O papel do software numa sociedade capitalista informatizada
Prof. Pedro Antônio Dourado de Rezende *
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
20 de maio de 2007
Em homenagem à terra dos meus avós maternos, Capital Nacional do Feijão, começaria por uma metáfora:
O papel do software hoje se assemelha ao das sementes nas primeiras sociedades agrícolas.
Metáfora distante, pois o modelo de sociedade do qual estamos saindo não é mais primariamente agrícola, mas industrial. Mesmo a brasileira, que na periferia do capitalismo ocupa uma posição eminentemente agrícola, tem seu esteio no agronegócio, na mecanização da lavoura e da pecuária. Então, para assim falarmos de pressupostos filosóficos do software livre, precisamos enriquecer essa metáfora. Para isso, recorro-me ao diretor e fundador do Software Freedom Law Center, Eben Moglen, em seu discruso épico na abertura da conferência Plone em 2006
Na economia do século 20, da qual estamos saindo, o bem de produção primário e fundamental para o desenvolvimento era o aço, Nela, as sociedades se mediam pelo sucesso em produzi-lo. Mas a economia do século 21 não é sustentada por aço. O aço se tornou um produto secundário para a lógica econômica atual, da mesma forma que a agricultura havia se tornado nas ondas anteriores de industrialização. A economia pós-industrial é sustentada por software.Software é elemento tão fundamental para o desenvolvimento econômico no século 21 quanto foi o aço na do século 20, e quanto foi a agricultura anteriormente à industrialização. A organização da sociedade nos países desenvolvidos mudou, e continuará mudando nos países em desenvolvimento, rumo a economias cujo produto primário fundamental é o software. Pois software é o que agrega valor de uso às Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC).
Basta ver como operam hoje as instituições financeiras, bolsas de valores e de mercadorias, bancos centrais e congêneres. Basta observar a pressão política, produzida pelos interesses representados por esses operadores, em favor de reformas normativas que consolidam novas formas de exploração do trabalho baseada na radicalização imaterial do conceito de propriedade. Basta observar as batalhas econômicas travadas em torno do controle dessas novas formas, especialmente do controle sobre esses novos meios de intermediar a comunicação e a inteligência humanas, pelo que esse controle permite concentrar, ainda mais, poderes de manipular escassez e fluxos de bens materiais e simbólicos. Esse novo tipo de bem primário traz, pela sua natureza, boas e más notícias
A boa notícia é que ninguém precisa possuir software: software é bem simbólico anti-rival, ou seja, bem cujo valor de uso aumenta com a sua abundância e disseminação, ao contrário dos bens materiais. Software pode ser produzido de forma incremental e colaborativa, sem necessidade de se reinventar a roda a cada novo "lançamento". Pode servir ao homem como extensão de sua inteligência, sem necessidade de que esteja para isso preso em gaiolas virtuais de interoperabilidade, arejadas pela cobrança de pedágios por direito de uso.
A má notícia é que essas mesmas características do software tornam os mercados de informática naturalmente monopolizantes. Capazes de transformar esse poder libertador em atraentes arapucas digitais, manipuláveis por fornecedores. Assim, os concentradores financeiros, que numa sociedade capitalista controlam indiretamente os meios de produção de bens essenciais, vêem como necessário, para a manutenção desse controle numa sociedade informatizada, extender o conceito jurídico de propriedade para tutelar o usufruto de bens simbólicos. Para que os bens simbólicos sirvam ao propósito maior de seus investimentos, que é o de concentrar mais riqueza aos investidores.
Daí a radicalização normativa que observamos, em âmbito global, com distorções mais visíveis no regime jurídico das patentes. Essa radicalização é explorada pela incerteza que surge quando se pretende erguer cercas em torno de idéias, e pela miragem que vê uma sociedade melhor onde houver maior concentração de riqueza. Essa radicalização atinge não só a produção e comércio em torno de software, que é bem dos mais puramente simbólicos, mas também outros mercados onde o saber e a técnica agregam valor, como o de sementes geneticamente modificadas, o de medicamentos, o de bens culturais. Seus efeitos práticos se concentram na geração artifical de escassez, em reação os efeitos da hiperconectividade, para que o controle dessa escassez possa concentrar mais renda.
Por outro lado observa-se, no topo desta pirâmide de valores simbólicos, que modelos colaborativos de produção, licenciamento e negócio alternativos aos ditados pela lógica monopolista, coletivamente denominados FOSS (free / open source software), já provaram sua viabilidade e eficiência -- onde houver massa crítica -- na crista da onda tecnológica, que é a informática. Da mesma forma que a agricultura tradicional, que trata o conhecimento sobre sementes como bem cultural, os modelos FOSS tratam software como verdadeiro bem simbólico, como conhecimento lógico que se expressa em linguagem de computadores; e não como bem material, como sabonete que se vende em caixinha e se desgasta com o uso.
Assim como a agricultura tradicional, o FOSS pode sustentar um ecossistema socioeconômico controlado por necessidades autônomas do homem, às quais a lógica do lucro máximo deve se subordinar. Diante da perspectiva de mudanças no topo da pirâmide de valores simbólicos, na correlação de forças entre quem detem capital e quem detem conhecimento conversíveis, respectivamente, em instrumentos de controle e de autonomia nas práticas sociais, configura-se, no centro do processo de globalização, um confronto ideológico em torno de conceitos de propriedade imaterial, na esfera dos bens simbólicos. Neste cenário a grande batalha, talvez decisiva, é por corações e mentes.
Luta-se, de um lado, para que as mentes adestradas pelo medo do desemprego, do subemprego e de crises econômicas entendam de uma determinada maneira o que é bem simbólico. Para que o entendam como produto da modernidade, que precisa da força identificadora de uma marca, e de proteção jurídica a quem a forneça, para ser aceito como legítimo intermediador de ações humanas. Intermediador, quando esse bem é software, numa sociedade cada vez mais informatizada. Bem que precisa,por exemplo, de uma marca do Estado para fazer-se cumprir deveres civis, como em eleições, pagamento de impostos, acesso à educação e aos benefícios de programas sociais. Ou que precisa de marcas de mercado para os anseios de escalada social, como em cartões bancários, de crédito, comércio eletrônico, entretenimento, treinamento ou investimento informático no que "o mercado pede". Em nome da competitividade e da eficiência econômicas.
Luta-se, de outro lado, para que as mentes encurraladas por esses mesmos medos entendam o papel dos bens simbólicos na defesa das conquistas humanistas. Para que os entendam como fruto da criatividade, que precisa da força legitimadora de um propósito, e de proteção jurídica a quem o utilize, para ser identificado como legítimo intermediador de ações humanas. Intermediador que precisa, no caso de software com a marca do Estado, oferecer proteção aos cidadãos em relação às responsabilidades civis que o mesmo intermedia. Ou que precisa, com as marcas de mercado, oferecer proteção aos usuários contra abusos de poder econômico de fornecedores, tanto mais atrativos quanto mais monopolistas estes forem, dado o baixo calibre das leis anticoncorrenciais vigentes, que não previram o efeito amplificador da natureza anti-rival de bens como o software. Em nome da liberdade humana, do equilíbrio jurídico e da autonomia da vida.
De um lado, defende-se o status quo. A continuidade da mais rápida e espetacular concentração econômica da história do capitalismo. Numa leitura marxista clássica, a crescente radicalização normativa que esta continuidade requer, e promove, seria a última etapa do processo de fetichização da mercadoria. De outro lado, tenta-se resgatar o "projeto de modernidade" herdado do iluminismo. Em sua Teoria da Ação Comunicativa, Jurgen Habermas, um dos mais importantes filósofos da atualidade, considera a modernidade um projeto inacabado e sob risco, ante os paradoxos e patologias da sociedade contemporânea. O esforço na busca de possíveis saídas começa onde a modernidade diferencia a sociedade em duas esferas: a da reprodução material, do trabalho (mundo do sistema), e a da reprodução simbólica, da intereação (mundo da vida). E prossegue com avaliações desse risco.
Patologias surgem de processos racionalizantes, nos subsistemas econômico e político, que visam a subjugar a esfera da reprodução simbólica, nela provocando reações libertárias, como os movimentos do Software Livre, Creative Commons, ambientalistas e congêneres. Dentre os paradoxos, o mito do progesso instrumenta uma estratégia de instransparência para esses processos racionalizantes. No conflito resultante, intrincado e complexo, atores muitas vezes se vêem divididos, ou agindo dos dois lados. As possibilidades das TIC como instrumento de controle social, como o mais importante arsenal disponível para ideologias totalitaristas, seja de direita, de esquerda ou de mercado, são alarmantes e só crescem com a hiperconectividade. Da mesma forma, as possibilidades das mesmas TIC como instrumento de autonomia, para valores cultiváveis e circuláveis no mundo da vida. O movimento do Software Livre atrai tanto idealistas de direita, pelos valores da autonomia tecnológica, quanto de esquerda, pelos valores da produção colaborativa e do compartilhamento.
O mito do progresso, como instrumento estratégico de instransparência nesse conflito, opera através do discurso da inovação. O processo global de radicalização normativa, que nos submete a um crescente cercamento de propriedades imateriais cada vez mais abstratas, justifica-se através de um pretenso valor intrínseco da inovação como necessidade social. Subentendido, ainda, que a inovação tecnocientífica e tecnoindustrial só pode ser promovida através da lógica da ganância. O resultado prático é mais artificialidade de propósitos, menos inovação tecnológica de fato e o encastelamento do monopolismo na evolução e no mercado das TIC. Mas a operação pretendida, de se fazer uma coisa passar-se por outra, funciona se a batalha da percepção for vencida. Não é à toa que Pierre Bordieu, outro luminar vivo das ciências sociais, afirma que a luta política é hoje uma luta cognitiva, e que a mídia corportativa continuamente inculca a pirataria como crime hediondo.
Quando o propósito requereu invovação das TIC, ela veio através de rupturas nos modelos negociais dominantes. Com a revolução do downsizing, que trouxe o PC, com o movimento do Software Livre, que, em seu nascedouro, viabilizou a Internet. Viabilizou uma inovação de importância jamais imaginada e jamais vista na hitória, se medida pelos desdobramentos, com a livre disseminação de um servidor de email (Sendmail), de um servidor de nomes de domínio (BIND), de um servidor web (Apache), ainda hoje predominantes, e de um sistema operacional com TCP/IP implementado sobre o qual esses serviços pudessem rodar (FreeBSD), ilustrando o valor social de padrões e formatos abertos e desembaraçados de restrições propritárias. Em consequência, já nos anos 90 o modelo de desenvolvimento e licenciamento proprietário se torna, fora dos nichos onde não compete com Software Livre, obsoleto do ponto de vista socioeconômico, restando-lhe apenas estrategizar sua sobrevida. Parte dela inclui a mídia corportativa confundindo a disseminação de software livre com pirataria.
Talvez pelo fato do setor de software ser o mais estratégico na economia pós-industrial, a batalha desta sobrevida gera efeitos em outros setores produtivos. Ao testar, e abrir caminho para, novas estratégias de radicalização normativa cujo efeito mais significativo será o encastelamento monopolista em áreas e mercados onde o conhecimento agrega valor, ao mesmo tempo em que gera tensões entre distintos setores, por conta do ritmo e direção que melhor lhes convém nesse processo radicalizante. Dois exemplos que ilustram esses efeitos, para encerrarmos este artigo.
A radicalização normativa no campo das patentes, que são monopólios temporários concedidos pelo Estado, tem seu viés mais controverso na expansão de sua aplicabilidade sobre idéias e métodos implementáveis por programas de computador, as chamadas patentes "de software". Desde o início dos anos 80, quando as restrições legais a esse tipo de patenteamento foram ultrapassadas por jurisprudência, esse tipo de instrumento jurídico vem sendo usado, pela indústria e mercado das TIC, não só como barreira de entrada a novos atores, mas principalmente como arsenal estratégico de detènte, e portanto, eminentemente defensivo.
Pelas distorções jurídicas que foram se acumulando, com desabalada concessão de patentes de má qualidade, que não sobrevivem ao crivo de uma (dispendiosa) disputa legal (mais de 50% nos EUA), e com favorecimento desmedido aos detentores em tribunais especializados, era questão de tempo até que as patentes "de software" se tornassem, efetiva e primordialmente, em arsenal para achaque, chantagem e extorsão. No ínicio de 2007, os efeitos nefastos desse estágio de radicalização já se faziam mais difíceis de serem ocultados com ideologismo fundamentalista de mercado. A Suprema Corte dos EUA decidiu, após décadas de indiferença, analisar e reverter jurisprudência que favorecia o uso de patentes duvidosas como arma de chantagem.
O modelo proprietário se baseia no comércio de licenças de uso, que via de regra proíbem redistribuição, de cópia do software desenvolvido centralizadamente, enquanto o modelo livre na cirulação de licenças de cópia, que disseminam direitos inclusive de uso irrestrito e de acesso ao respectivo código fonte, de software desenvolvido colaborativamente. Enquanto arma defensiva, patentes "de software" servem como barreira de entrada e arma individual de detènte para os que investem no modelo centralizador, e como arma coletiva de detènte para os que investem no modelo colaborativo. Com o avanço do segundo modelo, líderes do primeiro buscaram adaptar o uso dessa arma, agora como arma de achaque a desenvolvedores e clientes do segundo modelo.
Incialmente através de uma empresa-laranja kamikaze -- a SCO --, que testou a estratégia conjugando um bilionário e espalhafatoso ataque à maior empresa atuante no segundo modelo e dois ex-clientes corportativos, com base em interpretações lunáticas do Direito Autoral e do Direito Contratual dos EUA, e uma campanha de venda de licença pelo uso de pretensa mas inominada propriedade imaterial sua em software livre (Linux). Fracassada essa campanha, restou à empresa líder no modelo proprietário buscar alternativas diretas, envolvendo "acordos de paz" com empresas que atuam noutro modelo para proteger os clientes de ambas contra ameaças litigiosas baseadas em patentes de software.
Autor
* Pedro Antônio Dourado de Rezende é matemático, professor de Ciência da Computação na Universidade de Brasília (UnB), Coordenador do Programa de Extensão em Criptografia e Segurança Computacional da UnB, ex-representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Infra-estrutura de Chaves Públicas brasileira (ICP-BR), conselheiro do Instituto Brasileiro de Direito e Política de Informática e da Free Software Foundation Latin America. www.pedro.jmrezende.com.br/sd.htm
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