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Informática, Governo e Liberdades

Publicado no Observatório da Imprensa em 6/08/03

Prof. Pedro Antônio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
4 de Agosto de 2003


As falácias do retrocesso

A "Coalizão pela Livre Escolha do Software", apoiada pela Comptia (inclui Microsoft, Intel e Dell), através de entrevista e artigo recente de Raphael Mandarino Jr. na Gazeta Mercantil (9 de Julho), defende que "o governo pode comprar Linux se quiser, mas não deve aprovar leis dizendo que preferencialmente tem que usar software livre, [pois] isso é inconstitucional". Dizendo-se a favor do usuário, compara a preferência por software livre à experiência de reserva de mercado de informática.

Essas afirmações, repetidas em vários cantos na mídia e portais sobre informática, merecem análise. Tais leis terão como único efeito prático trazer ao debate o negócio do software. O que é software? O que é liberdade? Nisso já surtem efeito, mesmo antes de promulgadas. Quem defende o status quo já se vê obrigado a expor argumentos, diante de inequívocos sinais de fadiga do modelo de negócio que desejam preservar. Ao expô-los, entretanto, não evitam falácias e sofismas, que talvez decorram de falhas na compreensão do que está em jogo.

A pior delas talvez seja a comparação acima, que passamos a analisar. Primeiro, o que essas leis instituem não é reserva. O mercado de software é não-rival (non-rivourous). Ao contrário do hardware, alvo da citada reserva, a venda de uma cópia nada subtrai do estoque. O autor continua autor, e, querendo, também proprietário do mesmo software. Por isso, nos modelos de negócio com software livre, uma cópia em uso é vista como ativo investido em marketing. Não só do software em si, mas nos seus mercados de suporte, serviço e agregação, e por isso pode ser gratuita.

Enquanto o modelo proprietário despreza tal característica. Neste modelo, software é propriedade antes de mais nada, e cópia vendida é passivo: DRM (digital rights management), pirataria, engenharia reversa, bugfixes, compatibilidade retroativa versus obsolescência programada, etc. O debate surge justamente porque, esgotado o ciclo útil deste desprezo, começam a vazar ineficiências do negócio nele baseado. É certo que tais ineficiências ainda não atingem todo tipo de software. Mas já um espectro importante, e crescente, a começar pelos de mais larga escala, como os sistemas operacionais, os middleware de rede, as suites de escritório, de programação, etc.

Segundo, se o que essas leis instituem fosse reserva, não seria de mercado. Ver no software antes uma ferramenta de linguagem digital do que uma mercadoria, se for ato de reserva o será de conhecimento, não de mercado. Prioriza-se o direito ao conhecimento das linguagens digitais, e não os interesses de fornecedores ou os modelos monopolistas baseados em padrões digitais proprietários. Padrões e formatos digitais vêm, progressivamente, sendo havidos como propriedade em uma corrida pela "posse" de idéias, numa esquema de pirâmide da avareza que desabará sob o peso da sua própria incoerência, tornada insana pela lógica monopolista.

Terceiro, se vista como regulamentação, não seria de reserva. Qualquer empresa poderia vencer licitações para fornecimento de software, suporte e serviços correspondentes, inclusive as que já se encontram confortavelmente estabelecidas e irrigadas com generosos contratos. Desde que não exijam que o edital contemple, casado aos dois últimos itens, licenças de uso do software ditadas pelo fornecedor, prática corrente no status quo. Esta exigência é tão absurda que governos frouxos ou mancomunados, e clientes sem cacife, vêm assinando contratos de fornecimento de software sem o direito de conhecer previamente os termos da licença de uso desses softwares (ex: microsoft. ver http://www.cybersource.com.au/cyber/about/ comparing_the_gpl_to_eula.pdf). E seria uma tarefa hercúlea argumentar sobre o interesse público desses termos, caso venham à luz.
 

O mistério da virtualíssima trindade

Se o negócio duma fornecedora se baseia na venda de contratos para uso de software, chamados indevidamente de licenças de uso (EULAs) quando na verdade são contratos de adesão, e estes se baseiam no fato do produtor considerar o código-fonte do software segredo de negócio (modelo proprietário), não há que se imputar automaticamente ideologia, pirataria, emocionalismo ou radicalismo a novas práticas licitatórias, se algum concorrente no modelo livre nelas se puser em vantagem. A tais imputações, sim. Afinal, por que razão as licenças de uso não podem ser negociadas, ou mesmo conhecidas de antemão pelo contratante? E se podem, por que o contratante não pode exigir critérios mínimos para essas licenças, e critérios que reflitam interesse público, no caso do contratante ser o Estado, se é ele quem estará pagando pelo pacote?

O que as tais leis instituem é uma nova política pública, que valoriza a dimensão social da licença de uso do software. Trata-se de se estabelecer critérios para negociação de tais licenças. E o que a coalizão quer, na verdade, é manter a velha política, que só valoriza o conceito de propriedade imaterial conforme ditado pelo fornecedor. Diante do discurso do novo governo sobre TI, a coalizão tenta seqüestrar sua palavra chave -- liberdade -- para forçá-lo a adotar, como "livre escolha" do conceito de software, o seu conceito, que por sua vez descarta outros (ex:. Mandarino é citado, em lapso freudiano, ao dizer comprar linux).

Ocorre que tal fundamentalismo não fornece conceito adequado para a realidade atual que vivemos, e a estratégia da coalizão exalta os que mal conseguem controlar os efeitos da sua própria ignorância. Software livre é uma realidade que emoldura o mundo de hoje. A internet está aí, tendo surgido com ele. Mesmo com grandes monopólios buscando fórmulas para dela se apoderar, de cada três endereços web digitados hoje, dois serão servidos por um software livre (Apache), e quase três resolvidos por outro (Bind). O conceito de software que esta coalizão busca enaltecer, se não embalsamar, fornece, outrossim, escravidão semiológica

Senão vejamos: fosse proprietária, a internet teria surgido? Fosse proprietário todo software, como os programadores aprenderiam a programar? Precisamos libertar a palavra liberdade do seu cativeiro de dólares. Ninguém é contra liberdade de escolha, desde que ela comece pela definição de software. Software é mistério. O mistério da virtualíssima trindade. Para o produtor (pai) é produto intelectual, para o usuário (filho) é inteligência intermediadora, e no ciberespaço (espírito santo dos bits) é a lei. A qual das pessoas desta trindade se privilegia, eis a questão.

Ninguém, portanto, pode se arvorar dono do conceito "software" sem promover uma guerra quase religiosa. Para evitá-la, só com o respeito de todos à liberdade primeva frente ao mistério do virtual. Quem quiser ser apenas usuário, e não antes inquilino, que seja, se puder. Quem quiser separar autoria de posse, retendo e respeitando a autoria e desmascarando a farsa da propriedade do que só existe na mente, que o faça, se lhe aprouver. Não é essa, entretanto, a liberdade que a coalizão defende, ao pregar seu bloqueio na mais alta instância, a do Estado.

Comparar leis que dão preferência ao software livre nos poderes público à antiga reserva de mercado do hardware, para desacreditá-la, é sofismar sobre a ignorância de fatos essenciais, municiando a retórica que oculta sentidos diversos sob a palavra seqüestrada. Como o fato de que hardware e software, apesar de conceitualmente imbricados, contraporem-se em essência material e fabril. Como o fato de que o software tem importante função social -- o de intermediar a inteligência alheia --, com implicações cada vez mais cruciais para a segurança do Estado, ausente na função imediata do hardware e no discurso falacioso da coalizão.
 

Ideologismo e legalismo

Concordo com o Sr. Mandarino que tais leis são ruins. Mas não porque algum pelego ou mercenário se veja em suprema toga para denunciar sua inconstitucionalidade, sua ideologização, seu caráter emocional ou lunático, ou outras baboseiras. Posso dizer, sem me ver juiz no STF, que num governo pelo status quo a política que tais leis instituem seria ignorada. E que, num governo pela mudança, tal instituição não é necessária, pois política pública se faz mais e antes com vontade que com leis. Essas leis são ruins porque são perigosas.

Enquanto as falácias necessárias para ocultar a fadiga do modelo de negócio do software proprietário, modelo que hoje predomina no mercado da informática, ocorrerem em debates no campo econômico, podemos, com alguma chance de sucesso, combater seus sofismas, havendo oportunidade. Porém, ao penetrarem na esfera jurídica, injetadas pelo poder econômico através de "especialistas" do Direito e do jornalismo informático, em reação à promulgação ou à política de TI que tais leis insculpem, será muito mais difícil desarmá-las.

E desarmá-las não será o único problema. Mais cara será a fatura dos seus efeitos, em custo social. As mais nefastas dessas injeções de sofismas talvez não estejam em ataques diretos, mas em insidiosas abordagens envernizadas de erudição, onde advogados que talvez nunca leram uma licença GPL (software livre) tentam seqüestrar conceitos de software, armados de juridiquês e de fama por douto saber jurídico (assunto do próximo artigo).

O debate sobre liberdade de escolha do software deve ser conduzido olhando-se principalmente para a frente, com equilíbrio e espírito público, e não só para trás, com rancor e mesquinhez. E deve centrar-se em fatos incontornáveis. Como o fato de que um modelo se torna mais racional do que outro na medida em que os softwares se tornam mais complexos, interligados e ubíquos, e o de que o status quo buscará bloquear, por meios a seu alcance, o desmonte da bomba relógio armada, através do consenso de Washington, pelo neoliberalismo fundamentalista e inconseqüente do qual é filha a política de informática passada, que só enxerga fluxos de caixa.

Uma dessas investidas bloqueantes se deu, recentemente, através de matéria da revista IstoÉ Dinheiro de 30 de Julho (http://www.terra.com.br/istoedinheiro/309/ ecommerce/309_todo_poderoso.htm). Não se querendo, sabendo ou podendo atacar a nova política, ataca-se um dos responsáveis pela sua execução, enquanto se fomenta a cizânia entre estes. Começam os autores com uma distorção, citando "o todo-poderoso do governo do PT na área de tecnologia.", referindo-se ao porta-voz do governo PT na área de TI -- tecnologia da informação --, pela Casa Civil.
 

Livre ou isolado?

Tecnologia não é o mesmo que tecnologia da informação, mas os autores repetem a confusão, na mesma toada em que arrolam a militância do seu alvo, na juventude, em movimento stalinista. Esse duplo estrabismo torna a matéria parecida a uma torpe tentativa de se induzir medo, confusão e incerteza sobre a dimensão ideológica da política em questão, em si totalmente ignorada. Ao mencionarem o desejo do porta-voz levar "a bandeira do software livre" para o Planalto, omitem-se de explicar o que vem a ser tal bandeira, ou onde mais tremula, e como e quem mais a carrega pelo mundo. Ou mesmo o que seja software livre, várias vezes trocado por falsos sinônimos.

Preferem citar o messianismo, a cruzada, o stalinismo e a passagem pelo MR-8 do seu portador na Casa Civil, num espaço jornalístico dedicado, conforme cabeçalho da página web, ao comércio eletrônico. Ao falarem do "mercado de 5 bilhões de dólares" que estaria "sob influência" deste porta-bandeira, omitem qualquer referência à parte da bolada que tem constituído flagrante desperdício ou corrupção, inatacáveis na forma pregressa de se contratar, como apontam documentos em várias auditorias e ações de improbidade administrativa que se arrastam na Justiça, deveras ocupada, mas antes em defender, por boa parte dos seus, seus próprios privilégios.

Também omitem explicações ao citarem (sem nomear) empresas que acreditam tratar-se de "uma cruzada que pode levar o Brasil ao isolamento no mercado internacional, criando nova reserva de mercado de software equivalente à reserva de hardware dos anos 80". Onde interessa, sobre o negócio do software em si, são ralos. Preferem falar do "currículo ralo" de quem dizem querer conduzir a nova política de TI do governo com excessivo e auto proclamado poder. Preferem fofocar sobre divergências internas na disputa pelo poder sobre essa política.

Para o leitor atento, esse ataque deixa uma dúvida. Sobre quais, de quem e para o quê mesmo, são as cruzadas hodiernas que têm na informática os seus campos de batalha. Seguindo o rastro das denúncias, já que software livre não é invenção de stalinistas nem de petistas megalomaníacos que tomam de assalto a Casa Civil, há que se perguntar sobre quem mais acompanhará o Brasil, ao sermos levados a "isolamento do mercado internacional" com essa nova política de TI.

A mais vistosa companhia nesse "isolamento" será, certamente, a IBM. Tendo perdido, há quase vinte anos, a pole na corrida do software proprietário, ela aprendeu as lições da História e vem investindo pesado em software livre (GNU/Linux, Apache), há mais de quatro anos. Não por filantropia: o retorno generoso é colhido em suporte, serviços e agregação. E o espinhoso, em ataques sórdidos de quem teme o novo paradigma (SCO e aliados, incluindo a Microsoft).
 

Companheiros, piratas, vampiros...

Como se "isola" a IBM? A SCO a está processando por suposta "violação da propriedade intelectual do Unix system 5", exigindo, de início, 3 bilhões de dólares em indenização (a IBM, além de distribuir GNU/Linux, licenciou e distribui sua sua versão do Unix, o AIX). Que violação é essa? Ninguém sabe. A SCO, ora alega que programadores do Linux "piratearam suas idéias", ora que "piratearam seu código" (código-fonte do Unix System 5), mas não diz exatamente o quê, alegando proteger seu segredo de negócio: "só mostraremos as provas em juízo". Enquanto isto vai chantageando clientes da IBM e usuários de Linux pelo mundo.

Se for um pedaço de código "vazado" inadvertidamente do System 5 ou do AIX, em uma semana esse pedaço seria refeito no Linux. São 350 mil programadores contribuindo, basta aos coordenadores saberem qual é o pedaço. Se for segredo de negócio (idéia sobre como escrever algum código), a SCO não teria dado bola para tal coisa, tendo comprado "seus direitos" em 1995, ocasião em que qualquer livro sobre sistemas operacionais já ensinava como o Unix funciona. E, pela letra da lei, não tendo zelado pelo segredo não teria do que reclamar. Mesmo porque, enquanto lhe convinha, ganhava dinheiro distribuindo o próprio Linux, que ela agora acusa ser ladrão da sua "propriedade intelectual" (só parou depois que começou a chantagem).

E na maior cara de pau as chantagens se intensificam, enquanto a primeira audiência com o juiz só em 2005. (http://www.newsfactor.com/perl/story/22014.html). Há nisso, todavia, algo ainda mais sinistro. A Novell, segundo a SCO, teria lhe vendido (por US$75 milhões) "os direitos" do Unix system 5 -- inclusive sobre eventuais "trabalhos derivativos" --, que por sua vez os teria comprado em 1992 da AT&T (criadora do Unix), em outros termos. Quando começou a chantagem, no início de maio, até a Novell veio a público na mídia, para dizer que sua venda não incluiu tais direitos.

A AT&T havia liderado um processo colaborativo com distintas licenças e versões do código-fonte do Unix, entre 1974 e 1983, através do qual pedaços de código do FreeBSD (concorrente do Linux no mundo livre, originado na Universidade de Berkeley) foram parar no próprio Unix System 5, bem antes da expressão "pirataria de código" reverberar, pela primeira vez, nas cordas vocais de qualquer advogado, jurista ou juiz. Se cooperação depois vira pirataria e 75 milhões de verdinhas legalizam o vampirismo, drácula agora quer 3 bihões pra começar, num passe de mágica juridiquesa: trabalhos derivativos (alheios)!

O Estado precisa proteger a cidadania contra o cerco de interesses monopolistas, que querem sempre da Justiça dois pesos e duas medidas para o que dizem ser o pior dos crimes, nisso não diferindo do próprio crime organizado. O pior crime, dizem os monopolistas hoje, é "a pirataria", especialmente a digital. O Estado precisa proteger a cidadania não porque é bonzinho, mas por instinto de sobrevivência. Foi assim que se livrou do penúltimo ciclo escravagista. É sadio que o Estado encontre o caminho para se livrar do ciclo atual, e para isso Lula foi eleito seu representante no Brasil.

No mundo digital, esse caminho começa com a proteção ao direito à primeira escolha do software. À liberdade de se dizer Como: como se quer um programa de computador que faça algo do qual se necessita. Um cidadão é muito pouco para fazer valer, individualmente, esse seu direito no mercado, mas um governo, não. Quem acha que a sua liberdade de fazer negócios é violentada se o governo decide exercer essa liberdade de dizer como, no caso de um concorrente poder assim atendê-lo, critica a decisão com o argumento de que se está trocando seis por meia dúzia (www.valoronline.com.br/valoreconomico/ materia.asp?id=895977). De que se trata de trocar um monopólio por outro, para beneficiar compadres. Será mesmo?
 

Seis por meia dúzia?

O governo precisa de software. E para poder dizer de que espécie de software precisa, está tendo que lutar contra o rito sacrificial que imola o Estado e a cidadania na pirâmide de avareza construída de outorgas de monopólio de idéias, outorgas genéricas e abstratas o suficiente para se tornarem, nas mãos de advogados com bolsos fundos e escrúpulos rasos, armas de destruição em massa da liberdade semiológica. Especificamente, da liberdade de expressão através de códigos e canais eletrônicos. Mas essa liberdade é mesmo importante?

Cada um que julgue por si, e é isto que o PT está fazendo com seu mandato. Códigos e canais eletrônicos estão se tornando ubíquos e essenciais às atividades econômicas e sociais, e cada vez mais cruciais para a segurança do próprio Estado. E esta liberdade está sendo cerceada com armas que atingem, com titulação de propriedade alheia na munição, qualquer idéia imaginável do que possa ser feito, através de software, nesses canais e códigos.

Como a venda-em-um-clique, as equações de Euclides (conhecidas há mais de dois milênios), o cursor desenhado na tela por função lógica, formatos de arquvos, de mensagens, a roda, e outras sandices que reeditam a Inquisição. "Mas isso só vale nos EUA", dizem os manés. E o que será que os EUA querem da ALCA, OMC, etc? É só ler onde isso é dito (ex: http://www.alca-ftaa.org/ftaadraft02/por/ngipp_1.asp#II.3.Artigo24).

Com palavras de ordem oxímoras -- "propriedade intelectual", os que empunham essas armas rebatizam a mesma fé cega que moveu a carnificina medieval, pondo a mão invisível do mercado no lugar da infalibilidade papal, para uma cruzada contra a tecitura de uma revolução digital que não conseguem explicar nem compreender (se compreendessem, seu grotesco comportamento de manada não estouraria a bolha da internet no mercado, em 2000).

E põem-se, com suas auto-benzidas armas, a caçar a produção intelectual autônoma e independente que, sem as amarras de controles proprietários, pode ameaçar as margens de lucro dos seus patrões, quase sempre ferozes monopolistas. Uma produção que, se não for contida, acabará por ampliar, sabe-se lá até onde, seu legado digital de insofismáveis vantagens em estabilidade e versatilidade, por ser livre das distorções mercadológicas produzidas pelo desdém ao atributo não-rival do mundo dos símbolos, onde os softwares habitam. O exemplo está aí, com a internet.

Mas não é tudo uma questão econômica? Pode ser. Este embate é uma encenação do processo evolutivo onde modelos negociais competem. Onde modelos legados são confrontados com modelos que surgem, e, competindo em pé de igualdade com os mais aptos ao futuro, colapsam. No negócio do software, a história mostra três ciclos de modelos que foram dominantes, surgidos no início das décadas de 40, 60 e 80. E acabou-se? Por mais barulhenta que seja a gritaria da coalizão para que assim pareça, não se pode mais esconder que há um novo modelo de produção e distribuição de software na praça, simples e enxuto, provando a si mesmo (veja, p. ex:  The Business and Economics of Linux and Open Source, escrito por um dos diretores da HP, Martin Fink).
 

Os novos Torquemadas

Só que há algo inédito com o modelo surgido no início dos anos 80, com a revolução do downsizing, e cujos sinais de fadiga indicam hoje o fim do seu ciclo de utilidade: amealhou riqueza e poder como nenhum outro. Não só entre os modelos anteriores: nenhum outro negócio na História amealhou tanta riqueza em tão pouco tempo. E ao que tudo indica, ele não vai dar mole pra nenhum pé de igualdade, levando, assim, a questão do campo econômico para o ideológico.

Seus soldados e generais, encastelados em escritórios de patentes, de lobby e de advocacia da "propriedade intelectual", preparam-se para a sua cruzada, como novos Torquemadas, sem compreenderem muito bem o poder emergente contra o qual se lançam. Não o compreendem porque este poder emergente, o poder da sinergia cooperativa no mundo virtual, é ponto cego na visão fundamentalista de mercado, visão que os embriaga de arrogância e sentimento de auto-suficiência, por ser expressão do mito dominante.

Porém, como os inquisidores d'antanho, esses militantes enfrentam um sério obstáculo ao sucesso da tarefa a que se lançam, tarefa que por tudo isto é, ao mesmo tempo, quixotesca e trágica. Como atacar um inimigo visível apenas na miragem que produzem em seu dogma? Como cercar um inimigo que se posiciona, justamente, sobre o ponto cego do mito que constitui sua fé? Só lhes resta a estratégia de terra arrasada, que destrói o suporte das miragens.

Exemplo lapidar desta estratégia está nos autos do "julgamento do século", em que o governo federal americano, mais dezoito estados federados, processaram o maior desses monopólios por prática predatória. Por que a Microsoft foi processada? Não foi por ser ela um monopólio. Isto, por si só, não é crime nos EUA. Crime é abusar da posição monopolista para expandir ou consolidar monopólio. Ela foi processada e condenada, em última instância em 8 de outubro de 2001 por unanimidade (nenhuma nota na mídia), por abuso na sua expansão monopolista sobre o segmento dos softwares de navegação na internet.

Tendo chegado tarde na corrida de ouro da internet, devido ao fato, documentado pela mídia, do seu então presidente não ter (inicialmente) acreditado na possibilidade de sucesso de uma tecnologia "que não tem dono" (a da internet), a Microsoft se viu pressionada a queimar "etapas". E pôs-se a extorquir vendedores de computador que distribuíam, com o windows, o navegador que já monopolizava o segmento, o Netscape, que era gratuito porém inicialmente não livre (hoje sua linhagem Mozilla é livre, sob licença GPL).

O promotor, do governo Clinton, abriu a ação. E o juiz, Thomas Penfield Jackson, tendo-a condenado e antes de apená-la, não se conteve. Estarrecido com o que leu nos autos, deu uma entrevista bombástica onde comparou Bill Gates à figura de Napoleão. Foi o suficiente para que a Microsoft conseguisse, já no governo Bush, removê-lo do caso. A juíza substituta, Coleen Kollar-Kottely, estabeleceu então a pena em 11/01/2002 (http://www.dcd.uscourts.gov/microsoft-2001.html).

Esta pena gera o explícito direito da empresa cobrar, de autores de outros softwares, pelo uso dos padrões digitais inteligíveis aos seus programas, para compensar sua obrigação de permitir a interoperação entre estes, obrigação que perfaz outra parte dessa mesma "pena"  (http://news.com.com/2100-1001-964278.html). O promotor do governo Bush aceitou sem recorrer, é claro.
 

Livre ou Gratuito?

A Microsoft consumiu bastante da sua munição em credibilidade, tentando negar sua natureza monopolista, enquanto a expunha em suas víceras, nesta ação. Noutra, desta vez contra a AOL, acaba de negociar o desfecho pagando-lhe 0,75 bilhões para deixar o software navegador Netscape morrer à mingua, após a AOL ter tentado salvá-lo da asfixia, comprando a emergente Netscape. Doutra parte, tal como um joão-teimoso, sua versão GPL sobrevive pelo empenho da comunidade que mantém o projeto Mozilla (www.mozilla.org). Longa vida ao Mozilla!

Insistir com o governo brasileiro para que siga gastando mais de um bilhão anuais com licenças de uso perfeitamente descartáveis, enquanto o Estado sangra financeiramente, refém de agiotas globais num sistema econômico à deriva, porque, segundo os que vem se locupletando, "vai custar caro e dar muito trabalho", "só para trocar seis por meia dúzia", é terrorismo econômico. É a velha estória de quem detém o poder econômico: "vamos antes crescer o bolo para dividir depois".

Depois quando? As estratégias do terrorismo econômico, entretanto, tem efeito temporal limitado contra quem já hipotecou seu futuro. Será que a nova política de TI do governo Lula é mesmo trocar seis por meia dúzia? Daria no mesmo um monopólio digital escravagista das idéias, ou um monopólio de idéias que assegure a democratização do poder imanente da revolução digital, e das idéias em geral como bem comum?.

Trata-se de uma escolha que envolve distintas métricas de segurança e de responsabilidade. Não há como comparar, mas há que se escolher. Não há revolução sem vítimas, e precisamos decidir: qual monopólio nos serve, ao qual serviremos. Mesmo que um deles afirme serem ambos farinha do mesmo saco, a escolha é nossa, é urgente, e vale o trilho do futuro num mundo digitalizado.

Para escolhermos, talvez seria melhor pensarmos na farinha não em sacos, mas em cumbucas. Em uma cumbuca chamada software, junto com a farinha, haverá também duas castanhas. A primeira castanha se chama autoria, a segunda se chama propriedade. Alguns programadores, dados a macaquices, descobriram que faz mais sentido largar a segunda para melhor se servirem de ambas, separadamente. E estão, com isso, incomodando os que penhoram ou alugam benefícios casados no lastro das duas, os que querem ser donos das duas castanhas ao mesmo tempo e, literalmente, não abrem mão.

Uma das pérfidas ironias na citada matéria da IstoÉ Dinheiro bem ilustra o estado de espírito dos que, metendo-se com software, querem as duas castanhas, não abrem mão, e põem-se a gritar ao verem seus clientes sair atrás das cumbucas que só têm uma castanha dentro. Ao falar de uma das primeiras iniciativas da nova política de TI do governo, pintanto-a com cores de devaneio populista-stalinista, os autores fazem uma troca aparentemente ingênua, mas capciosa. Falam do compromisso do Serpro de refazer com software gratuito o portal de compras do governo federal (ComprasNet), quando na verdade o compromisso do Serpro é refazê-lo com software livre.
 

Cumbucas e castanhas

A gratuidade é característica natural das licenças de uso dos softwares livres, mas não é necessária nem determinante para fazê-lo livre. Existem softwares proprietários que, sendo proprietários, não são livres, mas têm licença de uso gratuita (Internet Explorer, Zip, Acrobat). Existem softwares livres com mais de um tipo de licença, uma paga e outra gratuita (MySQL, Star/OpenOffice). Software livre, para quem a ficha ainda não caiu, é aquele cujo autor largou a segunda castanha dentro da cumbuca.

Software livre é aquele cuja licença de uso não trata da sua propriedade, mas da autoria, integridade, formas de expressão (acesso irrestrito ao código fonte para uso próprio), redistribuição (condições de reuso do código fonte para uso de terceiros) e uso (livre) legítimos. No caso do ComprasNet, o principal motivo para se buscar esse compromisso do Serpro são as formas de expressão do software, e não a gratuidade da licença. Por que?

Porque softwares são feitos por seres humanos, e não por seres angelicais. E porque ComprasNet não é um simples editor de texto, é um sistema de compras. Se um software vai automatizar processos de compra, é necessário que o usuário-pagador conheça, exatamente, como os procedimentos serão conduzidos, se quiser evitar surpresas desagradáveis. Isto se chama auditoria. Outrossim, não se faz auditoria em software sem acesso irrestrito ao código fonte, mais a possibilidade de se compilar esse código fonte no ambiente de produção. Alguém se lembra do "botão macetoso" no software do painel do senado, ou querem se fazer todos de zonzos?

Os que queiram hão de reconhecer, todavia, que um dos maiores problemas enfrentados pelo Estado hoje é o dos crimes financeiros. Artigo de Luiz Orlando Carneiro no Jornal do Brasil de 8 de maio de 2002 (pagina 14) nos alerta: quatro anos de lei contra lavagem de dinheiro em vigor resultaram em apenas uma condenação; 87% dos juízes que poderiam julgar tais crimes jamais viram um processo tipificando-o. Basicamente, devido a dificuldades de se produzir e coletar provas. E uma das dificuldades básicas são softwares inauditáveis.

Todos são livres para atacar o governo pelo empenho em tornar auditável seu sistema de compras pela internet. Mas terão que explicar as razões, de forma bem mais convincente do que as insinuações na citada matéria da IstoÉ Dinheiro. Se for porque o fornecedor do software atual não pode mostrar seu código-fonte, devido ao fato do código-fonte desse software ser, nas palavras dos autores, "a alma" do seu negócio (do software), terão que explicar também que negócio, exatamente, é esse, que presume a confiança cega que existia no tempo em que se amarrava cachorro com lingüiça.

Oxalá tenham a oportunidade, caso sua gritaria prevaleça, de também explicar ao novo procurador geral da república que está aí, cheio de amor pátrio pra dar, disposto a revirar as bolorentas gavetas do seu predecessor e a examinar com carinho os novos contratos que lhe aterrisem à mesa. Oxalá o novo procurador saiba reconhecer a natureza da frustração naqueles que prenderam a mão na cumbuca do software, e o seu papel histórico na desfecho desta quizumba entre macacos e castanhas, em tempos de cachorros magros.

v.3 - 05/08/03