http://www.pedro.jmrezende.com.br/sd.htm | Ciberguerra: emboscada
The Saker
Artigo escrito para o UNZ Reveiw
Traduzido ao portugues por Pedro A. D. Rezende
novembro de 2015
Considerando o sucesso notável da intervenção russa na Síria, pelo menos até agora, não deveria ter sido surpresa que o Império iria revidar. A única questão era como e quando. Agora sabemos.
Em 24 de novembro, a Força Aérea turca fez algo absolutamente sem precedentes na história recente: ela deliberadamente abateu um avião militar de outro país, embora fosse absolutamente óbvio que essa aeronave não apresentava qualquer ameaça para a Turquia ou ao povo turco. A Internet russa está cheia de vazamentos mais ou menos oficiais sobre como isso foi feito. De acordo com essas versões, os turcos mantiveram 12 caças F-16 em patrulha ao longo da fronteira prontos para atacar, teleguiados eletronicamente por aviões-radar AWACS e com cobertura de F-15s da Força Aérea dos EUA no caso de um contra-ataque russo imediato. Talvez sim, talvez não.
Mas isso pouco importa porque o que é absolutamente inegável é que os EUA e a Otan assumiram imediatamente a "propredade" deste ataque, dando todo o seu apoio à Turquia. A Otan foi além, a ponto de declarar que iria enviar aviões e navios para proteger a Turquia, como se fosse a Rússia que tivesse atacado a Turquia. Quanto aos EUA, não só apoiou totalmente a Turquia, mas também negou categoricamente haver qualquer evidência de que a Turquia estaria comprando petróleo contrabandeado pelo Estado Islâmico.
Finalmente, como era de se esperar, os EUA estão agora enviando uma frota com o porta-aviões Harry S. Truman para o Mediterrâneo Oriental, oficialmente para combater o estado Islâmico mas na realidade para apoiar a Turquia e ameaçar a Rússia. Até os alemães estão agora enviando seus aviões, mas com ordens específicas para não compartilhar qualquer informação com os russos.
Então, o que está realmente acontecendo?
Simples: o Império identificou corretamente a fraqueza da força russa na Síria, e decidiu utilizar a Turquia como elemento de negação plausível. Este ataque é provavelmente apenas o primeiro passo de uma campanha muito maior para "empurrar" a Rússia para trás a partir da fronteira turca. O próximo passo, aparentemente, inclui o envio de forças ocidentais para a Síria, inicialmente apenas como "assessores", mas, eventualmente, como forças especiais e controladores aéreos avançados. As Forças Aéreas dos Estados Unidos e da Turquia desempenharão o papel principal aqui, com aeronaves da Alemanha e do Reino Unido fornecendo diversidade suficiente para se falar em uma "coalizão internacional". Quanto aos franceses, espremidos entre seus homólogos russos e seus "aliados" da Otan, permanecerão irrelevantes, como sempre: Hollande cedeu, mais uma vez (o que mais esperar dele?)
Eventualmente, a Otan irá criar um santuário de fato para os seus "terroristas moderados" no norte da Síria, e usá-lo como base para dirigir um ataque contra Raqqa (capital do estado Islâmico na Síria). Tendo em vista que tal intervenção será completamente ilegal, o argumento da necessidade de defender a minoria turcomana naquela região será usado, com R2P e tudo. A criação de um refúgio protegido pela OTAN para "terroristas moderados" poderia fornecer o primeiro passo no processo de se romper a Síria em vários pequenos Estados menores (como feito na Yugoslávia).
Se esse for realmente o plano, então a derrubada do SU-24 envia uma mensagem contundente à Rússia: estamos prontos a arriscar uma guerra para empurrá-la de volta para fora da Síria - você está pronta para ir à guerra? A resposta dolorosa será que não, a Rússia não está disposta a travar uma guerra contra todo o Império sobre a Síria, simplesmente porque ela não tem os recursos para isso.
Como já mencionei várias vezes (em The Vineyard of the Saker), a Síria está além da capacidade de projeção de poder da Rússia (cerca de 1000 quilômetros), especialmente se esse poder tiver que ser projetado atravessando território hostil (o que a Turquia definitivamente é). Até agora os russos conseguiram, de forma brilhante, organizar e apoiar a sua pequena força na Síria, mas isso de forma alguma indica capacidade da Rússia de apoiar ou conduzir uma grande operação aérea sobre toda a Síria, ou, menos ainda, uma operação terrestre. O fato é que essa intervenção russa na Síria sempre foi uma operação arriscada e difícil, e não demorou muito para o Império capitalizar sobre isso. Embora eu receba um monte de críticas de ingênuos "patriotas" por dizer isso, fato é que a Rússia não pode "proteger" a Síria dos EUA, da Otan ou mesmo do CENTCOM. Pelo menos não em termos puramente militares. O que não significa que a Rússia não tenha opções de retaliação.
A Rússia já aplica sanções
Sanções econômicas: a Rússia implementou uma série de sanções contra a Turquia, incluindo o congelamento do projeto Turkish stream. Além disso, o turismo russo na Turquia - uma enorme fonte de receitas - é provável de diminuir muito em relação ao que costumava ser: os russos não serão proibidos de ir à Turquia mas não haverá mais excursões ou pacotes oferecidos pelas agências de viagens russas. Alguns produtos turcos terão a venda proibida na Rússia, e empresas turcas não serão convidadas a apresentar propostas para vários tipos de licitações e contratos na Rússia. Tudo somado, estas sanções vão prejudicar a Turquia, mas não de forma significativa.
Sanções políticas: aqui a Rússia vai usar uma de suas armas mais terríveis: a verdade. Os militares russos apresentaram uma série devastadora de fotos e vídeos filmados por meios aéreos e espaciais que comprovam que a Turquia faz, de fato, contrabando de petróleo roubado pelo estado Islâmico do Iraque e da Síria. O que foi especialmente chocante nesta evidência foi que ele mostrou a escala verdadeiramente imensa da operação: uma foto mostrava 1.722 caminhões-tanque na região em Deir Ez-Zor, enquanto outra, mostra 8.500 desses veículos utilizados pelo estado Islâmico para transportar até 200.000 de barris de petróleo diários, num verdaderio “oleoduto ambulante”. Esses números significam não só que esse contrabando é organizado a nível do Estado turco, mas também que é absolutamente óbvio que os EUA sabem de tudo.
Previsivelmente, a mídia corporativa no ocidente não fez nenhuma menção à evidência real, mencionando apenas "imagens que os russos alegam mostrar"; mas o dano está feito, especialmente a longo prazo. Agora, qualquer um com um mínimo de inteligência sabe que Erdogan é um bandido mentiroso. Mais importante, tornou-se inegável que a Turquia não apenas aliada, mas patrona e patrocinadora do estado Islâmico. Finalmente, à luz dessa evidência, fica também óbvio por que a Turquia decidiu derrubar o avião SU-24 russo: os russos estavam bombardeando as rotas de contrabando do estado Islâmico para a Turquia.
Mas o golpe maior para o prestígio e a credibilidade da Erdogan e da Turquia veio do próprio Vladimir Putin, que, em seu discurso anual ao Parlamento, disse:“Sabemos quem na Turquia está enchendo os bolsos e deixando terroristas prosperar a partir da venda de petróleo que eles roubam na Síria. Os terroristas estão usando essa renda para recrutar mercenários, comprar armas e planejar ataques terroristas desumanos contra cidadãos russos e contra pessoas na França, no Líbano, no Mali e em outros países. Lembramos que os militantes que operavam no Norte do Cáucaso nos anos 1990 e 2000 encontraram refúgio e receberam assistência moral e material na Turquia. E eles ainda podem ser encontrados lá.
Claro que, numa sociedade completamente habituada com mentiras, desonestidades e hipocrisias, estas são “apenas” palavras, e devem ser ignoradas. Mas, no Oriente Médio e no resto do mundo, são palavras poderosas que os turcos terão alguma dificuldade e levarão algum tempo para “lavarem” de sua reputação.
Por outro lado, o povo turco é gentil, trabalhador e talentoso. Temos muitos bons e confiáveis amigos na Turquia. Permitam-me enfatizar que eles devem ficar sabendo que não os estamos igualando com aquela determinada parte do governo deles que é diretamente responsável pela morte de nossos militares na Síria.
Nunca nos esqueceremos do conluio dessa parte com terroristas. Sempre consideramos a traição a pior e mais vergonhosa coisa que se pode fazer, e isso nunca vai mudar. Gostaria que eles se lembrem disso - os que na Turquia deram ordens para atirar em nossos pilotos pelas costas, esses hipócritas que tentaram justificar suas ações e encobrir terroristas.
Não entendo por que eles fizeram isso. Quaisquer questões que poderiam ter, quaisquer problemas, quaisquer divergências sobre as quais não sabíamos poderiam ter sido resolvidas de forma diferente. Além disso, estávamos prontos a cooperar com a Turquia em todas as questões mais sensíveis para ela; estávamos dispostos a ir mais longe, onde seus aliados se recusaram a ir. Só Alá sabe, eu suponho, porque eles fizeram isso. E, provavelmente, Alá decidiu punir a classe dominante da Turquia tirando dela sua sanidade.
Mas, se eles esperavam de nós uma reação nervosa ou histérica, se eles queriam nos ver tornarmo-nos em perigo para nós mesmos ou para o mundo, eles não vão conseguir. Não vão receber nenhuma resposta que lhes sirva para show, ou mesmo para ganho político imediato. Eles não vão conseguir.
Nossas ações serão sempre guiadas primeiramente pela responsabilidade – por nós mesmos, por nosso país e por nosso povo. Não vamos reagir com bravatas e ameaças. Mas, se alguém pensa que pode cometer um crime de guerra hediondo, matando pelas costas e fugindo e ficar tudo por isso mesmo, que a punição ficará apenas na proibição de importações de tomate e algumas restrições em participações comerciais, eles estão delirando. Vamos lembrá-los do que eles fizeram, uma e outra vez. Eles vão se arrepender. Nós sabemos o que fazer.”
Medidas militares: estes são limitados, é claro, mas não irrelevantes. Em primeiro lugar, a Rússia admitiu agora que tem mísseis S-400 na Síria (suspeito que eles estavam lá desde o início dessas operações militares). Em segundo lugar, a Rússia começou a construir uma segunda base aérea, desta vez em Sha'ayrat, no centro da Síria. Se esta base for de fato construída, para abrigar alguns AWACS (avião-radar) russos e/ou MiG-31s isso faria sentido. Em terceiro lugar, a Rússia vai agora usar seus SU-34, mais modernos, equipados com avançados mísseis ar-ar no norte da Síria, e os bombardeiros vão ser escoltados por caças dedicados SU-30SM. Esta combinação de medidas irá tornar muito mais difícil para os turcos repetir com sucesso esse tipo de emboscada, mas duvido que eles as tenham entre suas eventuais intenções, pelo menos não no futuro imediato.
Avaliação
A fim de compreender plenamente o que está acontecendo, temos de olhar para o cenário maior. A primeira grande consequência do abate do SU-24 russo é que a Otan se tornou agora uma aliança para impunidade. Agora que o precedente foi definido por um ato de guerra da Turquia contra a Rússia – já que isso é o que tal abate inegavelmente foi, qualquer membro da Otan poderá fazer o mesmo se sentindo protegido pela aliança.
Se amanhã, digamos, os letões decidirem bombardear um navio da Marinha da Rússia no Mar Báltico, ou se os poloneses decidirem abater um avião russo sobre Kaliningrado, eles vão invocar imediatamente a "proteção" da Otan, assim como a Turquia o fez. Os EUA vão imediatamente endossar a versão dos acontecimentos alegada pela Letônia ou pela Polônia, e o Secretário-Geral da Otan vai oferecer envio de mais forças para a Letônia ou para a Polônia, para "proteger" estes países contra qualquer "ameaça" do "leste". E a mídia corporativa no ocidente vai fazer ouvidos moucos e olhos cegos para qualquer evidência de agressão inicial letã ou polonesa. Este é um desdobramento extremamente perigoso, pois provê forte incentivo para qualquer pequeno país lidar com seu complexo de inferioridade se sua “coragem” e “determinação” forem “desafiadas” pela Rússia, ainda que, é claro, isso seja factível somente por trás das costas da Otan.
A Otan está também deliberadamente escalando sua guerra (por enquanto fria) contra a Rússia ao admitir Montenegro na aliança, e ao retomar as negociações sobre admissão da Geórgia. Em um sentido puramente militar, a entrada de Montenegro na Otan não faz qualquer diferença, mas em termos políticos essa é mais uma forma de o Ocidente esfregar o dedo no nariz da Rússia como a dizer “veja, vamos incorporar até mesmo seus aliados históricos em nosso Império e não há nada que você possa fazer sobre isso”. Quanto à Geórgia, o principal objetivo por trás da discussão de sua entrada na Otan é reivindicar a "linhagem Saakashvili", ou seja, premiar a agressão que esse marionete (hoje governador da província de Odessa, na Ucrânia) conduziu contra a Rússia em 2008. Aqui, novamente, não há nada a Rússia pode fazer.
Estamos, portanto, diante de uma situação extremamente perigosa:Se decodificarmos o palavreado da Otan sobre "defender nossos membros", o que está acontecendo agora é que o Império decidiu, aparentemente, que descer a estrada para a guerra é seguro pois a Rússia não se atreverá a "iniciar" essa guerra. Em outras palavras, a Otan decidiu jogar o jogo de ver quem pisca antes, em que um lado desafia o outro a fazer algo primeiro. Este é exatamente o que Putin estava se referindo ao dizer:
- As forças russas na Síria são comparativamente fracas e isoladas;
- A Turquia pode, e vai, continuar suas provocações sob a cobertura da Otan;
- O Império passa agora a preparar intervenções (ilegais) dentro da Síria;
- A intervenção orquestrada pelos EUA será feita contra a Síria e Rússia;
- Políticos ambiciosos no perímetro da Otan têm agora uma maneira fácil de encenar gestos "patrióticos" provocando a Rússia.
“...se eles esperavam de nós uma reação nervosa ou histérica, se eles queriam nos ver tornarmo-nos em perigo para nós mesmos ou para o mundo, eles não vão conseguir. Não vão receber nenhuma resposta que lhes sirva para show, ou mesmo para ganho político imediato. Eles não vão conseguir. Nossas ações serão sempre guiadas primeiramente pela responsabilidade – por nós mesmos, por nosso país e por nosso povo.
O que essa estratégia imperial está deixando de considerar é o fato de que a Rússia pode não ter alternativa a não ser a de enfrentar o Império. Sim, os russos não querem a guerra, mas o problema aqui é que, considerando a arrogância absolutamente imprudente das elites ocidentais, todos os esforços da Rússia para evitar a guerra são interpretados por essas elites como sinais de fraqueza. Em outras palavras, ao agir de forma responsável os russos estão fornecendo incentivos ao Ocidente para seus líderes agirem de forma ainda mais irresponsável. Esta é uma dinâmica muito, muito perigosa que o Kremlin vai ter que lidar com ela. Para isso Putin tem, aparentemente, algo em mente; pelo menos é assim que entendo esta sua advertência:“Mas, se alguém pensa que pode cometer um crime de guerra hediondo, matando pelas costas e fugindo e ficar tudo por isso mesmo, que a punição ficará apenas na proibição de importações de tomate e algumas restrições em participações comerciais, eles estão delirando. Vamos lembrá-los do que eles fizeram, uma e outra vez. Eles vão se arrepender. Nós sabemos o que fazer.”
Não faço a menor idéia do que ele poderia estar se referindo, mas estou seguro de que não se trata de uma mera ou vazia bravata: esta não foi uma ameaça dirigida aos inimigos da Rússia, mas uma promessa para o povo russo. Espero que haja um bom plano, porque agora estamos em uma rota de colisão que conduz à guerra. Em conclusão, refiro-em a uma breve citação de Putin, que os líderes ocidentais fariam bem em querer ponderar:“50 anos atrás, as ruas de Leningrado me ensinaram uma lição: se uma luta é inevitável, seja o primeiro a atacar.”
[Nota do tradutor: Nesta citação Putin se refere ao tempo de sua infância. Nascido em Leningrado sete anos após o fim da 2a. Guerra Mundial, cresceu sob as agruras das consequências do cerco devastador imposto pelo exército alemão à sua cidade por quase dois anos, em que seus pais sobreviream com grande dificuldade e riscos, mas seu único irmão, não.]
Tradutor
Pedro Antônio Dourado de Rezende é matemático, professor de Ciência da Computação na Universidade de Brasília, Coordenador do Programa de Extensão em Criptografia e Segurança Computacional da UnB, ex-representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Infra-estrutura de Chaves Públicas brasileira e ex-conselheiro da Free Software Foundation América Latina. (www.pedro.jmrezende.com.br/sd.php)
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