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Entenda o que ocorreu no caso SCO vs. Novell


Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
31 de Março de 2010




A SCO acaba de perder, em 1a. instância, a ação judicial que moveu contra a Novell em que alega ser ela, e não a Novell, detentora a dos direitos autorais do Unix, por conta de um contrato de sessão de direitos assinado na década de 80. Com isso, muitos agora se perguntam: Será que, com essa decisão, a Novell pode cobrar royalties de distribuições com kernel Linux? Este artigo procura explicar detalhes do caso visando a dirimir dúvidas desse tipo.

Para uma boa referência em inglês, temos o portal Groklaw, que muito contribuiu para um desfecho justo deste caso. A primeira matéria lá publicada explicando a decisão está em http://www.groklaw.net/article.php?story=20100330152829622. Começamos aqui com a observação de que várias versões do Unix existiram e existem. O que o juri determinou por unanimidade, em recente sentença judicial na corte federal de Utah, foi que a Novell -- e não a SCO -- detém os direitos autorais do Unix version 7 (circa 1979).

Para poder cobrar royalties de uma versão qualquer do kernel Linux com base nesses direitos, quem detém esses direitos (hoje a Novell) teria que provar a existência de uma cadeia de versões de software onde cada passo da cadeia poderia ser caracterizado como uma etapa de trabalho derivativo, em que a obra seguinte é uma derivação incremental da obra autoral anterior, desde o Unix version 7 de 1979 até a versão do kernel em questão, e com esta cadeia testar a validade jurídica da chamada "teoria escada".

A tese -- batizada de "teoria escada" -- que a SCO procurou testar em processos judiciais que visavam prejudicar a confiabilidade jurídica no uso livre do Linux, sob a hipótese (errada) de ser ela a detentora dos direitos do Unix version 7, consiste em que, uma vez comprovada a existência de uma tal cadeia de derivações, isso daria ao detentor dos direitos autorais do primeiro degrau da cadeia -- no caso, supostamente a SCO (caso prevalecesse sobre a Novell neste processo) --, o direito de cobrar pelo uso de todas as subsequentes obras derivadas na dita "escada", inclusive a última, que no caso seria a versão do kernel Linux na qual primeiro se incorporou um sistema de arquivos com journaling.

Especificamente, a "teoria escada" supõe que os direitos patrimoniais de autor, na jurisdição norte-americana, se propagam por obras derivadas independentemente de quantos degraus venham a ter essa escada, e independentemente da vontade ou anuência dos detentores dos direitos autorais dos incrementos intermediários.

Mas a SCO não conseguiu provar, no caso em questão, a existência de uma tal cadeia. Nem mesmo, para os "degraus" que ela tentou apresentar como sendo parte desta suposta cadeia, provar que o incremento entre a obra anterior e a seguinte poderia ser caracterizado como derivação, para efeito de aplicação do direito autoral visando a sua "teoria escada". Prevaleceu, para os "degraus" que a SCO tentou apresentar, a interpretação de que se tratavam de "mera agregação", para efeito de criação de obra coletiva (como permite livremente, por exemplo, a GPL, licença vigente para as componentes dos "degraus"  apresentados).

Assim, nesse processo a SCO não conseguiu testar sua teoria, tendo podido apenas aventá-la como tese jurídica. Nem pôde testar a hipótese de haver uma linha evolutiva entre o Unix version 7 e algum kernel Linux 2.x onde cada passo constituiria trabalho derivativo da obra anterior, com a qual pudesse testar a sua "teoria escada". Desta forma, o que a Novell ganha, neste caso, eu diria, não é bem o direito de cobrar royalties por versões do kernel Linux, mas o direito de, querendo, testar juridicamente a "teoria escada" e a hipótese fática de que a teoria se aplica numa escada que começa com o Unix version 7 e termina nalguma versão do kernel Linux. Hipótese essa muito pouco provável, haja vista a escassez de provas produzidas por quem levou sete anos tentando (a SCO, nesta ação judicial).

Outra confusão frequente é a de que o caso tem a ver com patentes, que podem incidir sobre o kernel Linux. Mesmo que portais de notícias de TI espalhem essa desinformação, o caso é sobre direito autoral e não tem nada ver com patentes. Há até portais que insistem, como o TIinside; ao ser notificado, via comentário público, sobre o erro na matéria linkada o editor argumentou (em réplica ao comentário) que, como o caso é sobre "propriedade intelectual" do Unix, como patentes são tal coisa e cobrem software, então o caso SCO vs. Novell é sobre patentes.

Patente "de software" incide sobre idéia expressável através de código fonte, e direito autoral incide sobre expressão criativa na forma de código fonte. São "camadas" diferentes de direitos. Assim como, no transporte público, o direito de alguém dirigir um ônibus é diferente do direito de alguém andar de ônibus. O fato de direitos independentes poderem incidir sobre o mesmo objeto não deve ser tomado como motivo para confundi-los, embaralhá-los ou mesclá-los. Exatamente o que o termo "PI" tem o condão de fazer, no domínio neurolinguístico (como mostra o episódio com o TIinside), o que serve para legitimar, na esfera normativa, uma radicalização crescente dos regimes de copyright, de patentes, de marcas, de cultivares, etc.

Contudo, haja vista como transcorreram (e transcorrem) as batalhas jurídicas da SCO contra meio mundo, o que o caso SCO vs. Novell indiretamente mostra, aqui também em relação a patentes, é o seguinte: Caso algum detentor, ou suposto detentor, de patente supostamente incidente sobre o Linux se meta a extorquir alguma empresa envolvida no desenvolvimento e/ou negócios relativos ao Linux, ela enfrentará uma defesa que sabe usar o processo colaborativo também no campo jurídico, envolvendo outros interessados na preservação da liberdade associada ao Linux (no caso das patentes, o trabalho colaborativo seria muito útil, por exemplo, para mostrar que a patente é frívola, produzindo "prior art")

Resta então a pergunta sobre até que ponto os direitos autorais do Unix influenciam o Linux.

Influenciam na medida em que os casos da SCO versus meio mundo vão se resolvendo. O veredito do caso SCO vs. Novell, por exemplo, terá amplas repercussões no caso SCO vs IBM (a favor da IBM), onde o direito em questão não é diretamente o autoral, mas o direito civil relativo a contratos; no caso, para desenvolvimento de obra autoral coletiva (coletiva no sentido jurídico, apenas entre ambas, e não no sentido comunitário, como no Software Livre).

Se A Novell pode ou não um dia tentar fazer o que a SCO tentou, a saber, extorquir royalties de empresas cujo negócio envolve o kernel Linux (tais como a Canonical ou Red Hat), já que ela (Novell) detém os direitos autorias do Unix, a resposta teórica (sim) difere da prática (quase certamente não). Nos termos acima delineados, sim, a Novell poderia tentar, mas os limites desses termos agora conhecidos da sentença judicial tornariam a tentativa, a meu ver, muito pouco eficaz. Esse é o ponto forte da filosofia que associa o licenciamento permissivo ao desenvolvimento colaborativo, da filosofia do Software Livre.



Autor

Pedro Antônio Dourado de Rezende é matemático, professor de Ciência da Computação na Universidade de Brasília, Coordenador do Programa de Extensão em Criptografia e Segurança Computacional da UnB, Conselheiro do Instituto Brasileiro de Direito e Política de Informática, ex-conselheiro da Free Software Foundation América Latina, ex-representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Infra-estrutura de Chaves Públicas brasileira (www.pedro.jmrezende.com.br/sd.php)

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