O Rei do Asteróide 325
Publicado na coluna Segurança, Bits & Cia do Jornal do Commercio em 8/08/02 Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasilia
6 de Agosto de 2002
É preciso exigir de cada um o que cada um pode dar disse o rei ao Pequeno Príncipe. A autoridade repousa sobre a razão. Eu tenho o direito de exigir obediência porque minhas ordens são razoáveis.No clássico de Saint-Exupéry há lições para nossa vida democrática. Somos pioneiros na informatização total do processo eleitoral. Nesta aventura, os instrumentos do processo se desmaterializam em bits, mas a natureza deste não muda. Muda apenas a de seus instrumentos. O que pode emprestar-lhe confiança coletiva segue sendo a medida de sua transparência, e não o sigilo, nele restrito à autoria do voto.
Em processos sociais com vários interesses em jogo, a falta de transparência induz tentações para trapaça ou conluio em quem sabe demais. Só se pode neles buscar segurança através do controle de risco às tentações, e portanto, num delicado equilíbrio entre transparência e sigilo. Este entendimento está nas regras dos jogos de azar, contabilidades financeiras e leis eleitorais. E sua falsa percepção atinge os alvos de vigaristas, estelionatários e ilusionistas.
Mas, na informática, o senso comum tende a confundir segurança com sigilo. Os interesses seriam, apenas, ou o dos que fazem ou usam um sistema, ou o dos que dele abusam. Quem usa raramente sabe analisar ou construir um, vendo-se compelido a confiar em quem o fez. Com a informatização de tais processos, o senso comum entra em crise, pondo em risco a cidadania que sustentam. No processo eleitoral, o direito de fiscalização se torna assim mais crucial e a lei eleitoral se adapta. A Lei 9.504/97 dá aos partidos o direito de ampla fiscalização nos softwares do processo (art 66). Porém, a regulamentação do dispositivo ocupou o centro desta crise.
Em recente debate na TV Culura, perguntado da possibilidade de fraude através de inserções maliciosas nos softwares o presidente do TSE admitiu-a em tese, mas retrucou com uma pergunta retórica: quem iria inseri-las, se ninguém de fora tem acesso aos softwares? A pergunta já traz a resposta: alguém de dentro. O desafio é apresentar os softwares sem abrirem-se, com isso, brechas à inserção maliciosa de fora. Apresentá-los antes que entrem na urna, como ocorre, por exemplo. Porém, como saber se o que irá na urna depois é o mesmo que foi mostrado? Por que não mostrá-los durante ou depois?
Infelizmente, o equilíbrio não pode ser decretado com argumentos de autoridade. Estes podem, ao contrário, gerar desconfiança. Exemplos: prometer ao Senado mostrar todos os softwares e voltar atrás na véspera da apresentação, com argumentos técnicos posteriormente desmentidos pelo relatório da Unicamp. E depois, quando judicialmente interpelado, engavetar e ignorar a violação do dispositivo, como na eleição de 2000. Ou manobrar no legislativo para esvaziar a eficácia de novos mecanismos de equilíbrio, como o voto impresso em paralelo (por que antecipar o sorteio para verificação do voto impresso para a véspera da eleição?)
Tanto é que, após refazer as promessas para esta eleição, desta vez à Câmara, o presidente do TSE foi judicialmente interpelado para que as expressasse em atos normativos, diante da demora. Alegar, em resposta, que ninguém pode se achar credor daquelas promessas, ou que já as havia instruído tendo a tal instrução tocado apenas em duas das oito que proclamou, são novos exemplos.
E mais. O preço pelo conhecimento dos softwares só foi divulgado no ato da apresentação aos partidos, em 5/8/02: compromisso formal e irrestrito de manter todo esse conhecimento em sigilo. Codigo Penal e o escambau. E agora, José? Quem critica o sistema analisando sinais externos é tido por paranóico: critica sem conhecê-lo por dentro. E quem o critica pelo conhecimento interno é criminoso: viola o compromisso de calar-se a respeito.
O Pequeno Príncipe pôde chegar ao 325 e aconselhar-se com o rei porque amava sua liberdade de pensamento e expressão. Também eu amo a minha. Renunciei à indicação partidária e dispensei a mordaça. Prefiro carregar com humildade o estigma, em paz com minha consciência. O que já conheço me basta. A segurança desse TSE pode não ser a do eleitor, e meu compromisso é com a cidadania. Entenda quem quiser.