Por que abrir o código do software de declaração de IRPF?
Prof. Pedro Antônio Dourado de Rezende
*
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
30 de abril de 2007
I
Libertado o Leão
Há dois dias do prazo final para entrega da
declaração de imposto de renda de 2007, um dos
conselheiros da Fundação Software Livre América Latina (FSFLA) conseguiu finalizar uma
adaptação do software distribuído, sem licença de uso,
pela Receita Federal, usado por contribuintes no preparo e envio de suas
declarações. Com seu código descompilado e aberto, o software foi adaptado para funcionar
também em plataformas completamente livres (vide
http://www.fsfla.org/?q=pt/node/156).
Essa
proeza foi saudada, com elogios e
admiração, entre os que se preocupam com a liberdade
num mundo cada vez mais assombrado pelo espectro de riscos, incertezas
e dependências tecnológicas. E foi também
criticada, com suspeita e desconfiança, por quem canaliza sua
inquietude com esse espectro em anseio por mais controles
invisíveis, do Estado ou do mercado, sobre a sociedade.
Pretendo refletir aqui sobre esse choque de opiniões, e analisar
o que poderia estar motivando o autor dessa proeza e as reações conflitantes. Comecemos
por lembrar o papel de cada ator, declarante, recebente e
intermediadores, nesse ato de cidadania que é a declaração do imposto de renda. Primeiro, duas
obrigações complementares devem estar claras. É
obrigação do órgão fiscal que recebe
declarações validar as que recebe. E é obrigação de quem entrega declarações responder pela veracidade das informações ali contidas.
O software cujo código foi adaptado tem como função primordial a de preparar e enviar declarações em nome do declarante, e não o de validar essas declarações em nome do recebente. Não deveria caber ao software que foi adaptado validar nada além do que poderia validar o próprio declarante, conforme instruções do manual de preenchimento do contribuinte, impresso para os que escolhem fazer a declaração em formulário de papel. Aliás, é bem isso que a Receita diz a respeito do software, que ela disponibiliza aos declarantes para esse fim.
O software que deveria validar as declarações, com respeito a indícios de fraude, deveria ser o software que recebe essas declarações em nome do
arrecadante. Este outro software não é, nem deve ser,
distribuído. Novamente, o software que recebe e processa
declarações deveria cumprir sua função,
tanto para quem prepara a declaração via computador,
quanto para quem entrega em formulário de papel, da mesma forma.
Não há porque migrar parte da função do
software que recebe e processa declarações na Receita, ao
software que esta distribui ao declarante
para prepará-las e enviá-las, só porque o
declarante estaria usando um software e não uma máquina
de escrever ou uma caneta.
Se houvesse alguma razão, digamos que de ordem prática,
para tal migração ela
afrontaria o princípio constitucional da impessoalidade, que
rege, junto com outros princípios, os atos da
administração pública (vide
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9529). Pois receber
declaração obrigatória de renda é um ato da
administração pública, assim como
entregá-la é um ato obrigatório à
cidadania, e para perparar sua declaração nem todos
desejam,
ou podem, usar computador. As regras
estabelecidas impedem
alguns de ter outra opção. Se a função do
software que permite declarar via computador for além do que
poderia fazer o declarante com formulário de papel e manual de
preenchimento, os que declaram e os que não podem declarar em
papel estariam sendo tratados de forma discriminatória.
Em nome de quem?
Por outro lado, enquanto o código fonte desse software estiver fechado o declarante não tem meios de
saber, além dos efeitos
visíveis, o que faz exatamente o software. O problema, aqui, é de afronta ao
princípio da transparência (art. 37 inciso XXXIII da
Constituição). Outrossim,
enquanto leio críticas à ação do conselheiro
da FSFLA, eivadas de suspeita e desconfiança, percebo que elas
desprezam a questão que motivou seu ato libertário: a de como se pode chegar
à crença de que esse software faz exatamente o que dele
se espera, e nada mais.
Se um software vai preparar e enviar uma declaração fiscal em meu nome, declaração pela qual responderei eu perante a Lei, quero ter o direito de saber, por meios ao meu alcance e de minha escolha, como esse software
operaria em meu nome. Mesmo que não tenha meios de saber
pessoalmente, tenho o direito, constitucional e moral, de julgar
insuficiente a palavra apenas de quem me oferece o
software. Ainda, esse direito me é particularmente importante,
do ângulo moral, se quem oferece o software é justamente
aquele a quem compete me acusar,
em face da Lei, de falsear a declaração pela qual
respondo, caso assim decida. Ignorando a relevância moral desse
direito, críticos daquele ato libertário argumentam que a
abertura do código desse software poderia dar ensejo a
alterações maliciosas no mesmo.
Entretanto,
se um software de código aberto for maliciosamente alterado essa
alteração terá que estar às
claras pois, sendo aberto, qualquer um tem acesso ao código
fonte: quem quiser poderá compilá-lo, a mando de
interessados ou por cuidado próprio, para obter o
executável correspondente. É possível escolher de
onde baixar o código fonte, estudá-lo ou escolher quem o
faça antes de compilá-lo, ou baixar o executável correspondente. O código aberto faculta, portanto, ao declarante escolher um fornecedor.
Com o código aberto é possível, assim, ao
declarante escolher em quem se fiar para saber o que esse código
faria em nome dele. Quem não gosta de ter opções
continua podendo baixar o software executável do fornecedor
original. Poderá ignorar que agora tem mais opões,
ignorância que a abertura do código de forma alguma lhe
cercea. O declarante estará livre para exercer esta
opção, dentre outras, opção que lhe
será moralmente coerente caso ele desconfie de quem deseja
conhecer esse código, mais do que de código o qual
não lhe é dado conhecer.
Doutro
lado, se um software de código fechado for maliciosamente
alterado essa alteração estará às
escondidas pois, sendo
fechado, poucos tem acesso ao código fonte: só quem for
compilá-lo, a mando do titular ou por descuido deste, para
fornecer o executável correspondente. Donde quer que se escolha baixá-lo,
o declarante deverá presumir que o software executável
será o mesmo. O código fechado impede, portanto, o
declarante de escolher outro fornecedor.
Com o código fechado não é possível, assim,
ao declarante escolher em quem se fiar para saber o que esse
código faria em nome dele. Quem for obrigado a declarar por
computador não terá opção. Estará
sendo forçado a entregar declaração codificada por
um software cujo código não lhe é dado conhecer. O
declarante estará preso a essa opção,
opção que lhe será moralmente incoerente caso ele
confie em alguém que poderia conhecer esse código, mais
do que em código o qual não lhe é dado
conhecer.
Canalizando inquietudes
Tal incoerência seria menos grave que a preocupação
dos críticos, em relação a fraudes, se os mais perigosos
bandidos atuando na área fiscal preferissem agir às
claras. Tal incoerência seria irrelevante se o endereço da Receita fosse no céu, e os intermediadores digitais,
legítimos ou não, do processo fiscal fossem anjos.
Infelizmente -- ou felizmente --, esse tipo de percepção
não é
unânime. Até onde consigo discernir, os bandidos atuantes em matéria fiscal que agem às claras são varejistas.
São os que vendem informações sigilosas nas
calçadas da Santa Ifigênia. São os que vendem
serviços contábeis cujo valor adicional é a garantia implícita, baseada em supostas informações privilegiadas ou sigilosas sobre
configurações do software que arrasta malha fina nas entranhas do processo, de que a
declaração do cliente não cairá nela.
Quem
canaliza a inquietude com o atual espectro de riscos para a
crença de que intermediadores digitais devem ser como anjos, e
que quem deseja conhecer código fonte deve estar sob efeito do pecado original
do fruto do conhecimento, comunga na seita do santo baite (vide
google). Quem nessa seita comunga abraça dogmas que confundem
análise de risco com acusação, falta de
confiança na representação digital de autoridades
públicas com heresia, sentimento de segurança com
segurança. Quem dela não comunga, teve a sorte da
linguagem escolhida para desenvolver o software oferecido aos declarantes ter sido uma linguagem
descompilável, e de haver pelo menos um ativista competente e obstinado,
disposto a não transgredir seus critérios morais relacionados ao uso de software.
O nome do jogo é controle. Quem não é capaz de entender as conseqüências, para a cidadania, da concentração
de poder na autoridade fiscal que a situação anterior
representa, com o software de declaração em código
fechado, preferindo acreditar que a abertura do
código trará um saldo coletivo maléfico, pois o
programa poderá ser alterado
para fraudar declarações, está preso a uma
visão preconceituosa, ingênua, simplista e atrasada dos papéis que os programadores podem desempenhar na
sociedade da informação. E com isso construindo para si,
e para a sociedade se essa canalização a guiar, prisões virtuais tecidas de bits.
Em particular se tal canalização guiar, no caso, a
conduta dos auditores internos da Receita, cujo trabalho, na
visão deste especialista em segurança na
informática, só tem a perder com obscurantismos, e
só a ganhar com o fiel cumprimento dos princípios
constitucionais aqui citados. Quem se dedica a estudar o código
do programa da Receita, para verificar se funciona como esperado e para
fazê-lo funcionar na plataforma de sua (livre) escolha, pode ser
um
aliado dos auditores na árdua tarefa de descobrir e corrigir
vulnerabilidades, nesse software e em seus possíveis
desdobramentos para a segurança do processo fiscal. É
assim que softwares
livres de sucesso evoluem e se tornam, com o código aberto,
mais
robustos, confiáveis e infensos a armadilhas de aprisionamento
tecnológico (vendor lock-in).
Doutro lado, quem quiser
informação privilegiada sobre processos fiscais, para
trafegar influência ou corrupção, vai seguir
trilhando os
caminhos do crime organizado à sombra da crença coletiva
em
segurança por obscurantismo, sustentada pelos dogmas do santo
baite. Num mundo hiperconectado, a segurança coletiva depende de
um delicado equilíbrio entre transparência e sigilo, onde
sigilo indevido é obscurantista. Nele essa crença
coletiva se infantiliza, tornando-se mais perigosa na medida em que,
com a expansão da informatização, as
prisões virtuais se consolidam e os que com elas lucram se
entrincheiram.
Apesar
de copiosas análises de risco disponíveis para corroborar
essa visão, quem anseia
por mais controle invisível do Estado ou do mercado sobre a
sociedade prefere ouvi-las com ouvidos de mercador. Ou entender seu uso
como acusação sem provas.
Seus sentimentos e palpites, sustentados por aquela inquietude
canalizada, estarão sempre acima. Alimentando críticas
açodadas das ações e dos
motivos de quem busca defender a liberdade humana, sob cerco
tecnológico dirigido pela lógica do capital.
Críticas que tendem a confundir intenções
declaradas por ciberativistas com
intenções inconfessáveis de ciberbandidos.
Críticas que apontam esses como únicos
ou maiores beneficiários das ações daqueles,
ações que estariam movidas
por infundada ou inelutável desconfiança no poder do
Estado ou do capital.
II
Critérios morais
Quem abriu o código do programa da Receita, e quem elogiou tal
ato, afirma tê-lo feito para, primeiro, exercer o direito de
conhecer, por meios ao seu alcance e de sua escolha, o que de fato faz
o programa. Manipular esse código, apenas na medida
necessária: para que só faça o que dele se espera
e para que possa fazê-lo sobre software que também se
possa assim conhecer (e manipular, se necessário, pelos mesmos
motivos). Essa é a única maneira possível de se
saber, em grau de confiança que alguns julgam moralmente
aceitável, o que zeros e uns estão a dizer, a partir do
nosso próprio computador, em nosso nome no ciberespaço.
Trata-se de um critério moral, e portanto pessoal, em
relação ao uso de software: como exercer o meu direito de saber, por meios ao meu alcance, como o software
representa a minha vontade perante terceiros. No caso, a vontade de declarar dados
fiscais conforme apresentados, e não outros, perante a autoridade fiscal, e só a ela.
Se o critério é moral, por sua natureza não deve
haver exceção, seja para este ou para qualquer outro caso.
Se
alguém não consegue entender esse
critério, de minha parte o que eu não
entendo é por que alguém haveria de impor a quem o
escolhe o seu
próprio critério, de como e porque confiar em
software que representa sua vontade perante terceiros. Confiar no nome
ou na marca do fornecedor é um
possível critério, todos sabemos. Um critério que
pode ser o mais
popular, especialmente numa sociedade consumista, mas é apenas
um
critério moral e, portanto, pessoal. Se o critério
é moral, e portanto pessoal, então cada um tem o seu.
A
menos de infração legal, que corresponderia a
violação de critérios coletivos e não
pessoais, o fato de alguém não comungar do seu
critério moral não lhe impede de
praticar o seu. E vice versa. A motivação e o
esforço libertário aqui narrados não impedem
ninguém de pegar o CD da Receita e instalar o software desse CD
numa
plataforma proprietária para declarar imposto, exatamente como
se fazia antes do código desse software ser aberto. E não
há infração legal pela abertura do código,
pois partes dele são programas licenciados por terceiros com
cláusula copyleft (vide vide
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9529)
Usar seu
critério preferido para fazer sua escolha pessoal, do
meio (software ou papel) e de quem manipula esse
meio (contador ou si mesmo) em seu nome, é
aplicação correta de critérios morais. Mas
insinuar,
por exemplo, como se fez na lista PSL-Brasil, que quem exerce o direito
de usar um critério diferente está propenso a
tentar prejudicar outrem, e que essa propensão é
maior do que a de quem, no exercício de cargo público,
tenta cercear esse direito, é ventilação de
preconceito ou de desonestidade.
Se alguém acha que é mais fácil a um particular,
conhecendo o
código fonte de um software para declaração,
tentar prejudicar outros,
deve usar esse palpite como critério para escolher de onde vai
baixar o
software para
declarar seu imposto, se quiser fazê-lo por computador. Mas
não deve
usar esse palpite para
desrespeitar, incitar o desrespeito ou o cerceamento do direito de quem
seja, de conhecer, por meio a seu alcance e de sua escolha, o que esse
software faria em seu nome. Se não por razões morais,
então pelas seguintes.
Princípios constitucionais e retórica
Não se deve confundir o ato formal de declarar renda, sobre o
qual
incidem os princípios constitucionais da transparência e
da impessoalidade para a
administração pública, com o fruto desse ato,
sobre o qual incide para a mesma a obrigação legal de
tratá-lo em sigilo. Nem se deve confundir os princípios
da
transparência e da impessoalidade dos atos dos poderes
republicanos com
suposição ou hermenêutica, características
próprias de elementos de análises de risco. Tais
princípios
estão consolidados na jurisprudência e insculpidos na
nossa Constituição de 1988, não lhes cabendo o
papel de peças retóricas em joguetes sofistas encenados
em palcos do poder.
Quando repisados, palpites que insistem nessas confusões, que tentam associar propensão criminosa ao
desejo constitucionalmente amparado de usufruto da
transparência e da impessoalidade devidos em atos da administração
pública, escorregam para a verborragia medieval
inquisitória, ao tentar associar conhecimento técnico
(bruxaria) a intenção criminosa (heresia) valendo-se de
puro FUD.
Ao liberar o código do programa da Receita, o conselheiro da
FSFLA ofereceu a todos a possibilidade prática de exercer o
mesmo critério moral que o preferido por ele, em
relação ao uso de software para declarar imposto de
renda. Uma escolha amparada num direito que a
Constituição Federal diz ser dever do Estado proteger, mas que o
órgão arrecadador da União vinha boicotando, sob
cobertura de uma decisão alegadamente técnica no escopo
de sua alegada autonomia, talvez por inércia em práticas negociais ditadas por fornecedores de TI.
Alguns declarantes, fora dos quadros da Receita, queriam exercer o
direito, que
entendem constitucional, de assim conhecer o tal código e agora
um deles o conhece. A ponto de tê-lo adaptado para rodar
sobre plataformas cujo código também se pode assim
conhecer. A ponto de por
à prova seu conhecimento, compartilhando-o. Disponibilizando,
inclusive com código fonte, o pacote adaptado para rodar em
plataformas livres (embora sem interface gráfica, em
http://www.lsd.ic.unicamp.br/~oliva/snapshots/irpf2007-livre).
Se tal compartilhamento incomoda a outros declarantes, basta-lhes
ignorar aqueles e o conhecimento que compartilham. Aqueles preferem
usar critérios morais sobre uso de software diferentes dos
preferidos pelos incomodados, só isso. Eles
não vão obrigar ninguém a adotar os mesmos
critérios morais que os deles. O que eles querem, é que o
titular
do código original reconheça o direito deles exercerem
os seus próprios critérios morais, relativo ao uso de
software para intermediar a manifestação
obrigatória de sua própria vontade. E que se considere o
mérito e o valor de seus critérios.
De
qualquer forma, se os códigos originais, seja do software para
preparar e enviar declarações, seja dos softwares que
internamente processam essas declarações ou as
arrecadações, são
bem cuidados pelo titular (Receita), conforme indicam os
critérios
morais (relativo ao uso de softwares) preferidos por quem se incomoda,
então não há
motivo para extrapolar o incômodo e desconfiar que esse cuidado
degradaria só porque alguém agora deu a conhecer, por
sadia razão, o código fonte de
um desses softwares.
Lógica de motivações
Aos que buscam conhecer esse código antes motivados por
critérios morais (relativos ao uso de
softwares), não cabe estarem também motivados a
prejudicar terceiros: tal motivo se chocaria com o sucesso do motivo
primeiro, pois o sucesso do primeiro (abertura do código)
possibilitará ao potencial prejudicado escolher
outro em quem confiar. A começar pelo próprio titular do
software original.
Já os que estão antes motivados a prejudicar
terceiros, pela mesma lógica, não irão
compartilhar o que aprenderam. Se estão, por exemplo, empenhados
em vender exploração de
conhecimento (sobre a funcionalidade de código), seja trafegado
ilegalmente a partir de um (pretensa)
exclusividade do titular, seja por esforço e habilidade
próprios, uma vez aberto o código estarão diante
da perspectiva
de enfrentar mais concorrência. O efeito seria o barateamento da
corrupção, acerca do que eu não saberia opinar se
é
bom ou ruim para a coletividade, mas poderia intuir que tornaria menos
vantajoso o acobertamento de abusos de poder.
A transparência, costuma-se dizer, é oxigênio para
a democracia. Neste caso quem quiser, por sadia razão, estudar o
código aberto poderia oxigená-la contribuindo com o
titular do software
no seu aprimoramento. O titular, obviamente, continua controlando
a evolução do software, mas podendo contar agora com um
influxo de propostas
de melhoria ou de correção de vulnerabilidades, a partir
de sugestões dos interessados. Como já faz o governo
federal, por exemplo, com o software de inventário CACIC, e como
poderia fazer com muitos outros softwares cuja função
é pública.
A quem a liberação do código do programa de
declaração da Receita incomoda por motivos pueris ou paranóicos, porém honestos, minha
sugestão é singela: continue confiando na Receita, para o
que der (declaração por computador) e vier (software). Mesmo se
os motivos do incômodo forem incertos, ainda assim, ignore quem
liberou ou quer conhecer esse código, e suas razões. Mesmo se
os motivos para se sentir incomodado forem pudicos, como por exemplo, se a visibilidade dos
critérios morais preferidos por aqueles
expõe, por comparação, inconsistências, incertezas ou
fragilidades no seu critério preferido.
Para
esse caso, tenho um recado adicional: a
revolução digital está lhe convidando a rever seus
conceitos. Especialmente seus conceitos sobre confiança.
Especialmente os fiados na força das marcas. Especialmente
quando esses conceitos contaminam critérios para
terceirização do desenvolvimento de softwares ou do
processamento de dados. Mesmo que isso incomode, as ações
de ativistas de organizações como a FSFLA cumprem uma
função social: no caso, a de desvelar o incômodo
fato de que, quanto mais informatizada estiver a sociedade, tanto mais
delicadas serão suas entrelaçadas teias de riscos,
responsabilidades e confiança.
Se a mensagem desvelada incomoda, atirar no mensageiro não
resolve. Em se tratando do
exercício de direitos constitucionais, ignorar critérios
morais de terceiros que causam incômodo é
mais honesto -- e reconhecer-lhes o direto de assim exercê-los,
ou seu mérito, ainda mais honesto --
do que pintar em falsas cores ou valores quem os exerce ou neles
apontar, sem
nenhuma prova ou indício, intenção criminosa. Em
jogo está o futuro da democracia, do Estado e da cidadania.
Autor
*
Pedro Antônio Dourado de Rezende é
matemático, professor de Ciência da
Computação
na Universidade de Brasília (UnB), Coordenador do Programa
de
Extensão em Criptografia e Segurança
Computacional da
UnB, ex-representante da sociedade civil no Comitê Gestor da
Infra-estrutura de Chaves Públicas brasileira (ICP-BR),
conselheiro do Instituto Brasileiro de Direito e Política de
Informática e da Free Software Foundation Latin America. www.pedro.jmrezende.com.br/sd.htm
Direitos autorais:
Pedro Antônio Dourado de Rezende publica este artigo sob licença Creative Commons (CC NC-ND-2.0):
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