Para que servem mesmo as patentes de software?
Baseado no prefácio ŕ coletânea de estudos sobre o tema:
Do Regime de Propriedade Intelectual - Estudos antropológicos
Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
19 de Maio de 2009[em pdf]
Noção jurídica
A patenteabilidade de idéias implementáveis por computador, em softwares que não cabem em si, não surge naturalmente, de uma hermenêutica pacífica do ordenamento vigente. Ela surge de um processo que inclui elaboradas estratégias de ofuscamento, particularmente de interesses e seus entrechoques, por uma agenda de extensões da noção jurídica de propriedade, a incidir sobre conceitos ou bens imateriais.
No desenvolvimento das sociedades pós-industriais, os processos normativos que delimitam as esferas de leis jurídicas, de normas administrativas e de costumes culturais vêm sendo pressionados a co-ordenar uma contínua expansão dessas extensões, e uma crescente radicalização das respectivas medidas punitivas. Esta pressão confronta, de um lado, interesses cuja priorização conduz a sociedade pelo caminho dessas expansões radicais, e de outro, interesses que se acautelam desse caminho.
Em processos normativos, os interesses cumprem seus papéis. Os primeiros, então, se incumbem da argumentação, pretensamente racional se o o debate é público, pela necessidade de trilhar tal caminho normativo. E os segundos, que com os primeiros se estranham, de questionar tal racionalidade e expor consequências, vislumbradas nesse trilhar como socialmente nefastas. A dividi-los, visões ideológicas que mapeiam de formas distintas os valores afetados, com diferenças que nos motivam a começar por ideologia.
O que é a ideologia?
O conceito atual de Estado democrático vem do período Iluminista, que forjou na palavra “ideologia” seu sentido primevo. O de uma constelação de idéias desfocadas da realidade, induzidas por interesses dogmáticos ou patológicos. Uma estratégia de risco para a legitimação de poder, pejorativa para o poder que prevalece. Depois, com a semiologia, Roland Barthes deu-lhe o sentido de naturalização da ordem simbólica. Retórica da realidade auto-evidente, dos fatos que “falam por si”, em argumentos de autoridade. Por último, no pós-estruturalismo, que privilegia a filosofia da linguagem, Karl Korsch dá-lhe a forma de sinédoque. Figura de estilo na qual se toma a parte pelo todo.
A sinédoque em foco é aquela que a ideologia prevalecente, no capitalismo tardio, escolheu para calçar sua opção por tal trilha normativa, sob o estribado olhar enviesado do positivismo jurídico. Rumo às últimas fronteiras possíveis à mercancia. É aquela figura de linguagem que sinaliza essa trilha com marcos atraentes mas ofuscantes dos conflitos decorrentes da opção seguida. Tal figura se forma pela justaposição de dois sinais característicos do nosso tempo, que são antagônicos: um, o fetiche mercadista que se expressa na abstração nocional de propriedade, e outro, a valoração do conhecimento como ação de entendimento; esta, sentido primordial que perdura, desde o latim pré-cristão primitivo, no conceito de intelecto.
Essa trilha expande privilégios e radicaliza poderes individuais imanentes à noção jurídica de propriedade, mas – porque o Direito não opera no vácuo –, em detrimento de direitos coletivos inerentes à função social do intelecto. Direitos reconhecidos, por exemplo, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em o de “procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e idéias por qualquer meio de expressão.”
Cabe aqui, portanto, problematizar as fronteiras e meios capazes de obstar o exercício coletivo desse direito e de seus conexos, bem como as formas e estratégias capazes de ofuscar tal cercamento. Pois o Software Livre pode ser entendido como movimento sociotécnico que busca o exercício deste direito universal, relativo a idéias implementáveis por computador, pelo meio de expressão representado em códigos-fonte sob licenças autorais permissivas e produção colaborativa. As matrizes humanas dos programas executáveis por computador, que se agregam em software, são escritas em códigos-fonte desde os anos 60. E o primeiro grande teste deste movimento foi erguer a Internet.
Figura de linguagem
Nesta problematização devemos, primeiro, reconhecer como conveniente a qualquer ideologia prevalecente que todos se refiram a certas coisas de certa maneira. Através de figuras de estilo que a legitimem, digamos, como não-ideologia. No caso em foco, coisas referentes ao Direito, através de uma figura de linguagem que destaque, dentre as inúmeras características definidoras de conceitos imateriais tão díspares como autoria, marca, patentes e cultivares, um sinal remoto que deles emana com tal condão. A saber, o sinal de aquilo imaterial ao qual se atribui propriedade, ao qual portanto se outorgam privilégios individuais exclusivos para usufruto e gozo, ter sua utilidade ligada a alguma ação de entendimento, ou seja, ao intelecto.
Ocorre, porém, que o usufruto e o gozo de criações do espírito, de obras cuja utilidade esteja ligada ao intelecto, presumem compartilhamento, pela ação do entendimento. E que tais criações presumem prévios compartilhamentos, pois não surgem do vácuo. São re-elaborações, privilegiadas pelo gozo imaterial de usufrutos anteriores. Impor valores de troca a tais compartilhamentos, através de expansões de direitos exclusivos para usufruto e gozo dessas criações, sinaliza promessa de transformá-las em bens rentáveis, à guisa desses direitos assim as estimularem, ou da naturalização de outros; mas, a um custo social correspondente, pela exclusão imposta com a mercantilização do acesso tempestivo ao entendimento legalmente útil.
Ainda, a exclusividade eficazmente assegurável pelo Direito adiciona, ao custo social correspondente, um custo operacional proporcional à dificuldade de se distinguir as criações do espírito excluídas do livre compartilhar, ou as já incluídas em prévias apropriações. Custo que cresce não somente com as expansões de noções jurídicas do que seja imaterialmente proprietarizável, mas também com a informatização dos meios de expressão do que o seja, como ilustram o direito autoral frente à Internet, e as patentes ditas de software.
Justapostos, esses sinais formam então uma figura de linguagem que, sob a ideologia mistificadora de um mercado onipresente, e auto-regulável pela eficiência econômica, passa a insinuar promessa de ilimitada prosperidade, enquanto ofusca o custo social que lhe corresponde, na contradição performativa da justaposição mesma: propriedade exclui o compartilhar, enquanto intelecto tem que incluí-lo. Uma sinédoque que é também um oxímoro, este, figura de estilo que liga objeto e predicado com características ou qualidades contraditórias.
A coisa dita
Quando tal figura de linguagem, camuflada de graal, revela seus efeitos práticos coletivos, na forma de ineficácia jurídica, distorção econômica ou erosão do Direito, os interesses que dominaram a rodada anterior de expansões radicais se põem a promover a próxima. No discurso semi-religioso “pela harmonização” da coisa, por exemplo, articulado por interesses dominantes na OMPI e em outros santuários, marcos antes negociados como “teto”, como os do acordo TRIPS Plus na OMC, uma vez emplacados são depois promovidos a sinalizar “piso”. Agora rumo ao ACTA, novo tratado que interesses monopolistas estão a negociar em sigilo.
Assim o capitalismo tardio, na medida em que satura ou esgota seus meios de acumulação, com sua lógica pressiona suas últimas fronteiras, por mais comoditização de trocas simbólicas que ainda lhe sejam externas. Pressiona, portanto, na acepção semiológica do seu fundamentalismo, pela naturalização de uma ordem econômica cuja trilha normativa percorre este círculo vicioso. Por uma agenda de contínua expansão de privilégios e radicalização de poderes imanentes a noções sempre mais abstratas de propriedade imaterial.
Há gritante contradição entre esta agenda totalitarista, ou coisa batizada por seus adeptos de “PI forte”, e o ideal de Estado mínimo, dogma do fundamentalismo mercadista cujos frutos esses adeptos vêm colhendo. Colhendo e acumulando, com modelos negociais os quais, frente ao espectro da obsolescência, com tal coisa querem perenizar. É viciosa a circularidade em sua lógica que lhes permite argumentar, por exemplo, que a crise econômica atual advém não de desregulamentação, por eles dirigida e seletiva, mas da falta de mais dela. E que patentes abstratas, regulamentação in extremis, promovem inovação; fora desta sua agenda, diga-se.
Como é possível, então, fundamentar críticas sociais aos regimes jurídicos em foco, fincados em imbricada radicalização de tutelas com patentes, marcas, titulações autorais e da coisa toda? Se é possível fazê-lo expondo e desarticulando falácias e sofismas no discurso fundamentalista que preenche essa agenda, não nos cabe opinar. Cabe, todavia, registrar que vale tentar. Pois embora ideologias sejam sempre cegas às suas próprias limitações e contradições internas, as pessoas só serão cegas a elas, ou só se cegarão por elas, se o quiserem.
Coisas a dizer
Para encerrar, destacamos duas abordagens que, pelo ângulo da crítica social, podem ser promissoras. Uma, analisa as patentes de software como arsenal para estratégias de monopólio. O papel da escassez imaterial artificialmente produzida, como instrumento para indução e sustento de barreiras à entrada em mercados de acesso a entendimentos técnicos legalmente úteis, camufladas de incentivo coletivo. Outra, analisa a ação comunicativa, sob uma perspectiva teórica habermasiana, como condutora ao entendimento livremente útil.
Para Habermas, a modernidade tem origem numa mudança no conceito de razão: da racionalidade substancial, nas tradições religiosas ou metafísicas de ver e viver um mundo monolítico, para uma racionalidade instrumental, à qual se confiam pretensões de validade; inclusive a pretensão de se inverter fins e meios, em busca de eficiência, com a autonomização de esferas no espaço social. Esferas que passam, assim, a constituir seus próprios mundos.
Com a autonomização das esferas que constituem o mundo vivido e o sistema político-econômico, este passa a colonizar aquele, a pretexto desta ou daquela eficiência como fim em si mesmas. Dentre outras formas, com cercamentos normativos ofuscados pela autonomia conquistada a ambos. Com a agenda “da PI forte”, então, o que ainda não foi imaterialmente proprietarizado o será apesar das crescentes dificuldades de distinção, como ilustram as expansões do regime patentário a “tudo que existe sob o sol”. O Sol ilumina também as “idéias implementáveis por computador”, o que hoje quase sempre quer dizer implementáveis em software, e que nesta jurisdição quase sempre se quer dizer software descabido de si.
Há trinta anos, e mesma agenda reclamava estes gregários bens simbólicos para o regime de tutela exclusiva do direito autoral, feito incidir sobre a expressão de idéias implementáveis em software. Promovia-se assim a emancipação da indústria na área de software em relação à do hardware. E promovia-se também, com ela, a mais rápida concentração de riqueza da história do capitalismo. Esta concentração, por sua vez, eventualmente esgotou o ciclo de eficácia do correspondente regime proprietário, baseado em escassez artificial, única cola que funciona para valores de troca sobre bens simbólicos e gregários de custo marginal irrisório.
Entrementes, a progressiva abundância de criações em código fonte, abertas ao reuso com licenças autorais permissivas, veio a favorecer as eficácias técnica e sócio-econômica do modelo de desenvolvimento colaborativo, do Software Livre, e a desfavorecer as do modelo proprietário, causando a obsolescência deste e da tutela exclusivamente autoral como estratégia monopolista para a área. Por isso, a respectiva batalha técnico-evolutiva migra para o campo dos padrões digitais. Com isso, a mesma agenda passa então a recolonizar o ecossistema produtivo desses bens, sobrepondo-lhe outra tutela, a do regime patentário, pressionando este regime a incidir sobre idéias expressáveis em software, mais ou menos descabidamente.
O que não é novidade. Recolonização semelhante ocorreu outrora, por tutela sobre outra classe de idéias, frente ao avanço info-sociotécnico da época (a imprensa). Idéias das quais dadss expressões foram criminalizadas pelo regime canônico da Inquisição. Os limites da tutela jurídica sobre idéias, outrora ofuscados pela natureza do mal, agora o são pela natureza do virtual; que para Gilles Deleuze é a indistinguibilidade entre o real e o irreal. Só que agora, a custo sócio-operacional multiplicado também por irrefreada banalização dos critérios de novidade, não-obviedade e aplicabilidade industrial, camuflada em complexidade técnica.
Falha patente
No livro Patent Failure (2008), os economistas James Bessen e Michael Meurer mostram como as patentes em áreas abstratas funcionam. Elas se apresentam por fronteiras nebulosas que são custosas para entender, avaliar, evitar ou compelir. Em metade de sua história, o desenvolvimento de software inovou farta e velozmente as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) sem se valer ou precisar de patentes para inovar ou para “estimular” inovações.
Agora, com mais de vinte mil novas dessas a cada ano só nos EUA, há cada vez mais trabalho para advogados e burocratas que para programadores. Há cada vez mais futilidades e obstáculos artificiais para coagir usuários a custosas atualizações de licenças e hardware, as quais o fazem cada vez mais inquilino de seus próprios objetos. Inquilino dos objetos cuja função é mediar sua vida e sua vontade no plano virtual, vida e vontade cada vez mais para lá sugadas. Basta ver a história das moedas e da indústria financeira, ou a sua conta de celular.
Quantos reais na sua conta de telefone celular vão para royalties? a maioria por patentes sobre alguma rebimboca de uma eventual parafuseta, patentes obviamente questionáveis mas muito custosas de contestar. Algumas delas incidíveis pela tática de emboscada, pirateadas sobre padrões negociados como abertos até pelo próprio titular. Nas jurisdições onde a colonização patentária na telefonia é, digamos, competitiva, nos EUA com a tecnologia TDMA, até a inovação perdeu a dianteira, para o padrão cooperativo europeu GSM.
Depois de entretenimento (com DRM e criminalização de seu circundamento, à la DMCA) e fármacos (com patentes de utilidade usadas contra a tempestividade, e dados de testes clínicos como segredo industrial), é o interesse convergente ao monopolismo no agronegócio que passa a arremedar, com transgênicos e cultivares, o das TIC -- e vice-versa. As rodadas de expansões normativas radicais se realimentam, também, entre si horizontalmente. A contaminação transgênica do software livre e dos padres digitais abertos, com patentes ditas de software, ameaça asfixiar o modelo produtivo do primeiro, cooptando-o a um simulacro do regime proprietário, da mesma forma que as sementes naturais para plantio.
Assim, como entender as relações e os seres constituintes da coisa dita PI, conforme aspiram os que entram no jogo da ideologia prevalecente? Em particular as patentes de software, de artefatos que, devido à sua natureza semiológica e gregária, ao mesmo tempo o são em si e além de si? Tarefa de Sísifo. Um objetivo móvel e cambiante, exaltado pelo encantamento neurolinguístico numa vaga promessa de prosperidade ilimitada, garimpável em montanhas de hermético legalês. Uma cenoura pendurada numa vara chamada "Inovação", por uma cordinha chamada "Direito", virtualmente saboreável para fanáticos da Seita do Santo Byte e deglutível para vítimas da Síndrome de Estocolmo Digital. Mais fácil é entender sua real essência.
Onde estaria a saída, rumo à crítica social fecunda, disto que em essência é uma sub-colonização técnico-jurídica com traços kafkianos? Voltando ao filósofo de insuperável estatura intelectual, dentre os vivos enquanto escrevo, Habermas considera a colonização entre esferas sociais uma patologia da modernidade, decorrente da autonomização das mesmas pela racionalidade instrumental. E revisita o projeto Iluminista, em busca de estratégias para sua reintegração, num espaço social coeso. Já para os irmãos de fé, a saída está numa graciosa e monolítica maneira de ver e viver o mundo.
Bibliografia
Referências podem ser encontradas...
- sobre o conceito de ideologia, em
http://www.pedro.jmrezende.com.br/trabs/jcsbc21.htm
- sobre o conceito de ideologia aplicado à agenda da PI forte,
http://www.pedro.jmrezende.com.br/trabs/estocolmo.html
- sobre os influxos das TIC na agenda da PI forte,
http://www.pedro.jmrezende.com.br/trabs/goethe.html
Autor
Pedro Antônio Dourado de Rezende é matemático, professor de Ciência da Computação na Universidade de Brasília, Coordenador do Programa de Extensão em Criptografia e Segurança Computacional da UnB, ex-conselheiro da Fundação Software Livre America Latina e ex-representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Infra-estrutura de Chaves Públicas brasileira. (www.pedro.jmrezende.com.br/sd.htm)
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