Pontos gerais mais importantes
- Não legislar pela exceção, criando leis centradas em aberrações de conduta virtual. Os efeitos colaterais sobre os direitos de quem usa em boa fé a informática podem descompensar os efeitos inibidores que a lei busca.
- Não criar tipos penais em aberto, de descrição imprecisa e interpretação subjetiva. O poder discricionário assim gerado para o Estado e para fornecedores de tecnologia erode desde valores maiores, constitucionais e humanistas, até aqueles pela defesa do consumidor.
- Não ignorar responsabilidades subsidiárias, de fornecedores de bens intangíveis. Estratégias negociais dos fornecedores de TICs, especialmente as dos monopolistas, moldam o perfil de riscos na esfera virtual para a sociedade e o legislador, que por sua vez influi na eficácia das metas de leis do gênero.
- Não se amparar em penas desproporcionais, em critérios frouxos de admissibilidade de prova ou em inversão do ônus pelas mesmas para compensar as dificuldades naturais de se legislar sobre o virtual. O efeito será o de retroalimentar os colaterais acima.
Sobre o substitutivo aos projetos de lei de crimes digitais apresentado pelo senador Azeredo.
O substitutivo em tela, que ameaça pulverizar oito anos de negociação em torno de um consenso para aprovação de lei sobre cirmes digitais na Câmara dos Deputados, abusa, em todas as sete versões já vindas a público, na violação dos quatro principios gerais acima expostos. Abaixo, uma enumeração das principais manifestações deste abuso, conforme opinião inclusive da subprocuradora geral da República, pronunciado em audiência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados em novembro de 2006 (transcrição em http://www2.camara.gov.br/comissoes/cdhm/notastaq/nt14112006.pdf)
1) "O guarda-chuva do acesso indevido: um cheque em branco para a polícia prender e o judiciário condenar qualquer internauta brasileiro"
A criminalização do "acesso indevido a rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado" (art. 154-A). Trata-se de um crime de mera conduta, que independe do resultado ou do dano efetivo causando pelo que venha a ser interpretado como "acesso indevido". A criminalização apenas do acesso, conforme previsto no art. 154-A, não respeita o princípio da taxatividade, que impõe que as figuras delitivas sejam constuídas com objetividade, com limitação das cláusulas gerais e com exclusão dos tipos penais abertos.
"Devido ao princípio da reserva legal é que se diz que o Direito Penal positivo é um *sistema fechado*. A norma incriminadora traça com precisão a esfera do ilícito, através de uma incriminação *taxativa*, exata, auto-delimitada, o que impede a sua elasticidade, como também o emprego da analogia aos tipos incriminadores e a interpretação extensiva."
Sugestão de leitura: http://www.jurisnet.adv.br/htm/notas_dpenal/not_dpenal_legal.htm
2) A desproporcionalidade de penas: a mera conduta é mais grave do que o dano efetivamente causado
A pena prevista para os crimes de mera conduta criados pelos arts. 154-A e 154-B (reclusão de 2 a 4 anos) é maior do que a pena a ser aplicada ao agente que efetivamente gerou dano ou outro resultado advindo desses crimes, em concurso material. O substitutivo, no art. 3, acresce o art. 183-A ao Código Penal, equiparando à coisa o dado ou informação em meio eletrônico:
“Art. 183-A. Para os efeitos penais equiparam-se à coisa o dado ou informação em meio eletrônico ou digital ou similar, o bit ou a menor quantidade de informação que pode ser entendida como tal, a base de dados armazenada, dispositivo de comunicação, a rede de computadores, o sistema informatizado, a senha ou similar ou qualquer meio que proporcione acesso aos anteriormente citados.”
Ou seja: havendo dano aplica-se o art. Art. 163 (crime de dano) - Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa. Cuja pena é muito inferior ao à proposta do PLS para o crime de mera conduta (acesso indevido)
Justificativas públicas para apresentação do substitutivo do Senador Azeredo
Os principais justificativas, apresentadas em público, para encaminhamento do referido substitutivo são as seguintes.
Abaixo comentamos sobre a inadequação dessas justificativas públicas.
- Adesão do Brasil ao Tratado de Budapeste sobre Crimes Digitais.
- Combate à Pedofilia, Crimes contra a honra e semelhantes na Internet.
Tratado de Budapeste
A adesão ao tratado é por convite, e aprovação de leis da natureza proposta no substiutivo não é nem garantia, nem condição necessária para adesão ao referido tratado. O texto do referido tratado, no atual estágio, contém apenas sugestões para legisladores nacionais. A título de exemplo das distorções e exageros, o Tratado sugere a aprovação de leis que criminalizem o acesso ilegal a sistemas e redes conectadas à Internet, ao passo que o referido substitutivo tenta criminalizar acesso INDEVIDO a tais sistemas. Mas "acesso ilegal" é definido em Lei, enquanto "acesso indevido", segundo o referido substitutivo, nem quem definiria é ali prescrito.
Combate à Pedofilia, Crimes contra a honra e afins na Internet
É fato que existem muitos criminosos (pedófilos, neonazistas, estelionatários, etc) que vem se utilizando dos serviços da rede Internet - notadamente o Orkut - como *meio* para a prática de crimes comuns e já previstos na nossa legislação. No entanto, segundo o IBOPE/NetRatings, temos 32.5 milhões de internautas no Brasil. Não podemos, ao arrepio da constituição, suprimir direitos e liberdades civis de toda uma coletividade para supostamente reprimir as condutas criminosas de uma minoria, quando se sabe que a raiz do problema não é legislativa, mas sim operacional. Se o objetivo de propostas como a do substitutivo do senador Azeredo for mesmo a de contribuir no cambate a esse tipo de crime, haveria que se considerar sugestões pautadas por quem atua pelo terceiro setor nesse combate, como por exemplo a ONG Safernet, que em 2005 divulgou as seguintes recomendações aos legisladores:
Autoridades Policiais
Montar uma equipe específica e especializada por receber e investigar as denúncias referentes ao conteúdo pornográfico infanto-juvenil na Internet; uma equipe que integre agentes policiais, peritos técnicos e um delegado voltados única e exclusivamente para ações de enfrentamento a esse problema específico;
- Promover uma interlocução ágil com magistrado responsável por atuar nas questões pertinentes ao tema, mediante convênio com o Poder Judiciário;
- Aumentar de forma substancial os recursos orçamentários, de forma permanente, investidos no órgão do DPF responsável pelo recebimento e investigação das denúncias referentes ao material pornográfico infanto-juvenil na Internet;
- Promover a articulação internacional, mediante a troca da saberes e a formalização de parcerias institucionais entre agências policiais de diferentes países é um fator essencial para sucesso do enfrentamento policial à proliferação da pornografia infanto-juvenil na Internet;
- Fortalecer a parceria e interlocução com os canais de denúncia, e provedores de acesso e conteúdo. Nesse rol de parceiros, deve-se incluir a participação do magistrado e do membro do Ministério Público, de maneira que as ações procedimentais de investigação, a saber, recebimento da notícia do crime devidamente fundamentada pelo canal de denúncias, a investigação e perícia policiais, a solicitação de mandado judicial, e a obtenção dos elementos comprobatórios de autoria e materialidade do crime, aconteçam da forma mais célere possível;
- Incluir os procedimentos de investigação policial específicos para o crime de produção e distribuição da pornografia infantil na Internet nas ações das superintendências estaduais;
- Dirimir o conflito de competências para a investigação desse crime no nosso país, mediante unificação de esforços e construção de inteligência policial efetiva no enfrentamento ao problema em questão por parte do Departamento de Polícia Federal, do Ministério Público Federal e os órgãos da Polícia Civil nos Estados;
Provedores de Acesso e Conteúdo
A responsabilidade não deve se resumir à participação em campanhas de educação e conscientização, mas abranger financiamento de iniciativas de enfrentamento (a exemplo de um modelo integrado de canal de denúncias nacional), monitoramento pró-ativo do conteúdo disponibilizado nos seus servidores, elaboração de um código de conduta realmente efetivo e monitorado, formalização de parceria com autoridades policiais e canais de denúncias profissionais, além de possuir um setor específico para lidar com questões vinculadas ao enfrentamento da proliferação da pornografia infanto-juvenil na Internet, como encaminhamento automatizado de denúncias recebidas, bloqueio do acesso a conteúdo ilícito, concomitante à preservação das evidências para posterior investigação criminal;
Os provedores não devem ser os únicos representantes da iniciativa privada conclamados a efetivamente fazer valer a sua responsabilidade social. As responsabilidades devem ser compartilhadas com um maior espectro de empresas que de forma direta ou indireta atuam na área: desenvolvimento de software (filtros de conteúdo, mensagens instantâneas); empresas de telefonia celular (sobretudo em virtude da convergência entre a telefonia celular e a Internet); assistência técnica de equipamentos (câmeras digitais, computadores, memórias etc.); administradoras de cartão de crédito; pontos de acesso (Internet cafés); motores de busca (/Google/, Yahoo, etc.);
- Desenvolver novas tecnologias, negócios e propostas comerciais correlatas atreladas à incorporação de medidas educativas e preventivas pertinentes;
- Elaborar e implementar, consensualmente, um Código de Conduta Nacional dos Provedores que efetivamente disponha sobre as obrigações e responsabilidades dessas instituições face o problema da proliferação da pornografia infanto-juvenil na Internet, incluindo os mecanismos de cooperação com as autoridades policiais e canais de denúncia e aplicação das sanções devidas em caso de desvios por parte de seus signatários.
- Implementar um setor específico dentro da própria instituição provido de pessoal devidamente treinado para tratar da pornografia infanto-juvenil e que seja responsável por promover a interlocução com autoridades policiais, canais de denúncia e denunciantes, por receber demandas externas (denúncias, solicitações de informações por parte das autoridades policiais), bem assim como desenvolver e propor mecanismos de enfrentamento ao problema;
- Elaborar medidas educativas e preventivas nos programas governamentais de inclusão digital, sobretudo, de maneira a inserir o tema das violências cometidas contra crianças e adolescentes na agenda de tais programas;
- Promover a articulação com empresas correlatas que desenvolvam medidas de enfrentamento ao redor do mundo, de forma a compartilhar experiências e superar obstáculos comuns;
- Incorporar um diploma jurídico específico para a devida regulação das atividades dos provedores no território nacional, levando-se em consideração o papel dos provedores para o enfrentamento da proliferação da pornografia infanto-juvenil na Internet no Brasil.
Autor
* Pedro Antônio Dourado de Rezende é matemático, professor de Ciência da Computação na Universidade de Brasília (UnB), Coordenador do Programa de Extensão em Criptografia e Segurança Computacional da UnB, ex-representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Infra-estrutura de Chaves Públicas brasileira (ICP-BR). www.pedro.jmrezende.com.br/sd.htm
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