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> Software livre: Filosofia
Software Livre e Inclusão Social
VII Semana de Mobilização Social, Universidade Católica de Salvador
I Fórum Goiano de Software Livre, Goiânia, GO
Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasilia
20 deOutubro de 2004
Introdução
A inclusão social que o software livre promove diretamente é sui generis,
antípoda daquela que vem logo à mente quando se fala em
inclusão digital. Para a inserção dos analfabetos
digitais no mercado de trabalho, o software livre promete contribuir
apenas indiretamente, pela generosidade e facilidade nos termos de
licenciamento.
A inclusão social que o software livre diretamente promove
é outra, em certo sentido oposta: a inserção da
categoria dos mais digitalmente letrados nas relações de
poder. Não estamos falando da inserção de
programadores no mercado que deles demanda o trabalho como mercadoria
valiosa. Numa tal relação capitalista, o mercado captura
e domina desta categoria o potencial para deter e operar seus
próprios meios de produção, em troca de
salários, opções de remuneração ou
crédito, e outras apólices contra risco. Numa tal
relação, a categoria dos programadores se põe
apenas como outra trabalhista.
Mas no regime negocial e modelo de produção do software
livre, uma dada relação semiológica predomina
sobre as relações econômicas, em busca de melhores
equilíbrios entre controles, riscos e poderes na esfera social.
Esta predominância se estabelece no plano jurídico,
amparada na jurisprudência atual do Direito Autoral e no fato de
que a produção, neste caso, é simbólica.
Programadores produzem linhas de código, cujo valor
econômico deriva do seu valor semiológico, que por sua vez
deriva do contexto que reveste esse código de funcionalidades,
contexto que em última instância redunda em mais
código.
Na forma manipulável tanto por programadores como por
máquinas, chamada código-fonte, tal produto se identifica
com seus próprios meios de produção. O regime
negocial e modelo de produção do software livre refletem
esta identidade na relação semiológica que trata o
código-fonte antes como linguagem do que como segredo de
negócio, enquanto seu oposto constitui o paradigma do regime e
modelo proprietários, hoje prevalentes. Com a
desfetichização proposta pelo software livre, o paradigma
biológico se apresenta como instrumento adequado de
análise do que se descortina, talvez mais eficaz que o paradigma
monetarista, hoje predominante.
Para sua auto-reprodução, ambos paradigmas necessitam de
massa crítica, de mecanismos de proteção
jurídica às relações de poder que requerem
ou estabelecem, ou de ambos. No caso do paradigma livre,
proteção contra a tentação do atalho
fetichizante com o qual o paradigma proprietário promete maior
retorno imediato ao investimento. Por um lado, o efeito rede no mercado
de software reforça a metáfora software-linguagem,
enquanto por outro, empurra-o no rumo do monopolismo, com os custos
sociais dos inerentes conflitos de interesse já visíveis,
como consequência a longo prazo e em larga escala do maior
retorno imediato do software-mercadoria.
O confronto entre esses dois paradigmas seria apenas um processo de
seleção natural para distintas estratégias de
equíbrio entre competição e
cooperação produtivos, perante as cambiantes necessidades
e anseios de um ser social que evolui virtualizando-se, não
fosse a sua dimensão politica. Quando o conflito é
examinado sob essa ótica, duas correntes do movimento do
software livre se distinguem, pela importância que dão --
ou não -- à necessidade de proteção
jurídica ao meio de produção no modelo livre,
contra a "tentação fetichizante".
A corrente que dá importância a esta necessidade,
representada pela Free Software Foundation (FSF), institui o conceito
de copyleft como baliza negocial a separar os dois paradigmas.
Já a corrente que não lhe dá toda esta
importância, representada pelo Open Source Iniciative, istitui a
metáfora software-linguagem como tal baliza. Para analisarmos o
quadro que se descortina, devemos neutralizar a
desinformação que é arma no conflito entre os dois
paradigmas, comumente chamada de FUD (sigla para Fear, Uncertainty and Doubt, que se paronimiza com fudge, borrão) procurando compreender o que seja o conceito de copyleft.
Copyleft
O mais importante feito da FSF pode ter sido o de instituir a GPL
(General Public Licence) como modelo de contrato para licenciamento de
software livre, que
epitomiza o conceito de copyleft. Nosso primeiro desafio é o de
entender porque o FUD é tão eficaz contra esse conceito.
Porque a GPL tanto irrita,
atemoriza e desorienta quem tende a resistir a mudanças
evolutivas que
desafiam dogmas fundamentalistas predominantes no mercado de software,
vitirne do capitalismo pós-industrial.
A evolução deste mercado é inexorável e se
encontra numa importante
encruzilhada, com as bandeiras da PI (propriedade intelectual) "forte"
e do copyleft apontando
direções opostas para metas alegadamente as mesmas. A "PI
forte" é um movimento legislativo-jurídico de
radicalização do regime patentário, estendendo a
patenteabilidade de
invenções a idéias expressáveis em
software, e do regime autoral,
afrouxando critérios de admissibilidade de provas de
violação. Com o FUD a serviço
da primeira, empenhado em borrar a segunda com
desinformação,
frequentemente seus atores e vítimas se confundem, o que
dificulta valorar e judicar o papel social das TICs (Tecnologias da
Informação e Comunicação).
A PI forte protege mais e antes o intermediador monopolista do que o
autor ou o inventor.
Em breves palavras, o copyleft é, na linguagem hacker, um
hacking do copyright visando corrigir um "bug" no seu regime, que faz
distanciar as metas formais dos efeitos reais. Copyright é um
modelo de lei de direito autoral,
establecido pela primeira lei do gênero, sancionada na Inglaterra
em
1710. Nas jurisdições uniformizadas por tratado
internacional de Berna, de 1988, do qual o Brasil é
signatário, estas leis geram, para o autor, a
liberdade de dispor sobre o usufruto e disponibilidade da sua obra,
além
de outros direitos que vigem na ausência de contrato particular
para
este fim, implicando em obrigações correspondentes para o
usufruinte.
A idéia do copyleft é a de produzir-se, através de contratos de adesão,
para jurisdições que garantam tal liberdade ao autor, algo como uma
imagem especular das obrigações e direitos "default" do copyright,
refletida sobre o eixo que os vincula entre contratantes, a partir
daquilo que o copyright estabelece para casos em que um tal contrato
particular inexista. O motivo? A alegada meta das leis de direito
autoral, cada vez mais distante dos seus efeitos.
Quanto mais essas leis se radicalizam, mais estimulam o negócio
monopolizador da intemediação desse usufruto, e menos os seus benefícios
sociais diretos ou a produção intelectual per se.
Um modelo para contratos de adesão que busca corrigir falhas sociais no
direito autoral padrão, sem quebrá-lo na tentativa, modelo do qual
resultam as quatro liberdades como eixo, e os treze artigos como corpo
da GPL.
Diversidade transparente
Essas quatro liberdades foram (e são frequentemente) confundidas com o
conceito. Mas não formam o conceito -- são antes suas metas. O conceito
de software livre está expresso na licença, que precisa ter dentes --a
essência do copyleft -- para se atingir tais metas. Doutra feita, esses
dentes nada tem a ver com obrigações ou interdições de gratuidades ou
cobranças -- exceto pelo direito de uso --, no mercado onde mordem.
Esses dentes apenas invertem a natureza da relação jurídica que vincula,
de um lado, um empreendimento interessado em suprir uma demanda, e de
outro, sua mão de obra básica (programador ou outro empreendimento).
Para se entender esta inversão e consequências, há que se começar
observando este vínculo no modelo hoje prevalente. Via de regra, este
vínculo no modelo propritário é formado por uma relação trabalhista na
qual o programador, em troca de pagamentos e promessas de ganho pelo seu
labor (produzir código fonte), cede os direitos de autor e se compromete
com o sigilo do resultado (cláusulas NDA). A partir desta relação
básica, o empreendimento põe em marcha o seu processo produtivo.
Se o processo é industrial, o que constitui o grosso do mercado
proprietário, programas em código fonte são especificados e agregados
para consituir um software. O software é compilado para um formato que
seja executável nos sistemas de destino, formando builds (versões). Aos
builds se adiciona uma licença de uso (EULA), para constituirem a matriz
de um "produto". Nas EULAs, o empreendimento é identificado como "autor
do produto", o software enquanto espécimen (uma cópia de um build) é o
objeto "as is" (sem garantias), e o software enquanto espécie (o código
fonte que produz o build) é propriedade a ser protegida como segredo
industrial e/ou negocial, à revelia de qualquer direito consumidor sobre
o "produto licenciado". Às EULAs podem se agregar pacotes de integração
e de fornecimento de suporte (aditivos contratuais geralmente de
adesão), num regime cartelizado por credenciamentos controlados pelo
empreendedor.
Sob o regime copyleft, muita coisa muda com a inversão do controle nesta
relação jurídica básica, sobre a qual podem se fundar práticas negociais
até nunca dantes navegadas. Mas jamais para lançar o objeto das licenças
em domínio público, e seus usuários ao deus-dará, aos monstros que
habitam o precipício no fim dos mares, como quer o FUD. Sob este regime
o programador (ou empreendimento) retém, como autor, o direito de dispor
sobre o usufruto de sua obra (programa), dispondo-a sob contrato de
adesão que estabelece não só a liberdade irrestrita de uso do programa
enquanto espécimen (exemplar executável), mas também as condições de
usufruto do programa enquanto espécie (código-fonte), ou seja, também
para empreendimentos de software que o incluam.
Conforme o grau de liberdade que tais condições geram
para o licenciado,
pode-se distinguir, como faz a Free Software Foundation, dentre tais
licenças, as que se enquadram no regime copyleft das que
são apenas open
source. Ou pode-se juntá-las numa categoria que atrai o nome de
"modelo
livre", já que, com qualquer delas, o programador exerce suas
liberdades
de autor, controlando a forma como empreendimentos poderão
dispor do seu
trabalho intelectual, em troca da renúncia à necessidade
de pagamento
direto e antecipado ao retorno do seu labor, mas sem precluir tais
ganhos. A tais licenças podem ser agregados pacotes de
integração e de
fornecimento de suporte, num regime de diversidade transparente,
controlado pela livre competitividade premiada pela
cooperação [3]. Em particular à GPL, que explicita
o alcance deste direito de agregação até
à esfera comercial, alcance que o FUD tenta borrar antonimizando
software livre a "software comercial".
Erosão de direitos
Comparando empreendimentos sob o regime copyleft e sob o modelo
proprietário, pode-se concluir que as diferenças se restringem às
consequências da inversão no controle da relação jurídica entre empreendimentos e
sua base de mão de obra. E estas diferenças podem ser entendidas como
contrapesos aos poderes econômico e semiológico do empreeendedor,
potencial ou real, balanceados pela autonomia daqueles que realmente
programam, quando decidem usar sinergisticamente o poder do conhecimento
que detêm, em precedência à lógica econômica racional do maior retorno
econômico no menor tempo.
Pelo ângulo econômico do processo produtivo completo, a diferença
fundamental estará nas métricas de eficiência. No modelo livre as
métricas de longo prazo terão como referencial o usuário, e no modelo
proprietário, o empreendedor. No primeiro caso, quanto mais barato o
valor médio dos produtos e serviços, de qualidade e função equivalentes,
melhor. No segundo, quanto mais caro, melhor. Quanto a isso, é salutar
não nos iludirmos. Um modelo se guia por critérios sociais, enquanto
outro, por critérios capitalistas de eficiência sob as distorções
induzidas pelo estágio de monopolismo ou cartelização alcançado pelo
correspondente segmento do mercado. O exemplo da privatização de
serviços públicos como eletricidade e telefonia nos mostra como esta
lógica funciona na prática.
O modelo livre oferece ganhos sociais através do impedimento prático à
monopolização e cartelização na esfera dos empreendimentos, naturalmente
abusivas, já que o licenciamento do software enquanto espécie, é livre.
E, quando menos, ainda o será livre -- ou mais livre -- sob a cláusula
essencial do copyleft (relicenciamento compatível com a licença
original), talhada para preservar esta mesma liberdade. O modelo livre
oferece mais equilíbrio na distribuição de riscos e barreiras entreos
agentes da aventura virtualizante: programadores, empreendedores e
usuários, em troca da renúncia à possibilidade de esquemas negociais
socialmente abusivos.
Aos usuários, o modelo livre oferce a oportunidade de resgate
das
liberdades civis que vão se erodindo nessa aventura,
principalmente
direitos de conhecimento. Ou, como quer o filósofo Jaques
Derrida,
direitos de defesa da inteligência, atacada pelo modus negociandi
do
modelo proprietário através da supressão ao
direito fiduciário dese
saber como softwares intermedeiam a comunicação da
personalidade civil
do usuário da informática, num mundo onde os valores
estão cada vez mais
virtualmente representados. Ou, como quer o sociólogo Lucien
Sfez, direitos de defesa contra a violência simbólica,
aquela que leva a
comunidade de usuários da informática aa entrar em um
sistema de crenças
(fundamentalismo de mercado) sem que seus membros percebam.
Não se trata de se querer impor um conhecimento inalcançável na prática,
como se costuma borrar contra a filosofia do software livre e do open
source, mas de se resgatar os direitos de acesso e de escolha dos
intermediadores, face aos graves riscos de erosão de outros direitos no
seu impedimento. O modelo livre oferece tudo isso como contrapeso e
alternatva aos crescentes abusos de um regime de PI em rota de
insanidade, borrados ao ponto de serem tidos por simples danos
colaterais de um processo inevitável, a PI "forte". Enquanto o modelo
proprietário oferece o que hoje prevalece por aí, já visível sem ou com
as lentes obnubilantes do FUD.