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Nervosismo e Cibercrime

Prof. Pedro Antônio Dourado de Rezende *
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
9 a 10 de julho de 2008


No momento em que escrevo há bastante nervosismo na Esplanada, coração da República e da cidade onde moro, com a prisão do banqueiro Daniel Dantas. Motivos de sobra para tanto nervosismo o jornalista Bob Fernandes aponta em artigo publicado na revista eletrônica Terra Magazine [1]. Numa dessas irônicas coincidências, no aniversário da Revolução Constitucionalista de 1932, logo após o presidente do Supremo Tribunal Federal, responsável por guardar e interpretar a Constituição, ter exibido algum do seu, perante câmeras de telejornais.

Mas é uma outra exibição, passada sem interesse da mídia no dia seguinte, que será mote destas reflexões: a de um senador que vem cumprindo um papel tipo "venha-a-nós", para acalmar os que se indignaram e se alarmaram com dispositivos abusivos na proposta de lei contra "crimes informáticos" que estava a ponto de ser votada pelo plenário do Senado. Ou para acalmar os que desconfiaram do modo peculiar de debate e tramitação dessa proposta, das quais ele se fez coadjuvante [2]. O senador perdeu a calma ao responder a uma silenciosa manifestação desta indignação e alarme, enrolando-se na bandeira do combate à pedofilia, durante a abertura do Fórum de Inclusão Digital que ocorria Brasília [3]. Uma exibição dificilmente compatível com este papel.

No que se refere ao produto em questão, encomendado para ser entregue ao ordenamento jurídico pátrio num prazo ou que relaxa ou se esgota com todo esse nervosismo, alguns sinais teriam aberto espaço para este seu papel e para alguma acomodação. Pero no mucho. O relator firmou-se em manter um certo dispositivo, um que pode induzir provedores de internet a se tornarem ciberagentes policiais (proposta de inciso III ao art. 22). Enquanto escrevo este artigo a matéria atropelou a pauta, foi aprovada no plenário do Senado e volta à Câmara, para uma tramitação que promete, digamos, continuar curiosa. A começar por se saber quem, afinal, no Senado conhecia a versão na qual votou. Sobre isto não podemos saber muito. Mas podemos, pelo menos, perquirir o por quê desse dispositivo imexível, nessa tramitação trepidante.

Um provedor, conforme insiste o relator, terá que saber quais crimes são passíveis de acionamento penal público incondicionado, e quais não o são, para saber quando repassar, ou não, denúncia da qual tomar conhecimento, se não quiser se tornar ele mesmo enquadradável como criminoso. Sabe alguém dizer quais tipos de crime são assim passíveis, e quais não o são? (eu ainda não encontrei quem pudesse me responder). Ou seja, na prática, acabará valendo o efeito: denuncia-se qualquer suspeita. O que transformará provedores em capatazes do escravagismo digital proprietário prenunciado por um outro dispositivo, proposto para o art. 285 do Código Penal [4]. Provedores de Internet terão que agir como cibercapatazes, e, a partir da suas automatizadas denúncias, o Estado poderá, legalmente, perseguir o que lhe convier. Inclusive crimes tipificados, na proposta, por norma penal em branco a ser preenchida por interesses privados atuando na esfera virtual.

No episódio XII dos "Sapos Piramidais", apresentado no 9º FISL, o destaque foi para o "forum shifting": quando interesses monopolistas e/ou totalitaristas promovem uma iniciativa de radicalização normativa em um fórum internacional (OMC, OMPI, UE, ALCA, etc.), e tal iniciativa se vê neutralizada, atrasada ou atolada por mobilização no terceiro setor, na periferia do capitalismo ou por alianças entre tais (ex.: TRIPS+ na OMC, SCCR na OMPI, patentes de software na UE, subsídios na ALCA), os interessados na radicalização abandonam o Fórum e se reagrupam, fundando ou “sequestrando” outro fórum. A novidade passa a ser, como no fórum demandado pela RIAA -- o ACTA [11] --, que as negociações podem recomeçar secretamente, e serem assim levadas até onde possível [5].

Autoridades do comércio de alguns países centrais que participam do ACTA querem, pelo pouco que se sabe do que já vazou, reforçar uma das metas buscadas pelos negociadores da convenção de Budapeste, qual seja, a de transformar provedores em cibercapatazes [6]. Trata-se de uma medida capaz de diluir o custo da eficácia normativa na esfera virtual, e que desconsidera efeitos colaterais. Tal como no anterior ciclo escravagista, na esfera laboral. Um capataz é um ente privado capaz de fazer, contra quem dele depende, justiça com suas próprias mãos salvo quando esta desfavoreça um interesse maior, que para isso o coage e/ou o protege. Pela proposta, provedor que não repassar denúncia de crime passível de acionamento penal público incondicionado -- o que quer que venha a ser isso -- seria (ou será) também criminoso.

Na conveção de Budapeste, os interesses radicalizantes ali representados foram de entidades policiais dos países centrais do capitalismo, para os quais a grande ameaça é à riqueza representada por bens intangíveis. O controle sobre a apropriação destes bens vem se erodindo, com a crescente perda de eficácia dos mecanismos de manutenção de escassez artificial na esfera virtual necessários a tal apropriação. A erosão desta escassez artifical e virtual os assusta, enquanto o aumento de uma escassez real, ocorrendo na esfera material com energia e com alimentos, não lhes interessa. Pelo menos não diretamente.

A escassez virtual segue erodindo, e a escassez material segue crescendo, sem que os interesses representados por essas entidades policiais tenham poder de persuasão normativa suficiente para alterar o quadro geral em ritmo hábil. Eles têm menos poder do que os grandes interesses comerciais pós-industriais, que por sua vez deles precisam para dar eficácia a suas normas de "livre-comércio". Os dois tipos de interesse, então, logicamente confluem. Defende-se lá, no ACTA, o que se pede aqui, à guisa da convenção de Budapeste. Dentre as confluências importantes, a "capatazização" dos provedores. Buscada agora com maior poder de persuasão, passível de sanções comerciais (bancadas por projeção militar) contra recalcitrantes. Via novas normas a serem ditadas, e logo [9], pelo ACTA. Há nisso duas lições, e uma dúvida.

A primeira lição dá sentido a um comentário que o senador relator da matéria proferiu no seminário da Câmara onde se discutiu sua proposta de substitutivo em 2006 [10]: que não adianta resistir à sua proposta, pois as mudanças normativas que ela propõe uma hora virão, de uma forma ou de outra. A segunda lição é sobre como podem convergir os interesses que movem sua proposta e aqueles comuns entre os bilderbergers, para os quais um governo global e totalitário, consentido ou oculto, será útil e/ou inevitável. São lições que também deixam muitas pessoas nervosas, algumas por razões opostas ao da visão de um banqueiro em algemas. Razões que podem levá-los a desqualificar o contéudo dessas lições como bravata, paranóia, conspiracionismo; e o conteúdo da proposta, como inevitável, inapelável, infugível.

Se, contudo, tais lições forem significativas, então bandeiras de camuflagem serão úteis e importantes nesse estágio do processo de radicalização normativa globalizada. Bandeiras tais como "guerra ao terrorismo" ou "combate à pedofilia", esta a preferida pelo marketing que promove o dito substitutivo. Como indica a disputa política em torno dela, na CPI hora em curso sobre o tema e em projetos de lei concorrentes, à luz do conteúdo de seus dispositivos a respeito [8]. Resta a dúvida: sobre onde se inovaria mais, em se tratando de legislar à sorrelfa. Sobre onde tudo isso vai dar, não deve restar dúvida: está às claras no final do mais antigo e circulado dos livros.




Referências

[1]- Bob Fernandes: PF viveu guerra e espionagem para prender Dantas
http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI2998733-EI6578,00.html.

[2]- FBI - IC3: Internet Crime Complaint Center Annual Reports
http://www.ic3.gov/media/annualreports.aspx

[3]- Everton Rodrigues: Senador Azeredo conseguiu convencer Senador Mercadante a aderir ao movimento pela vigilância na internet?
http://www.softwarelivre.org/news/11759

[4]- Pedro A D Rezende: Prioridades na Segurança Digital | Pulando do Décimo Andar. http://www.pedro.jmrezende.com.br/trabs/prioridades.html#decimoandar

[5]-  James Love: The Counterfeit treaty (June 3, 2008)
http://www.huffingtonpost.com/james-love/the-counterfeit-treaty_b_104831.html

[6]- John Halley, Los Angeles Times blog: ACTA - Turning ISP into enforcers
http://opinion.latimes.com/bitplayer/2008/06/acta-turning-is.html

[7]- Alex Jones, www.infowar.com: Bilderberg 2007: Welcome to the Lunatic Fringe
http://www.infowars.com/articles/nwo/bilderberg_07_welcome_to_lunatic_fringe.htm

[8]- Pedro A D Rezende: Prioridades na Segurança Digital | Prioridades no combate ao Crime Digital. http://www.pedro.jmrezende.com.br/trabs/prioridades.html#crimevirtual

[9]- Monika Ermert: G8 Governments Want ACTA Finalised This Year, SPLT Talks Accelerated
http://www.ip-watch.org/weblog/index.php?p=1136

[10]- Trasncrição do Seminário Sobre Crimes Digitais, Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados
http://www2.camara.gov.br/comissoes/cdhm/notastaq/nt14112006.pdf

[11]- Proposed US ACTA multi-lateral intellectual property trade agreement (2007)
http://www.wikileaks.org/wiki/Proposed_US_ACTA_multi-lateral_intellectual_property_trade_agreement_(2007)




* Autor
Pedro Antonio Dourado de Rezende

Professor concursado no Departamento de Ciência da Com­putação da Universidade de Brasília, Bra­sil. Advanced to Candidacy a PhD pela Universidade da Cali­fornia em Berkeley, onde teve sua pretensa tese de doutorado recusada em 1983. Membro do Conselho do Ins­tituto Brasileiro de Política e Direito de In­formática, ex-membro do Conselho da Fundação Softwa­re Li­vre América Latina, e do Comitê Gestor da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-BR), en­tre junho de 2003 e fevereiro de 2006, como representante da Sociedade Civil. http://www.­pedro.jmrezende.com.br/sd.php


Histórico deste Documento

v1.0 - 10/07/08: Publicada no portal do autor.

v1.1 - 10/07/08: Publicada no portal do autor, atualizada da versão v1.0 com a inclusão da ref. [11]


Direitos do Autor

Pedro A D Rezende, 2008:
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