Departamento de Ciência da Com­putação da Universidade de Brasília. Advanced to Candidacy a PhD pela Universidade da Cali­fornia em Berkeley. Membro do Conselho do Ins­tituto Brasileiro de Política e Direito de In­formática, ex-membro do Conselho da Fundação Softwa­re Li­vre América Latina, e do Comitê Gestor da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-BR), en­tre junho de 2003 e fevereiro de 2006, como representante da Sociedade Civil. http://www.­pedro.jmrezende.com.br/sd.php


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Pedro A D Rezende, 2013:  Este artigo é publicado no portal do autor sob a licença disponível em http://creativecommons.org/licenses/by-nc/2.5/br/