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Opções produtivas

Para a revista Tema, do Serpro

Pedro Antonio Dourado de Rezende *
Thiago Tavares Nunes de Oliveira **
Dezembro de 2006




Uma das mais significativas mudanças estruturais na área das TIC, ocorrida a partir do início da década de 80, avançou a ponto de tornar obsoleto seu principal instrumento. Essa mudança emancipou a produção e comércio de software, em re­lação ao de hardware, e seu principal instrumento foi a opção, no mercado emancipante, de tratar sua matéria prima – código fonte – como um bem rival, a exemplo de commodities materiais como o hardware e o aço.

Tal opção se materializou num determinado modelo para licenças de uso, os bens para consumo final negociados nesse mercado. Para distinguir as licenças que seguem esse modelo, das que seguem outros na escalada evolutiva das TIC, e na falta de adjetivo melhor, aquelas são hoje chamadas de proprietárias, bem como o software cujo uso licenciam. Mas o que significa chamar tais licenças e softwares de “proprietários”, ou compará-los com alternativas? Significa, cada vez mais, entender esse processo evolutivo e seus desdobramentos jurídicos.

 Naquela mudança, em­preendimentos de produção e distribuição de software optaram por ancorar sua lógica produtiva e negocial no controle do código fonte, expressão na qual pro­gramas de computador são originalmente criados. A lógica dessa opção é simples. A partir do código fonte, cópias em código executável são produzidas, por tradução automatizada, para funcionarem em plataformas específicas. Por isso, a tutela do código fonte se torna, feita a opção, condição necessária para o controle da evolução do software-produto.

Nesse modelo, a opção por tratá-lo como propriedade subentende que o código fonte de um software cumpre as funções de matriz produtiva e de segredo industrial, entendimento expresso em cláusulas restritivas nas licenças de uso do software-produto. Donde o termo proprietário. Ocorre que, nos anos seguintes, enquanto percolava até os processos normativos, refletindo-se como “realidade fática” na elaboração de leis e tratados para ordenamento e segurança jurídicas do mercado de software, esse entendimento era, doutro lado, testado por pressões evolutivas no desenvolvimento das TIC, que tende a favorecer, como toda evolução, opões, arranjos e soluções mais eficientes.

O regime proprietário seguiu, naturalmente, a lógica econômica. Como o custo marginal de se produzir cópia de um software-produto é, na prática, nulo, pois se trata de bem simbólico (formado por uma sequência de símbolos), o controle da demanda por um produto se torna a chave do sucesso para seu produtor. E como um software-produto é, do ponto de vista semiológico, um bem anti-rival, pois seu valor de uso cresce com sua disseminação (qual o valor de um editor de textos cujos arquivos só a instalação original é capaz de ler?), a batalha pelo controle da demanda se trava no campo dos padrões técnicos, “de mercado”.

Em consequência, sob o modelo proprietário o software tende a evoluir rumo à eficácia dos meios de gerar dependência, do usuário em relação ao fornecedor, em detrimento da eficiência ou segurança, do usuário em relação ao uso do software. Noutras palavras, pela natureza de ambos, a lógica econômica tende a favorecer, nesse mercado, a eficiência financeira na ponta produtora, na relação retorno/investimento para quem investe no modelo proprietário, em detrimento da eficiência utilitária na ponta consumidora, na relação custo/benefício para quem “consome” no atendimento de suas necessidades. Tende, enquanto o mercado estiver dominado por produtores monopolistas.

Vivemos uma nova fase de mudanças estruturais. Agentes de mercado com aspirações flexíveis, desenvolvedores independentes e usuários conscientes, com posições morais ou pragmáticas esclarecidas, buscam ancorar, em novos modelos de licenciamento, novas arranjos de produção colaborativa. Arranjos cuja eficiência utilitária cresce, sobejamente, com a conectividade e com a massa de código compartilhado. Num regime que pode prescindir, dos três atributos jurídicos da propriedade – posse, usufruto e gozo –, ao menos de um, no que tange à matriz produtora. Nos modelos FOSS (software livre) não há razão para tutela do gozo do código fonte, desnecessária ao controle da evolução dos produtos, ali desenvolvidos colaborativamente. 

Doutra feita, o mesmo fruto evolutivo que impulsiona a eficiência no regime FOSS – abundância de conectividade e de código –, solapa a eficácia no regime proprietário: mais caro e difícil controlar demandas e restrições normativas, seja no cumprimento das licenças e de Leis. Leis que, como de regra, refletem os riscos de se legislar sobre tecnologia, que engessam premissas do modelo proprietário como regras universais, obstaculizando a transição segura para novas regimes produtivos e negociais, principalmente envolvendo o Estado.

É natural que forças monopolistas, e os que se locupletam desse status quo, se esforcem para gerar necessidades e riscos artificiais. E para apresentar antiquadas distorções normativas se não como naturais, ou acima de princípios jurídicos com os quais conflitam, então como insuficientes. Que façam lobby por licenças e leis cada vez mais abusivas e draconianas. E que tentem cooptar aparelhos de Estado, principalmente na periferia do capitalismo, justamente os que mais têm a ganhar com a nova fase evolutiva das TIC. Porém, numa democracia, quem responde pelo Estado também deve responder aos governados. 


Autores

* Pedro Antônio Dourado de Rezende é matemático, professor de Ciência da Computação na Universidade de Brasília (UnB), Coordenador do Programa de Extensão em Criptografia e Segurança Computacional da UnB, conselheiro do Instituto Brasileiro de Direito e Política de Informática e da Fundação Software Livre América Latina, e ex-representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Infra-estrutura de Chaves Públicas brasileira (ICP-BR). www.pedro.jmrezende.com.br/sd.htm

** Thiago Tavares Nunes de Oliveira é bacharel em Direito, professor de Direito Informático na Universidade Católica de Salvador, Fundador e presidente da SaferNet, Organização Não Governamental de apoio no combate a crimes digitais. www.safernet.org.br

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