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Softwares e Liberdades

Publicado na Gazeta Mercantil em 19/08/03

Pedro Antonio Dourado de Rezende(*)
Depto. de Ciencia da Computação
Universidade de Brasília
30 de Julho de 2003


A "Coalizão pela Livre Escolha do Software", apoiada pela Comptia (inclui Microsoft, Intel e Dell), defende, em entrevista e artigo recente de Raphael Mandarino Jr., que "o governo pode comprar Linux se quiser, mas não deve aprovar leis dizendo que preferencialmente tem que usar software livre, [pois] isso é inconstitucional". Dizendo-se a favor do usuário, compara a preferência por software livre à experiência de reserva de mercado de informática. Falácias?

O que essas leis instituem, não é reserva. O mercado de software é não-rival (non-rivourous). Ao contrário do hardware, alvo da citada reserva, a venda de uma cópia nada subtrai do estoque. O autor continua autor, e, se quiser, também proprietário, do mesmo software. Por isso, nos modelos de negócio com software livre, uma cópia em uso é vista como ativo investido em marketing. Não só do software em si, mas nos seus mercados de suporte, serviço e agregação.

Enquanto o modelo proprietário despreza tal característica: cópia paga é passivo. Pirataria, engenharia reversa, bugfixes, etc. O debate surge justamente porque, esgotado o ciclo útil deste desprezo, começam a vazar ineficiências do negócio nele baseado.

E se fosse reserva, não seria de mercado. Ver no software antes uma ferramenta de linguagem digital do que uma mercadoria, se for ato de reserva o será de conhecimento. Prioriza-se o direito ao conhecimento das linguagens digitais, e não os interesses de fornecedores, ou modelos monopolistas baseados em padrões digitais tornados propriedade em corrida pela posse de idéias, pirâmide de avareza que desabará sob o peso da sua própria insanidade.

E como regulamentação, não seria de reserva. Qualquer empresa, até as que hoje vendem licenças de software, poderiam vencer licitações para fornecimento de software, suporte e serviços correspondentes. Desde que não exijam que o edital inclua, casado a esses, pagamento por licenças de uso, prática corrente no status quo.

O que tais leis instituem é uma nova política pública. E o que a coalizão quer, na verdade, é a velha. Quer forçar o Estado a adotar, como livre escolha" do conceito de software, o seu, que descarta outros (i.e. comprar linux). Mas tal fundamentalismo não o fornece adequadamente. A internet está aí: de cada três endereços web digitados, dois serão servidos por um software livre (Apache), e quase três resolvidos por outro (Bind). Fornece, outrossim, escravidão semiológica: se fosse proprietária, a internet teria surgido?

A IBM, que há vinte anos perdeu a pole na corrida do software proprietário, aprendeu a lição e hoje investe pesado em software livre (Linux, Apache). Não é filantropia: o retorno generoso é colhido em suporte, serviços e agregação. E o espinhoso, em ataques sórdidos de quem teme o novo paradigma (SCO e aliados).

Ninguém é contra liberdade de escolha, desde que comece na definição de software. Quem quiser ser apenas usuário, e não antes inquilino, que seja. Quem quiser separar autoria de posse, retendo a autoria e desmascarando a farsa da propriedade do que só existe na mente, que o faça. Não é essa a liberdade que a coalizão defende, ao pregar seu bloqueio na mais alta instância, o Estado. Estado que, para sobreviver, pecisa proteger a cidadania do cerco de interesses monopolistas. Foi assim que se livrou do penúltimo ciclo escravagista.

Tais leis são ruins por outros motivos. Posso dizer, sem me ver juiz no STF, que num governo pelo status quo a política que instituem seria ignorada. E que, num governo pela mudança, tal instituição é desnecessária. Política se faz mais e antes com vontade que com leis.
 

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(*)- ATC PhD em Matemática Aplicada pela Universidade de Berkeley, Professor de Ciência da Computação da Universidade de Brasília, representante da sociedade civil no Comitê Gestor da ICP-Brasil.