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Cabeça Velha e Cabeça Dura

Publicado na coluna Segurança, Bits & Cia do Jornal do Commercio em 13/06/02

Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasilia
11 de Junho de 2002


Como seria possível a fraude em eleições com a urna eletrônica, se o laudo da Unicamp concluiu que ela é segura, robusta e confiável, conforme anunciou em 29 /05 o presidente do TSE? Resposta curta: o penúltimo parágrafo deste mesmo laudo e quatro linhas em C, a linguagem em que é escrito o software de votação da urna. A inserção correta dessas quatro linhas desviaria votos numa eleição presidencial na proporção desejada. Porém, entre uma explicação dessas quatro linhas e uma compreensão das condições para que realizem uma fraude indemonstrável, há uma barreira de sofismas e manipulações do ingênuo fascínio coletivo pela tecnologia.

Nunca duvidei que a urna fosse segura, robusta e confiável. O problema é que é segura demais. O seu excesso de segurança é problema para o eleitor genérico, porque empacota junto dois tipos de proteção, das quais só uma lhe interessa: a proteção contra falhas não intencionais ou fraudes de origem externa, e a proteção para fraudes de origem interna. Esta amarração resulta do modelo de segurança adotado para o sistema de votação informatizada, que podemos chamar de obscurantista.

A opção por tal modelo está registrada no despacho de um ministro do TSE negando petição do PDT pela impugnação da urna na eleição de 2000, por violação do artigo 66 da lei 9.504/97, ainda em vigor, que dá aos partidos o direito de fiscalizarem todas as etapas do processo eleitoral. O TSE queria, e continua querendo, que os partidos aceitem softwares secretos na urna, pois é fato que menos pessoas tiverem acesso a tais informações, menor a possibilidade de vulneração e risco à segurança das eleições". O cálculo de probabilidade do ministro indica que só os autores do software devam ter tal acesso, à revelia da lei eleitoral.

O modelo obscurantista de segurança, de cujo cálculo o ministro se vale em seu despacho, é sadio em sistemas com até dois interesses em jogo. Com mais de dois, o obscurantismo pode acobertar conluios entre dois ou mais jogadores para fraudar os restantes, desequilibrando o jogo.  Por isso os jogos de azar definem claramente a fronteira entre o secreto e o fiscalizável, através de regras.

A organização de eleições funciona exatamente como uma banca de jogo. Assim, o modelo obscurantista seria sadio à segurança do sistema eleitoral se, além da Justiça Eleitoral, tivéssemos apenas um partido político. Nossa lei eleitoral também define com clareza essa fronteira, talvez porque seus autores quisessem excluir dela o totalitarismo.

Ao explicar como a segurança das eleições é vulnerável à manipulação de programas, não estou dizendo que eu posso fraudá-las. Estou, sim, dizendo quem pode fraudá-las, ao lembrar quem tem acesso legítimo aos meios necessários, num sistema tão seguro contra perigos externos. E ao lembrar quem pode ter acesso legítimo aos meios de prova a fiscalização desses programas, estou dizendo também quem pode fraudá-las impunemente.

Quem aceita jogar jogos de azar com cartas marcadas está sob o domínio do vício, e quem aceita um processo eleitoral viciado está abdicando de sua cidadania. Não há boa razão para se confundir o eleitor, fazendo-o crer que software e chaves criptográficas são inseparáveis. Num processo eleitoral, o uso de tecnologia que facilita a votação, acelera a apuração mas dificulta a fiscalização, a pretexto de eliminar velhos vícios ao preço de novos, bem mais devastadores, tenderá a desagregá-lo.

Em 1930 houve uma revolta contra as regras eleitorais vigentes, diante do desdém oficial à importância do equilíbrio no jogo democrático. Setenta anos depois, a jurisprudência eleitoral informatizada é inaugurada em clara violação de princípios legados daquela revolução. E com inquietantes indícios de retorno do desdém pré-revolucionário, como nas palavras do atual presidente do TSE ao divulgar o referido laudo: "a questão da fraude é uma cabeça antiga pensando num sistema de voto tradicional".
 
Esta vã imputação de anacronismo quer apagar da memória coletiva as conquistas cívicas que custaram sangue e vidas aos nossos avós, resultando num confronto entre cabeças velhas que aprenderam as lições da revolução de 30, e cabeças duras que não aprenderam.