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Os Bazares e as Catedrais

Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasilia
11 de Junho de 2003

Em 26 de maio o jornal Valor Econômico publicou artigo de Simone Tatsch e Miguel Reale Júnior, chamando atenção para potenciais conflitos entre a Lei de Licitações e leis determinando a preferência pelo software livre na administração pública. São citadas as iniciativas já sancionadas no RS e ES, e em trâmite em MS e PR. Os autores começam questionando as razões dessas escolhas, e se elas protegem de fato o interesse público.

Porém, ao especularem sobre tais razões, colhem-nas em argumentos outros, bem estranhos aos daqueles que promovem as iniciativas. E, mais grave, descartando-os ad hominem, substituindo sua lógica e seu contexto, em piruetas tracejadas sobre um andaime de perigosa leveza fática, por rótulos de emocionalidade e ideologização. Como se, por trás da pompa e do manto autoritativo, a retórica sofista com que os atacam, tentando arremessá-las contra o ordenamento vigente, mais e antes não o fora.

Tudo na informática tem evoluído em velocidade estonteante. Ao longo das suas parcas seis décadas, dela sentimos contínuas pressões por mudanças. Nos hábitos, nos procedimentos, nos negócios, nas leis. Próprio ao Poder Judiciário seria, então, o aconselhamento prudente e sóbrio. Ao legislador que se vê pressionado e a si mesmo, na atividade judicativa com leis sociais que, necessariamente imaturas, almejam reger o virtual.

Pois o mundo virtual tem suas leis naturais próprias, semiológicas (parecidas às da termodinâmica), muitas por serem descobertas. Leis que prometem o domínio de etéreos fenômenos, doutra forma inalcançáveis. Leis que prometem a adequada visão de um novo poder invisível, porque semiológico, a erodir indecifrável os pilares e a autonomia do estado democrático de Direito, tendo se associado, pela via dos "efeitos-rede" na virtualização das práticas sociais, ao monopolismo econômico.

Causa espécie ouvir, de altas cátedras do Saber Jurídico, vozes que proclamam, por um lado, cautela aos que legislam sobre informática na Administração Pública, para que não se afoitem com ondas semânticas do ciberspaço, e por outro, pressa na aprovação de leis "enxutas" de modernização do Judiciário, para que não o afoguem num mar de lastros de papel e tinta. Mas com argumentos que, em ambas direções, claudicam na falta de assento em perspectivas históricas, sociais e técnicas de consistência confortável.

Por que deve o Judiciário saltar rápida e simploriamente nas águas da desmaterialização, enquando a próxima braçada dos que já se debatem em redemoinhos de custo, desperdício e dependência, exige reflexões mais profundas? Pois então reflitamos. Busca-se os verdadeiros motivos dos que querem legislar sobre preferência por software. Os motivos estariam, supõe-se, fora dos discursos. Mas a quem pese o pânico, não se os encontra. O verdadeiro motivo é trazer ao debate o negócio do software. Que é software? Que é liberdade? Justificar a dedução das categorias é a tarefa mais árdua, na filosofia do Direito de Kant.

"Existe no mercado o que podemos chamar de software comercial e software livre", rezam os autores. Falácia maior, própria de quem mal conhece software e liberdade, para tal reflexão não há. Livre aí -- e nas propostas de lei -- não quer dizer gratuito, e comercial não quer dizer proprietário. Há software livre comercial, e software proprietário gratuito. Software livre, para quem o faz, é a categoria deduzida da função que instrumenta as linguagens digitais. Que intermedia a inteligência humana na esfera virtual. E software proprietário é a da função que mercantiliza a propriedade intelectual sobre esses intrumentos.

Uma categoria extrai valor da liberdade de conhecimento do seu objeto, outra o extrai do controle sobre este conhecimento. Nada a ver com as formas que o mercado encontra para monetizar esse valor, semelhantes para ambas. Mas, com a capilarização do virtual, esse controle se complica na competição entre as formas. E a fetichização da mercadoria, mesmo nos dominando, não pode tirar o poder dessa categorização semiológica, como nos mostra a história.

Ignorar a história é tolice. A internet está aí: de cada três endereços web que hoje se digita, dois serão servidos por um software livre, o Apache. E quase os três resolvidos por outro software livre, o Bind. Não há mais como desligá-la. E a IBM, que há vinte anos perdeu o reinado monopolista com uma mudança de paradigma no comércio do software proprietário, justamente para o monopólio que agora estica os bolsos para preservar de qualquer jeito seu poder de induzir dependência nos clientes, aprendeu sua lição e hoje investe milhões em software livre, como no Linux e no Apache, cujo retorno generoso ela colhe em suporte e serviços.

Acima da necessidade crescente do argumento de autoridade para se sofismar o contrário, o fenômeno informático não se resume à sua dimensão tecno-econômica, como sugerem esses toscos argumentos, que só confundem, repetindo o discurso dos que, pela via daquela associação, amealharam inusitado poder e agora lutam por preservá-lo na cambiante tormenta da revolução digital. Nunca ouvi falar de revolução sem vítima: nesta, a novidade é a facilidade em se ocultar, e a dificuldade em se identificar, cadáveres e algozes.

Onde cumpem pena os responsáveis por crimes financeiros, que se multiplicam nas ondas desmaterializadoras dos lastros das responsabilidades e compromissos públicos, transmutados em bits, enquanto o Estado pos-moderno definha na mão da agiotagem globalizada e globalizadora?

Existe no mercado o que podemos chamar de software comercial e software livre. No primeiro tipo, identificamos os softwares que desde a sua criação são destinados ao comércio, sobre eles incidindo uma forte proteção autoral, ou seja, as suas licenças de uso são onerosas, o código-fonte não é aberto - embora, em alguns casos, ele possa vir a ser - e a sua distribuição e reprodução dependem de autorização expressa do titular dos direitos autorais. Esse tipo de licenciamento visa à própria manutenção do aspecto comercial da criação de programas de computador, ou seja, essas limitações autorais têm por fim permitir justa e devida remuneração dos responsáveis pelo desenvolvimento do software. De fato, representam a base para a manutenção da indústria destinada ao desenvolvimento da informática no país.

O software livre teve origem nos campos universitários, sendo originariamente destinado à pesquisa científica, motivo pelo qual o tipo de licenciamento sobre ele criado é bastante flexível, sendo o código-fonte aberto, sua distribuição e reprodução livres, o que gera, normalmente, a gratuidade da licença de uso, embora essa não seja uma característica necessária desses programas. Por essas razões, eles são chamados de software livre. Pretendia-se, quando da sua idealização, que, criado um software, fosse o mesmo disponibilizado para evoluir com acréscimos, tornando-se uma obra coletiva em contínuo aprimoramento, com marcado caráter solidário. Embora o caráter solidário dos softwares livres e os baixos custos de aquisição sejam elementos que os tornam, aparentemente, mais atrativos do que os softwares comerciais, antes que o setor público faça uma escolha por meio de lei, é necessária maior reflexão, tanto do ponto de vista fático quanto jurídico.

Previamente a uma tomada de posição, deve ser ressaltado que os softwares comerciais são criados para o consumidor. Assim, há pesquisa das demandas do usuário final, o que torna esses programas, normalmente, mais fáceis de usar e compatíveis com uma infinidade de outros. Além disso, quando se adquire uma licença de uso, há uma empresa responsável pela garantia e suporte. Com isso, os custos da aquisição inicial do software tendem a ser mais altos, mas as despesas com manutenção e treinamento tendem a ser baixas.

Por outro lado, o software livre tem um viés acadêmico, ou seja, a preocupação de seus desenvolvedores não é, necessariamente, com a facilidade de uso ou com as necessidades do usuário final, mas sim com a excelência tecnológica. Tendo em vista a diversidade permitida pela alteração do código-fonte, a compatibilidade com outros programas tende a ser reduzida. Ademais, sendo o software livre uma obra, praticamente, coletiva, com a alteração do código-fonte, a responsabilidade e a garantia pelo produto restam afastadas. Por isso, embora os custos de aquisição sejam baixos ou quase inexistentes, são altos os custos com treinamento e manutenção. Percebe-se que ambos tipos de software apresentam vantagens e desvantagens, as quais, em cada caso concreto, deverão ser analisadas, permitindo uma melhor escolha, inclusive financeira.

Do ponto de vista jurídico também merecem críticas as leis mencionadas. É preciso chamar a atenção para a necessidade de os Estados observarem o que dispõe a Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93), que é lei nacional e geral, em especial o que dispõe o seu artigo 3º, segundo o qual a licitação visa garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração Pública. Além do mais, fazer uma escolha prévia, por um ou outro tipo de software, sem considerar as peculiaridades de cada caso concreto de compra a ser feita, representa afronta ao princípio constitucional da impessoalidade. É mister ressaltar ainda que as leis que tratam desse tipo de matéria, tendo em vista o princípio da separação dos poderes, são de iniciativa dos governadores, e não das Assembléias Legislativas, como no Rio Grande do Sul e no Espírito Santo.

Portanto, estabelecer alguma preferência ou escolha por uma ou outra forma de software por meio de lei, de forma genérica e para todos os casos, representa sério risco de danos à Administração Pública, além de constituir afronta ao princípio da impessoalidade.

Considerando que já há uma lei nacional que trata das licitações e que determina a observância do que for mais vantajoso à Administração Pública, percebe-se que essas iniciativas legislativas baseiam-se mais em decisões emocionais. As escolhas públicas não devem ser emocionais ou ideológicas, mas sim racionais e prudentes.

Miguel Reale Júnior e Simone Tatsch são, respectivamente, ex-ministro da Justiça e sócio do Reale Advogados Associados e doutoranda em direito econômico pela Universidade de São Paulo (USP) e sócia do Martins-Costa e Tatsch Advocacia