Apresentado na 3a. IFIP
International Conference on e-Commerce, e-Business and e-Government
Workshop "Cidadania Digital, Novos Direitos e Soluções"
Guarujá, SP, 21/09/2003.
Abstract:
"Intelectual property" is a term, broadly used nowadays, to designate a collection of elements from quite different bodies of rights, laws and jurisprudences, or parts thereof. The collected elements come from a broad spectrum, ranging from moral to commercial and industrial fields of Law. In this categorization, such elements have in common only one semantical function, which is some attempt to map the atributes categorizing the concept of property -- possession, enjoyment and disposition -- onto some concept lacking the atribute of materiality. Forming a broad and loose collection, its categorization is, thus, prone to abuse. And abused, endeed, it has been. In discourses of high ideological content, where rights, laws and jurisprudences from different fields are mixed and matched to produce FUD (Fear Uncertainty and Doubt), as if applicable to any of them. In this article, we offer some preliminary analisys of such abuses, from a semiological perpective. Due to the complex and multifaceted nature of such endaviour, we focus on the abuses ocurring in discourses about Information Technology (TI).
Índice
parte I
Das ideologias
Proto-ideologia
O debate político sobre TI
O sequestro da palavra "liberdade"parte II
Choque de paradigmas
Fadiga de um modelo de negócio
O mistério da virtualíssima trindade
Ideologismo e legalismoparte III
Livre ou isolado?
Companheiros, Piratas, Vampiros
Seis por meia dúzia?
Os novos Torquemadas
Livre ou gratuito?parte IV
A pirâmide dos bits
Cumbucas e castanhas
Os verdadeiros motivos
Mercado, Academia e fator FUDgeConclusão
Bibliografia
Introdução
Este artigo condensa três artigos anteriores do autor: "Ideologia e Bits", publicado em Janeiro de 2003, "Informátca, Governo e Liberdades", publicado em versão preliminar em alguns portais com o título "Liberdade a a tentação monopolista" em Agosto de 2003, e "Livre ou Gratuito?", também de agosto, para submissão ao Workshop 4 do 3o. congresso IFIP, "Cidadania Digital, novos direitos e soluções".
Parte I
Das ideologias
O que é "propriedade intelectual"? Na mídia, junto com ela, uma palavra quase em desuso volta a circular com desenvoltura. E com a carga dos seus soltos sentidos ainda mais reveladora do explosivo poder dos conceitos que veste, própria aos novos tempos em que ressurge.
Do período Iluminista, que consolidou o conceito moderno de Estado democrático, a palavra “ideologia” traz o sentido primevo de “idéia desfocada da realidade”, provocada por interesses dogmáticos ou “patológicos”. Estratégia de risco para a legitimação de poder, hoje pejorativa. Depois, com a semiologia, Barthes deu-lhe o sentido de “naturalização” da ordem simbólica. Retórica da realidade auto-evidente, dos “fatos que falam por si”, em argumentos de autoridade. E na revisão pós-estruturalista do marxismo, que privilegia a filosofia da linguagem, Korsch dá-lhe a forma de sinédoque, a figura de estilo na qual se toma a parte pelo todo. “Mapas do imaginário”, como diz Eagleton, para a função da “nova mitologia” buscada por Hegel [1].Numa dessas atuais ressurgências, emblemática apesar de muda, Bush adverte a Lula quando este lhe avisa -- de estrela vermelha na lapela -- que vai negociar duramente: “É preciso ser realista.”
“Ideologia” é um signo poderoso, pois oculta suas contradições no antônimo. Negar ou refutar seu sentido iluminista, quando se evoca a “realidade”, é deslizar para a retórica autoritária da auto-evidência. E vice-versa. Todo sujeito precisa de um tal mapa para comunicar seu conhecimento “da realidade”, desta semiose infinita que é a cola do social. A ideologia é indispensável, em qualquer sociedade, para que os homens sejam, nas palavras de Althusser, “formados, transformados e equipados para atender às demandas de suas condições de existência” [1]. Negar a ideologia é mergulhar de volta nela.
Ao se valerem da força deste signo, decretando a necessidade do PT -- e da esquerda terceiro-mundista -- “deixar a ideologia de lado”, os que precisam ceder autoridade no jogo democrático buscam impor seus mapas do imaginário aos interlocutores, em temor à perda de posições no jogo das representações do Real e do Justo. Impõem o molde dos seus mapas apropriando-se deste signo, pela via persuasiva da chantagem com que o “sentimento do mercado” anima o capitalismo pós-industrial [2], movimentando sua “mão invisível”. E apropriam-se do signo tomando por reflexo da realidade a sua própria ideologia, sendo a neoliberal demarcada pela fetichização da mercadoria.
Como pode um Estado acuado na periferia da globalização buscar, com esses mapas, as mudanças de rota ditadas pela voz que o legitima, se ali eles se mostram dúbios, exauridos pela freqüência das omissões e distorções limitadoras no seu desenho? Essas ressurgências têm insistido em que não haverá mapa alternativo, enquanto ocultam as origens da estampa. Mapas do imaginário são desenhados pela própria luta em torno do poder.
Negar sentido ideológico a esse processo é fazer-se vesgo, ou de vesgo, o que só recrudesce a luta, como mostra a rota seguida -- para ficar num exemplo vizinho -- pela sociedade venezuelana. A hegemonia de um modelo de mapa não justifica o bloqueio à busca de outros, seja a origem do bloqueio interna ou externa à sua suposta esfera de soberania, principalmente em meio a crises globais na economia, na política e no Direito. Crise é também oportunidade, pelo que tal bloqueio cobrará seu preço adicional.
A carga com que o tema ideológico ressurge na cena política brasileira também mostra sinais inquietantes. Vemo-los, por exemplo, no debate sobre o comércio das armas semiológicas empregadas nesta luta. Tais armas são os meios de produção e controle da informação, e os sinais inquietantes surgem, não só, mas principalmente, em referência à indústria do software e seus modelos de negócio. Na fase de “administrador de dinheiro” em que, segundo o economista Hyman Minsky (Nobel 1992), se encontra o capitalismo pós-industrial americano [3], este comércio representa sua principal atividade mercantil. Não é por acaso que, na história do capitalismo, nunca um ramo “industrial” amealhou tanta riqueza e poder monopolista em tão pouco tempo, como o do software.
Protoideologia
A indústria de software representa o carro-chefe do capitalismo “administrador de dinheiro” porque conduz a evolução dos meios de produção e controle da informação. Ou seja, ela pode também controlar as condições de geração e manutenção do seu próprio mercado e o de seus derivados.Nela está, portanto, a chave do sucesso daquilo que o jornalista César Benjamin denomina “economia rentista” [3], atividade que investe não propriamente na produção de mercadorias, mas na sua progressiva fetichização. Nas rendas derivadas do negócio com ativos líquidos (títulos, ações, participações, cotas, papéis de todo tipo, inclusive representando apenas papéis), da intermediação financeira, das fusões de empresas já existentes, da gerência de contratos, da manipulação de expectativas, da exploração de marcas, patentes e outros intangíveis direitos de propriedade imaterial, cada vez mais expandidos à esfera virtual, inclusive sobre idéias que se fetichizem em lucros.
O modelo de negócio típico da atual indústria do software é a oferta do que denomina “licença de uso”, um amálgama de dois contratos de adesão. Um para prestação de serviços que processam dados, explorando recursos do licenciado e direitos de propriedade intelectual do licenciador, inclusive sobre formulações lógico-aritméticas, e outro para a gerência deste, com distribuição de riscos e responsabilidades entre as partes absolutamente desequilibrada, pela qual o licenciado abdica dos direitos de subcontratação, de escolha da jurisdição para disputas por eventuais prejuízos sofridos com o serviço, de livre expressão da sua percepção desses prejuízos e de pleitos para reparação dos mesmos.
As chances evolutivas desta fase do capitalismo dependem, crucialmente, da imposição de uma ordem jurídica global que legitime os “direitos” aos lucros desta fetichização piramidal, e de uma ordem político- militar capaz de garantir anuência e respeito universais a esses novos “direitos” e seus fluxos unidirecionais de renda. A primeira ordem está inscrita no processo atual de globalização, consolidada nos tratados internacionais de “livre comércio” [4, 15], e a segunda na carga do tema ideológico ressurgente no discurso político contemporâneo, abordada na parte I.
O que a indústria de software oferece, por exemplo, pretende-se que seja, ao mesmo tempo, instrumento na referida ordem jurídica e mercadoria “software” no “livre comércio”. O que não pode ser confundido com sua contra-parte noutro referencial ideológico, humanista, conhecido por “software livre” [5].
Entretanto, há outras complicações para este sucesso. Obstáculos no lastro material da fase anterior, cujo calcanhar de Aquiles é a dependência americana de fontes externas de energia, e resistências contra a quebra de tabus sobre soberania, cidadania e ética no Estado democrático moderno, consagrados a duras penas em sucessivas lutas civis, conflitos regionais e guerras mundiais. Para superar esses obstáculos, a guerra contra o terror veio a calhar, mas ao custo de substancial aumento na cota que cabe à economia rentista, para saldar a fatura.
É neste contexto onde surgem inquietantes refutações ideológicas no debate político doméstico. São ataques perpetrados por detentores do poder econômico que, para mantê-lo, precisam preservar o status quo, e que, para preservá-lo, tentam invalidar quaquer mudança com o argumento de terem esses motivação ideológica. Como se tais tipos de ataques também não os fossem, ou antes, proto-ideológicos. Em seguida passamos a analisar, pelo ângulo semiológico, três desses recentes ataques, tendo como pano de fundo batalhas judiciais hoje em curso pelo mundo, lastreadas em discursos semelhantes.
O Debate político sobre TI
Em15/12/02, pouco antes de tomar posse no Brasil o primeiro governo federal em cuja plataforma eleitoral constava a preferência por software livre, o e-zine Estadão on-line publicou matéria que comparava os modelos de negócio com software livre e proprietário, explicando por que o software livre terá mais espaço em tal governo. Nela, o diretor de marketing da Microsoft é citado declarando ser necessário “separar a visão ideológica da comercial”, e o diretor de relações públicas afirmando que ficarão preocupados “se tentarem cercear a competitividade” com leis que “limitem a concorrência” [6].Por outro lado, preocupadas já estão entidades civis e públicas como a Secretaria do Direito Econômico, o CADE, o Ministério Público e Tribunais de Contas do país com leis já vigentes que se chocam com as práticas concorrenciais da empresa; haja vista, por exemplo, os quinze processos que se arrastam no TRF-DF envolvendo sua representante “exclusiva para contas do governo”[7]. Para não falar dos tribunais americanos, que já a condenaram por prática monopolista predatória em última instância, em ação movida pelos governos federal e de dezoito estados [8].
Os autos dos processos contra a “representante exclusiva” da Microsoft contém documentos que buscam legitimar a inexigibilidade concorrencial para compras governamentais. Se, em vista do exposto neste artigo, não forem estes julgados peças ideológicas, e como tal estranhas aos códigos legais vigentes e aplicáveis conforme prega o diretor de marketing da empresa, a própria lide jurídica estaria deslizando para terreno ideológico perigoso, como argumentam os pensadores citados na parte I, onde se serve à causa exógena da ordem jurídica que visa manter e expandir a economia rentista americana.Doutra parte, as leis preferenciais ao software livre em aquisições estatais, como as aprovadas ou debatidas na Alemanha, França, China, Peru e outros países, e no Brasil promulgadas, por iniciativa do PT, no Recife e no Rio Grande do Sul, não têm seu fulcro ético no princípio da economicidade, como sugerem as vantagens em custo e neutralização das distorções próprias do monopolismo comercial. E sim no princípio constitucional de soberania, que a ideologia neoliberal desdenha e refuta.
E, pior, neste caso combate. Declarações e documentos da empresa comparam a licença geral pública para sofwares livres (GPL) a uma “espécie de câncer” [9]. Balizam-se até no fiasco brasileiro da reserva de mercado de informática dos anos 80, despistando o caráter semiológico da função social do software, “mercadoria” que, apesar da sua imbricação conceitual com o hardware -- alvo daquela reserva --, a ele se contrapõe em essência material e fabril.
Entrementes, a escalada globalizante de fetichização mercantil, que inflaciona os direitos de propriedade intelectual, acaba de atingir os padrões e formatos intermediadores do acesso humano à informação digitalizada. O marco jurisprudencial desta escalada está na sentença que estabelece a pena por prática monopolista predatória à Microsoft, de 1/11/02 [8].
Com o fundamentalismo neoliberal no poder, a empresa conseguiu que o juiz de primeira instância fosse substituído, e que sua substituta transformasse a negociação da pena numa outorga para exploração comercial do “direito de propriedade” sobre padrões e formatos digitais estabelecidos pelas interfaces de programação dos seus sistemas, oponíveis a quem produzir programas interoperáveis com tais sistemas.
Na visão humanista, essas interfaces correspondem a competências lingüísticas, herdadas do programador pelo programa como funcionalidade comunicativa na esfera digital, para o cumprimento do seu papel de intermediador da inteligência do usuário. E, como tal, não caberia, por analogia no plano jurídico, o direito de quem seja à sua fetichização mercantil. Ademais, tal direito gera uma espécie de “bitributação” seletiva, posto que a interface do usuário já o “tributa”. É como se minha professora de português me cobrasse pelo que escrevo.
O modelo de licença GPL, gratuito, foi concebido justamente para impedir a mercantilização dessas competências, consagrando-as como bens culturais da humanidade --“commons” no Direito consuetudinário anglo-saxão--, como sempre foram as riquezas e conquistas semiológicas. O caso mais bem sucedido desta visão é a própria internet, que consiste de um conjunto de formatos e padrões de comunicação digitais de domínio público, cuja consolidação e alcance lhe agrega seu valor semiológico atual de “teia do ciberespaço”, equivalente a um idioma universal para softwares.
Na visão neoliberal fundamentalista, a conversibilidade de qualquer valor não carece, por princípio, de regulação. E estabelece, através da citada sentença, o direito de monopólios comerciais alvancarem-se para explorar competências comunicativas intermediadoras do ciberespaço, o que rompe qualquer possibilidade de separação entre visão ideológica e visão comercial no negócio do software. Mas pior, rompe-as num contexto em que a liberdade semiológica se vê criminalizada no ciberespaço, pela nova ordem jurídica imposta pela economia rentista americana.
Na visão humanista, isto constitui ameaça ao caráter democrático com que nasceu o ciberespaço, nele fazendo refém o usuário de software proprietário, cujo acervo digital fica doravante “protegido” pelo “direito de propriedade intelectual” (o que seria isto?) do seu preposto.
Sequestro da palavra liberdade
Temos, expostas anteriormente, duas visões antagônicas sobre quais formas de gestão semiológica são “cerceadoras da concorrência”, e sobre onde está “o câncer” digital. O que é natural, pois são visões de ideologias distintas, sendo a correção de qualquer delas, como explica Maquieavel, ditada apenas pela posição de poder de onde se projetam [10].Com sua ascensão no jogo do poder, o PT se posiciona para melhor projetar suas visões do social, havendo o presidente Lula, no seu discurso de posse, já declarado estarem estas visões lastreadas no humanismo. Tal projeção não deve, portanto, perder de vista a dimensão ideológica dos processos da informática e seus desdobramentos sociais, por conta da retórica despistosa de quem se vê obrigado a rever ou ceder posições. Especialmente em momento tão crítico da história, com grandes riscos de fracasso na missão incumbida pela voz que lhe ascendeu.
E das grandes dificuldades para se cortar gastos de custeio na máquina governamental, aventadas pelo ministro Palocci em sua estréia [11], as relativas à informática são de natureza primordialmente ideológica. Com o país financeiramente asfixiado em uma crise global, o governo federal vem torrando anualmente mais de um bilhão em licenças de software proprietário perfeitamente substituíveis por software livre. Entendamos como e por que.
Para que se mantenha aquecido o fluxo de rendas onde se insere o tipo de contrato em questão -- as licenças de software proprietário--, as novas formas de gestão global de riqueza necessitam ampliar seu alcance, subordinando-lhes mais e mais processos sociais, isto é, atividades econômicas, pessoas e espaços geográficos, como explica César Benjamin. Esta necessidade, até aqui suprida pela chantagem “sentimentalista” de mercado, com seus índices auto-reflexivos de risco e fetichização -- não apenas mercantil -- de tudo que ganhe rótulo tecnológico, visto apenas como indutor de riquezas, está estampada na evolução do negócio do software.
Como tudo na informática, este negócio tem sofrido freqüentes mudanças de paradigma. De sua fase embrionária e artesanal, anterior aos anos 60, a produção do software mercantilizou-se integradamente ao negócio do hardware, do qual se tornou independente com a revolução do downsizing, alavancada pela abertura e padronização das arquiteturas de computadores, a partir dos anos 80. Com ameaças à sua hegemonia, representadas por sinais de fadiga e pela alavancagem do software livre pela internet, o modelo proprietário vem se radicalizando.
As licenças dos softwares da linha XP, por exemplo, são como contratos de aluguel. Podem ser na forma de contratos de risco, sem fixação de preço e data de vencimento para as prestações seguintes (updates), ou com preço e prazo fixos, de um ou tres anos. Nelas, o lincenciador se dá o direito de sorrateiramente acessar a instalação do licenciado (de 16 formas distintas no windows) [12], de alterar dados em seus arquivos (links no Office), de implodir remotamente a instalação, não só devido a reinstalação não permitida, mas também mediante publicação de material que "denigra" produtos, serviços ou parceiros da empresa (FrontPage). Como ficaria o TRF-DF, por exemplo, com as sentenças que terá que lavrar nos processos citados na parte II? E as “16 portas de fundo” do windows, quando os hackers descobrirem como abri-las? E se quisermos um computador novo com o windows 98, por que não podemos comprar?
Parte II
Choque de paradigmas
Na prática (os envolvidos sabem), todo negócio com software tem algo em comum: a responsabilidade por perdas com ativos em bits recai sobre o "dono dos bits" (dos dados), ou seja, aquele que tem nesses bits algo a perder, como também os custos com as atividades de suporte, treinamento e serviços, que não fazem parte da licença de uso propriamente dita, como praticada desde o downsizing. É só na responsabilidade pela manutenção e evolução do software per se onde os modelos diferem, ficando por conta da comunidade desenvolvedora no modelo livre, e da empresa produtora no modelo proprietário. Garantias? Só nos contratos de suporte e serviço, semelhantes em ambos os modelos. E novamente, o que é garantia numa ideologia vira falácia na outra.No software livre, o desenvolvimento do software é guiado pelos interesses práticos da comunidade com ele engajada. As regras de engajamento são estabelecidas, no caso da GPL pelos termos da licença de uso, e o software evolui em seu ritmo próprio, de forma puramente darwiniana, no sentido semiológico e não econômico [5]. Assim, softwares bem projetados e implementados acabam por conquistar uma comunidade vasta e atuante, chegando hoje a 300 mil programadores engajados nos projetos da Free Software Foundation. Nesses casos o risco de uma proliferação de versões precisa ser controlado, mas, por outro lado, uma falha ou vulnerabilidade raramente perdura por mais de uma semana sem que alguém produza, teste e distribua reparos.
No modelo proprietário, o desenvolvimento do software é guiado pelas necessidades econômicas da empresa produtora. Se seu foco for este, a manuteção do seu fluxo de caixa exigirá que se produzam novas necessidades para seus produtos, na forma de novas versões que agreguem novas funcionalidades. Ela precisa, então, levar sua base de consumidores a crer na necessidade dessas novas versões. Como as falhas e vulnerabilidades crescem exponencialmente com o tamanho do software, guiar sua evolução por este fluxo significa degradar sua relação preço/qualidade. Assim, os mais famosos dentre esses softwares exibem tristes histórias de bugs a descoberto por vários meses, ou através de várias tentativas de reparo, ou através de uma quantidade enorme de remendos que acabam por neutralizar uns dos outros seus pretendidos efeitos.
Tendo já tentado vários outros argumentos, a retórica dos interesses deste modelo nos apresenta agora, junto com múltiplos esforços para instituir a censura na divulgação de falhas e vulnerabilidades dos seus produtos (DMCA, UCITA, OIS) [13], o argumento de que a opção pelo software livre é “o barato que sai caro”, devido às atividades de suporte aos mesmos estarem, hoje, em média mais caras do que as de suporte aos seus. Do outro lado, este fato pode ser visto não só como sinal de que o mercado de suporte para o software livre está aquecido, e portanto, um sinal de degradação da relação preço/qualidade do software proprietário, mas também como um diferencial na natureza desse suporte: o primeiro capacita e replica autonomias tecnológicas, e o segundo gaiolas semiológicas.
Desta forma, chega-se a um ponto em que perdem eficácia os meios de sustentação da crença fetichista nas “necessidades evolutivas” do software, como a propaganda monopolista do modelo proprietário. Este ponto parece coincidir com o final de mais um ciclo de vinte anos no padrão que têm marcado a evolução dos modelos de negócio do software. Não parece mero acaso que a IBM, tendo aprendido com os erros e instabilidades monopolistas do ciclo anterior, investe nos dois modelos para o próximo ciclo, engajando-se, em paralelo à sua produção de software proprietário, nas comunidades do Linux e do Apache.
A solução para o modelo proprietário é o recrudescimento da dependência do usuário, lastreado pelos “avanços jurídicos” expressos nas novas licenças, nas novas leis para a jurisdição produtora, e nos novos tratados internacionais sobre propriedade intelectual. Que por sua vez apresentam, talvez não por coincidência, efeitos colaterais ameaçadores ao futuro do software livre [14, 15], a ser comentado em mais detalhe, adiante.
Fadiga de um modelo de negócio
É claro que esta radicalização do modelo proprietário, levada a cabo pela indústria monopolista, só se torna aceitável mediante certo grau de dependência dos usuários a seus softwares, posto que os usuários precisam manter o acesso a seus próprios acervos digitais. A consolidação desta dependência, por sua vez, estará lastreada no “direito de proprieade” do “fabricante” sobre os padrões e formatos em que são armazenados esses dados. Mas o pior, para a cidadania e para a soberania do Estado, ainda não está nesta dependência. Está na inauditabilidade desses softwares, principalmente com a substituição do papel e tinta por bits em documentos oficiais e jurídicos, processo tido por inevitável e promovido por iniciativas como a ICP-Brasil.Seis meses transcorridos da posse do primeiro governo eleito com a preferência por software livre em sua plataforma de campanha política, mudam-se os atores, a tática, mas não as falácias. Alguns ataques à política "por ser ideológica" passaram a ser indiretos. Citamos a posição da "Coalizão pela Livre Escolha do Software", organização das mais ativas nestas críticas e que se diz "a favor do usuário", apoiada pela Comptia (inclui Microsoft, Intel e Dell).
Em artigo recente de seu representante na Gazeta Mercantil de 9 de Julho, este argumenta que "o governo pode comprar Linux se quiser, mas não deve aprovar leis dizendo que preferencialmente tem que usar software livre, [pois] isso é inconstitucional". Comparam tais leis à reserva de mercado dos anos 80. Ao atacarem indiretamente a política através de arguementos supostamente técnicos, defensores do status quo se veem, por outro lado, obrigado a expor as falácias sobre as quais baseiam seus argumentos e sua defesa.
Primeiro, o que essas leis instituem não é reserva. O mercado de software é não-rival (non-rivourous). Ao contrário do hardware, alvo da citada reserva, a venda de uma cópia nada subtrai do estoque. O autor continua autor, e, querendo, também proprietário do mesmo software. Por isso, nos modelos de negócio com software livre, uma cópia em uso é vista como ativo investido em marketing. Não só do software em si, mas nos seus mercados de suporte, serviço e agregação, e por isso pode ser gratuita.
Enquanto o modelo proprietário despreza tal característica. Neste modelo, software é propriedade antes de mais nada, e cópia vendida é passivo: DRM (digital rights management), pirataria, engenharia reversa, bugfixes, compatibilidade retroativa versus obsolescência programada, etc. O debate surge justamente porque, esgotado o ciclo útil deste desprezo, começam a vazar ineficiências do negócio nele baseado. É certo que tais ineficiências ainda não atingem todo tipo de software. Mas já um espectro importante, e crescente, a começar pelos de mais larga escala, como os sistemas operacionais, os middleware de rede, as suites de escritório, de programação, etc.
Segundo, se o que essas leis instituem fosse reserva, não seria de mercado. Ver no software antes uma ferramenta de linguagem digital do que uma mercadoria, se for ato de reserva o será de conhecimento, não de mercado. Prioriza-se o direito ao conhecimento das linguagens digitais, e não os interesses de fornecedores ou os modelos monopolistas baseados em padrões digitais proprietários. Padrões e formatos digitais vêm, progressivamente, sendo havidos como propriedade em uma corrida pela "posse" de idéias, numa esquema de pirâmide da avareza que desabará sob o peso da sua própria incoerência, tornada insana pela lógica monopolista.
Terceiro, se vista como regulamentação, não seria “de reserva”. Qualquer empresa poderia vencer licitações para fornecimento de software, suporte e serviços correspondentes, inclusive as que já se encontram confortavelmente estabelecidas e irrigadas com generosos contratos. Desde que não exijam que o edital contemple, casado aos dois últimos itens, licenças de uso do software ditadas pelo fornecedor, prática corrente no status quo. Esta exigência é tão absurda que governos frouxos ou mancomunados, e clientes sem cacife, vêm assinando contratos de fornecimento de software sem o direito de conhecer previamente os termos da licença de uso desses softwares (ex: microsoft. ver http://www.cybersource.com.au/cyber/about/comparing_the_gpl_to_eula.pdf). E seria uma tarefa hercúlea argumentar sobre o interesse público desses termos, caso venham à luz.
O mistério da virtualíssima trindade
Se o negócio duma fornecedora se baseia na venda de contratos para uso de software, chamados indevidamente de licenças de uso (EULAs) quando na verdade são contratos de adesão, e estes se baseiam no fato do produtor considerar o código-fonte do software segredo de negócio (modelo proprietário), não há que se imputar automaticamente ideologia, pirataria, emocionalismo ou radicalismo a novas práticas licitatórias, se algum concorrente no modelo livre nelas se puser em vantagem. A tais imputações, sim. Afinal, por que razão as licenças de uso não podem ser negociadas, ou mesmo conhecidas de antemão pelo contratante? E se podem, por que o contratante não pode exigir critérios mínimos para essas licenças, e critérios que reflitam interesse público, no caso do contratante ser o Estado, se é ele quem estará pagando pelo pacote?O que as tais leis instituem é uma nova política pública, que valoriza a dimensão social da licença de uso do software. Trata-se de se estabelecer critérios para negociação de tais licenças. E o que a coalizão quer, na verdade, é manter a velha política, que só valoriza o conceito de propriedade imaterial conforme ditado pelo fornecedor. Diante do discurso do novo governo sobre TI, a coalizão tenta seqüestrar sua palavra chave -- liberdade -- para forçá-lo a adotar, como "livre escolha" do conceito de software, o seu conceito, que por sua vez descarta outros (ex:. O representate da coalizão é citado, em lapso freudiano, ao dizer “comprar linux”).
Ocorre que tal fundamentalismo não fornece conceito adequado para a realidade atual que vivemos, e a estratégia da coalizão exalta os que mal conseguem controlar os efeitos da sua própria ignorância. Software livre é uma realidade que emoldura o mundo de hoje. A internet está aí, tendo surgido com ele. Mesmo com grandes monopólios buscando fórmulas para dela se apoderar, de cada três endereços web digitados hoje, dois serão servidos por um software livre (Apache), e quase três resolvidos por outro (Bind). O conceito de software que esta coalizão busca enaltecer, se não embalsamar, fornece, outrossim, escravidão semiológica
Senão vejamos: fosse proprietária, a internet teria surgido? Fosse proprietário todo software, como os programadores aprenderiam a programar? Precisamos libertar a palavra liberdade do seu cativeiro de dólares. Ninguém é contra liberdade de escolha, desde que ela comece pela definição de software. Software é mistério. O mistério da virtualíssima trindade. Para o produtor (pai) é produto intelectual, para o usuário (filho) é inteligência intermediadora, e no ciberespaço (espírito santo dos bits) é a lei. A qual das pessoas desta trindade se privilegia, eis a questão.
Ninguém, portanto, pode se arvorar dono do conceito "software" sem promover uma guerra quase religiosa. Para evitá-la, só com o respeito de todos à liberdade primeva frente ao mistério do virtual. Quem quiser ser apenas usuário, e não antes inquilino, que seja, se puder. Quem quiser separar autoria de posse, retendo e respeitando a autoria e desmascarando a farsa da propriedade do que só existe na mente, que o faça, se lhe aprouver. Não é essa, entretanto, a liberdade que a coalizão defende, ao pregar seu bloqueio na mais alta instância, a do Estado.
Ideologismo e legalismo
Comparar leis que dão preferência ao software livre nos poderes públicos à antiga reserva de mercado do hardware, para desacreditá-la, é sofismar sobre a ignorância de fatos essenciais, municiando a retórica que oculta sentidos diversos sob a palavra seqüestrada. Como o fato de que hardware e software, apesar de conceitualmente imbricados, contraporem-se em essência material e fabril. Como o fato de que o software tem importante função social -- o de intermediar a inteligência alheia --, com implicações cada vez mais cruciais para a segurança do Estado, função ausente na função imediata do hardware e fato ausente no discurso falacioso da coalizão.Concordo com o representante da coalizão de que tais leis são ruins. Mas não porque algum lobista se veja em suprema toga para denunciar sua inconstitucionalidade, sua ideologização, seu caráter emocional ou lunático, ou outras opiniões precipitadas. Posso dizer, sem me ver juiz no STF, que num governo pelo status quo a política que tais leis instituem seria ignorada. E que, num governo pela mudança, tal instituição não é necessária, pois política pública se faz mais e antes com vontade que com leis. Essas leis são ruins porque são perigosas.
Enquanto as falácias necessárias para ocultar a fadiga do modelo de negócio do software proprietário, modelo que hoje predomina no mercado da informática, ocorrerem em debates que no campo econômico, podemos, com alguma chance de sucesso, combater seus sofismas, havendo oportunidade. Porém, ao penetrarem na esfera jurídica, injetadas pelo poder econômico através de "especialistas" do Direito e do jornalismo informático, em reação à promulgação ou à política de TI que tais leis insculpem, será muito mais difícil desarmá-las.
E desarmá-las não será o único problema. Mais cara será a fatura dos seus efeitos, em custo social. As mais nefastas dessas injeções de sofismas talvez não estejam em ataques diretos, mas em insidiosas abordagens envernizadas de erudição, onde advogados que talvez nunca leram uma licença GPL (software livre) tentam seqüestrar conceitos de software, armados de juridiquês e de fama por douto saber jurídico, que comento ao final.
O debate sobre liberdade de escolha do software deve ser conduzido olhando-se principalmente para a frente, com equilíbrio e espírito público, e não só para trás, com rancor e mesquinhez. E deve centrar-se em fatos incontornáveis. Como o fato de que um modelo se torna mais racional do que outro na medida em que os softwares se tornam mais complexos, interligados e ubíquos, e o de que o status quo buscará bloquear, por meios a seu alcance, o desmonte da bomba relógio armada, através do consenso de Washington, pelo neoliberalismo fundamentalista e inconseqüente do qual é filha a política de informática passada, que só enxerga fluxos de caixa.
Parte III
Livre ou isolado?
Uma dessas investidas bloqueantes se deu, recentemente, através de matéria da revista IstoÉ Dinheiro de 30 de Julho (http://www.terra.com.br/istoedinheiro/309/ecommerce/309_todo_poderoso.htm). Não se querendo, sabendo ou podendo atacar a nova política, ataca-se diretamente um dos responsáveis pela sua execução, enquanto se fomenta a cizânia entre estes. Começam os autores com uma distorção, citando: "o todo-poderoso do governo do PT na área de tecnologia.", referindo-se ao porta-voz do governo PT na área de TI -- tecnologia da informação --, pela Casa Civil.Tecnologia não é o mesmo que tecnologia da informação, mas os autores repetem a confusão, na mesma toada em que arrolam a militância do seu alvo, na juventude, em movimento stalinista. Esse duplo estrabismo torna a matéria parecida a uma torpe tentativa de se induzir medo, confusão e incerteza sobre a dimensão ideológica da política em questão, em si totalmente ignorada. Ao mencionarem o desejo do porta-voz levar "a bandeira do software livre" para o Planalto, omitem-se de explicar o que vem a ser tal bandeira, ou onde mais tremula, e como e quem mais a carrega pelo mundo. Ou mesmo o que seja software livre, várias vezes trocado por falsos sinônimos.
Preferem citar o messianismo, a cruzada, o stalinismo e a passagem pelo MR-8 do seu portador na Casa Civil, num espaço jornalístico dedicado, conforme cabeçalho da página web, ao comércio eletrônico. Ao falarem do "mercado de 5 bilhões de dólares" que estaria "sob influência" deste porta-bandeira, omitem qualquer referência à parte da bolada que tem constituído flagrante desperdício ou corrupção, inatacáveis na forma pregressa de se contratar, como apontam documentos em várias auditorias e ações de improbidade administrativa que se arrastam na Justiça, deveras ocupada, mas antes em defender, por boa parte dos seus, seus próprios privilégios.
Também omitem explicações ao citarem (sem nomear) empresas que acreditam tratar-se de "uma cruzada que pode levar o Brasil ao isolamento no mercado internacional, criando nova reserva de mercado de software equivalente à reserva de hardware dos anos 80". Onde interessa, sobre o negócio do software em si, são ralos. Preferem falar do "currículo ralo" de quem dizem querer conduzir a nova política de TI do governo com excessivo e auto proclamado poder. Preferem fofocar sobre divergências internas na disputa pelo poder sobre essa política.
Para o leitor atento, esse ataque deixa uma dúvida. Sobre quais, de quem e para o quê mesmo, são as cruzadas hodiernas que têm na informática os seus campos de batalha. Seguindo o rastro das denúncias, já que software livre não é invenção de stalinistas nem de petistas megalomaníacos que tomam de assalto a Casa Civil, há que se perguntar sobre quem mais acompanhará o Brasil, ao sermos levados a "isolamento do mercado internacional" com essa nova política de TI.
A mais vistosa companhia nesse "isolamento" será, certamente, a IBM. Tendo perdido, há quase vinte anos, a pole na corrida do software proprietário, ela aprendeu as lições da História e vem investindo pesado em software livre (GNU/Linux, Apache), há mais de quatro anos. Não por filantropia: o retorno generoso é colhido em suporte, serviços e agregação. E o espinhoso, em ataques sórdidos de quem teme o novo paradigma (SCO e aliados, incluindo a Microsoft).
Companheiros, piratas, vampiros
Como se "isola" a IBM? A SCO a está processando por suposta "violação da propriedade intelectual do Unix System 5", exigindo, de início, 3 bilhões de dólares em indenização (a IBM, além de distribuir GNU/Linux, licenciou e distribui sua sua versão do Unix, o AIX). Que violação é essa? Ninguém sabe. A SCO ora alega que programadores do Linux "piratearam suas idéias", ora que "piratearam seu código" (código-fonte do Unix system 5), mas não diz exatamente o quê, alegando proteger seu segredo de negócio: "só mostraremos as provas em juízo". Enquanto isto vai chantageando clientes da IBM e usuários de Linux pelo mundo.Se for um pedaço de código "vazado" inadvertidamente do System 5 ou do AIX, em uma semana esse pedaço seria refeito no Linux. São 350 mil programadores contribuindo, basta aos coordenadores saber qual é o pedaço. Se for segredo de negócio (idéia sobre como escrever algum código), a SCO não teria dado bola para tal coisa, tendo comprado "seus direitos" em 1995, ocasião em que qualquer livro sobre sistemas operacionais já ensinava como o Unix funciona. E, pela letra da lei, não tendo zelado pelo segredo não teria do que reclamar. Mesmo porque, enquanto lhe convinha, ganhava dinheiro distribuindo o próprio Linux, que ela agora acusa ser ladrão da sua "propriedade intelectual" (só parou depois que começou a chantagem).
E na maior cara de pau as chantagens se intensificam, enquanto a primeira audiência com o juiz só em 2005. (http://www.newsfactor.com/perl/story/22014.html). Há nisso, todavia, algo ainda mais sinistro. A Novell, segundo a SCO, teria lhe vendido (por US$75 milhões) "os direitos" do Unix system 5 -- inclusive sobre eventuais "trabalhos derivativos" --, que por sua vez os teria comprado em 1992 da AT&T (criadora do Unix), em outros termos. Quando começou a chantagem, no início de maio, até a Novell veio a público na mídia, para dizer que sua venda não incluiu tais direitos.
A AT&T havia liderado um processo colaborativo com distintas licenças e versões do código-fonte do Unix, entre 1974 e 1983, através do qual pedaços de código do FreeBSD (concorrente do Linux no mundo livre, originado na Universidade de Berkeley) foram parar no próprio Unix System 5, bem antes da expressão "pirataria de código" reverberar, pela primeira vez, nas cordas vocais de qualquer advogado, jurista ou juiz. Se cooperação depois vira pirataria e 75 milhões de verdinhas legalizam o vampirismo, drácula agora quer 3 bihões, num passe de mágica juridiquesa: trabalhos derivativos (alheios)!
O Estado precisa proteger a cidadania contra o cerco de interesses monopolistas, que querem sempre da Justiça dois pesos e duas medidas para o que dizem ser o pior dos crimes, nisso não diferindo do próprio crime organizado. O pior crime, dizem os monopolistas hoje, é "a pirataria", especialmente a digital. O Estado precisa proteger a cidadania não porque é bonzinho, mas por instinto de sobrevivência. Foi assim que se livrou do penúltimo ciclo escravagista. É sadio que o Estado encontre o caminho para se livrar do ciclo atual, e para isso Lula foi eleito seu representante no Brasil.
No mundo digital, esse caminho começa com a proteção ao direito à primeira escolha do software. À liberdade de se dizer Como: como se quer um programa de computador que faça algo do qual se necessita. Um cidadão é muito pouco para fazer valer, individualmente, esse seu direito no mercado, mas um governo não. Quem acha que a sua liberdade de fazer negócios é violentada se o governo decide exercer essa liberdade de dizer como, no caso de um concorrente poder assim atendê-lo, critica a decisão com o argumento de que se está trocando seis por meia dúzia (www.valoronline.com.br/valoreconomico/ materia.asp?id=895977). De que se trata de trocar um monopólio por outro, para beneficiar compadres. Será mesmo?
Seis por meia dúzia?
O governo precisa de software. E para poder dizer de que espécie de software precisa, está tendo que lutar contra o rito sacrificial que imola o Estado e a cidadania na pirâmide de avareza construída de outorgas de monopólio de idéias, outorgas genéricas e abstratas o suficiente para se tornarem, nas mãos de advogados com bolsos fundos e escrúpulos rasos, armas de destruição em massa da liberdade semiológica. Especificamente, da liberdade de expressão através de códigos e canais eletrônicos. Mas essa liberdade é mesmo importante?Cada um que julgue por si, e é isto que o PT está fazendo com seu mandato. Códigos e canais eletrônicos estão se tornando ubíquos e essenciais às atividades econômicas e sociais, e cada vez mais cruciais para a segurança do próprio Estado. E esta liberdade está sendo cerceada com armas que atingem, com titulação de propriedade alheia na munição, qualquer idéia imaginável do que possa ser feito, através de software, nesses canais e códigos.
Como a venda-em-um-clique, as equações de Euclides (conhecidas há mais de dois milênios), o cursor desenhado na tela por função lógica, formatos de arquvos, de mensagens, a roda, e outras sandices que reeditam a Inquisição. "Mas isso só vale nos EUA", dizem os manés. E o que será que os EUA querem da ALCA, OMC, etc? É só ler onde isso é dito (ex: http://www.alca-ftaa.org/ftaadraft02/por/ngipp_1.asp#II.3.Artigo24).
Com palavras de ordem oxímoras -- "propriedade intelectual", os que empunham essas armas rebatizam a mesma fé cega que moveu a carnificina medieval, pondo a mão invisível do mercado no lugar da infalibilidade papal, para uma cruzada contra a tecitura de uma revolução digital que não conseguem explicar nem compreender (se compreendessem, seu grotesco comportamento de manada não estouraria a bolha da internet no mercado, em 2000).
E põem-se, com suas auto-benzidas armas, a caçar a produção intelectual autônoma e independente que, sem as amarras de controles proprietários, pode ameaçar as margens de lucro dos seus patrões, quase sempre ferozes monopolistas. Uma produção que, se não for contida, acabará por ampliar, sabe-se lá até onde, seu legado digital de insofismáveis vantagens em estabilidade e versatilidade, por ser livre das distorções mercadológicas produzidas pelo desdém ao atributo não-rival do mundo dos símbolos, onde os softwares habitam. O exemplo está aí, com a internet.
Mas não é tudo uma questão econômica? Pode ser. Este embate é uma encenação do processo evolutivo onde modelos negociais competem. Onde modelos legados são confrontados com modelos que surgem, e, competindo em pé de igualdade com os mais aptos ao futuro, colapsam. No negócio do software, a história mostra três ciclos de modelos que foram dominantes, surgidos no início das décadas de 40, 60 e 80. E acabou-se? Por mais barulhenta que seja a gritaria da coalizão para que assim pareça, não se pode mais esconder que há um novo modelo, de produção e distribuição de software na praça, simples e enxuto, provando a si mesmo (veja, p. ex: The Business and Economics of Linux and Open Source, escrito por um dos diretores da HP, Martin Fink).
Os novos Torquemadas
Só que há algo inédito com o modelo surgido no início dos anos 80, com a revolução do downsizing, e cujos sinais de fadiga indicam hoje o fim do seu ciclo de utilidade: amealhou riqueza e poder como nenhum outro. Não só entre os modelos anteriores: nenhum outro negócio na História amealhou tanta riqueza em tão pouco tempo. E ao que tudo indica, ele não vai dar mole pra nenhum pé de igualdade, levando a questão da economia para a ideologia.Seus soldados e generais, encastelados em escritórios de patentes, de lobby e de advocacia da "propriedade intelectual", preparam-se para a sua cruzada, como novos Torquemadas, sem compreenderem muito bem o poder emergente contra o qual se lançam. Não o compreendem porque este poder emergente, o poder da sinergia cooperativa no mundo virtual, é ponto cego na visão fundamentalista de mercado, visão que os embriaga de arrogância e sentimento de auto-suficiência, por ser expressão do mito dominante.
Porém, como os inquisidores d'antanho, esses militantes enfrentam um sério obstáculo ao sucesso da tarefa a que se lançam, tarefa que por tudo isto é, ao mesmo tempo, quixotesca e trágica. Como atacar um inimigo visível apenas na miragem que produzem em seu dogma? Como cercar um inimigo que se posiciona, justamente, sobre o ponto cego do mito que constitui sua fé? Só lhes resta a estratégia de terra arrasada, que destrói o suporte das miragens.
Exemplo lapidar desta estratégia está nos autos do "julgamento do século", em que o governo federal americano, mais dezoito estados federados, processaram o maior desses monopólios por prática predatória. Por que a Microsoft foi processada? Não foi por ser ela um monopólio. Isto, por si só, não é crime nos EUA. Crime é abusar da posição monopolista para expandir ou consolidar monopólio. Ela foi processada e condenada, em última instância em 8 de outubro de 2001 por unanimidade (nenhuma nota na mídia), por abuso na sua expansão monopolista sobre o segmento dos softwares de navegação na internet.
Tendo chegado tarde na corrida do ouro na internet, devido ao fato, documentado pela mídia, do seu então presidente não ter (inicialmente) acreditado na possibilidade de sucesso de uma tecnologia "que não tem dono" (a da internet), a Microsoft se viu pressionada a queimar "etapas". E pôs-se a extorquir vendedores de computador que distribuíam, com o windows, o navegador que já monopolizava o segmento, o Netscape, que era gratuito porém inicialmente não livre (hoje sua linhagem Mozilla é livre, sob licença GPL).
O promotor, do governo Clinton, abriu a ação. E o juiz, Thomas Penfield Jackson, tendo-a condenado e antes de apená-la, não se conteve. Estarrecido com o que leu nos autos, deu uma entrevista bombástica onde comparou Bill Gates à figura de Napoleão. Foi o suficiente para que a Microsoft conseguisse, já no governo Bush, removê-lo do caso. A juíza substituta, Coleen Kollar-Kottely, estabeleceu então a pena em 11/01/2002 (http://www.dcd.uscourts.gov/microsoft-2001.html).
Esta pena gera o explícito direito da empresa cobrar, de autores de outros softwares, pelo uso dos padrões digitais inteligíveis aos seus programas, para compensar sua obrigação de permitir a interoperação entre estes, obrigação que perfaz outra parte dessa mesma "pena" (http://news.com.com/2100-1001-964278.html). O promotor do governo Bush aceitou sem recorrer, é claro.
Livre ou Gratuito?
A Microsoft consumiu bastante da sua munição em credibilidade, tentando negar sua natureza monopolista, enquanto a expunha em suas víceras, nesta ação. Noutra, desta vez contra a AOL, acaba de negociar o desfecho pagando-lhe 0,75 bilhões para deixar o software navegador Netscape morrer à mingua, após a AOL ter tentado salvar da asfixia o mais sério concorrente ao software navegador Internet Explorer, comprando a emergente Netscape. Doutra parte, tal como um joão-teimoso, sua versão GPL sobrevive pelo empenho da comunidade que mantém o projeto Mozilla.Insistir com o governo brasileiro para que siga gastando mais de um bilhão anuais com licenças de uso perfeitamente descartáveis, enquanto o Estado sangra financeiramente, refém de agiotas globais num sistema econômico à deriva, porque, segundo os que vem se locupletando, "vai custar caro e dar muito trabalho", só para trocar seis por meia dúzia, é terrorismo econômico. É a velha estória de quem detém o poder econômico: "vamos antes crescer o bolo para dividir depois".
É o velho discurso dos vassalos e vendilhões. Eles querem nos convencer que o país deve investir na ortodoxia do mercado de TI, assinando todos os tratados internacionais que imponham a jurisdição e a jurisprudência norte-americana sobre "propriedade intelectual". Deve dar a educação de apertadores de botões aos nossos jovens, para que formar mão de obra barata para as software houses de multinacionais, que a querem como esterco par cultivar a sua "propriedade intelectual". Tudo isso para o país, depois, "exportar mais software".
Depois quando? E exportar como, e o que? Alguem em sã consciência acha que um país da periferia do capitalismo poderia ter algo a ganhar nessa corrida insana, nesse esquema de pirâmide da avareza das patentes sobre algoritmos, modelos de negócio e outras imaterialidades? Esta corrida onde o USPTO e as cortes americanas, contaminadas pela ideologia fundamentalista de mercado, dirigem um balcão de negócios não muito ortodoxos?
Parte IV
A pirâmide dos bits
Se o caso SCO ainda parece ortodoxo, tomemos outro exemplo. O caso emblemático protagonizado por Leon Stambler contra a RSA, que Bruce Schneier comenta em sua revista eletrônica Chrypto-gram de 15 de março (http://www.counterpane.com/). Munido de duas patentes sobre protocolos de autenticação digitais, Stambler vinha extorquindo empresas que comercializam software para segurança na informática. A análise técnico-jurídica das centenas de páginas de suas patentes custaria às vítimas mais caro do que as centenas de milhares de dólares que ele pedia, em troca da suspensão das ameaças.Quando ameaçou a RSA por violação das suas patentes no SSL, a vítima resolveu trucar. A RSA havia submetido seis patentes do SSL em 1994 nos EUA, concedidas em 1997, enquanto as de Stambler haviam sido submetidas em 1992 e concedidas em 1999. Patentes são retroativas à data de submissão, apesar do processo transcorrer em sigilo. Quem submete o pedido é obrigado a divulgar apenas um resumo do pedido, que não pode ser modificado durante o trâmite da concessão.
Mas o truque é que o pedido em si pode ser modificado enquanto tramita, requerendo nova análise -- sigilosa -- a cada modificação. É a chamada patente “submarino”. Leo Stambler teve sete anos para cozinhar suas centenas de páginas de legalês em sigilo, enquanto descobria as idéias que a RSA e outros vinham conseguindo patentear, e que poderiam se encaixar no resumo genérico do seu pedido. E os tratados de "livre comércio" querem estender a jurisdição dessas patentes a todo o mundo.
Quando fiz referência à patente da roda, pode ter parecido uma figura de linguagem, mas não é. Para mostrar a transparência da roupa nova do rei, um advogado australiano pediu recentemente o registro de patente do seu invento, que, depois de concedida, anunciou ele tratar-se da patente da roda. (http://edition.cnn.com/2001/WORLD/asiapcf/auspac/07/02/australia.wheel). "Mas isso invalida a patente!", desculpa-se a autoridade australiana, enquanto acusa o advogado de má fé. Sim, mas e os tais "métodos e conceitos" de programação, como os do Unix por exemplo, como reclama a SCO, descritos em legalês? Por acaso os bits fazem no chip alguma coisa que não possa fazer o lápis no papel, não importa quão morosamente? O que há de novo sob o sol no que tange a gerência de filas, de arquivos e de recursos, com o advento dos sistemas operacionais, além da linguagem e dos parâmetros?
As estratégias do terrorismo econômico, entretanto, tem efeito temporal limitado contra quem já hipotecou seu futuro. Será que a nova política de TI do governo Lula é mesmo trocar seis por meia dúzia? Daria no mesmo um monopólio digital escravagista das idéias, ou um monopólio de idéias que assegure a democratização do poder imanente da revolução digital, e das idéias em geral como bem comum?.
Trata-se de uma escolha que envolve distintas métricas de segurança e de responsabilidade. Não há como comparar, mas há que se escolher. Não há revolução sem vítimas, e precisamos decidir: qual monopólio nos serve, ao qual serviremos. Mesmo que um deles afirme serem ambos farinha do mesmo saco, a escolha é nossa, é urgente, e vale o trilho do futuro num mundo digitalizado.
Para escolhermos, talvez seja melhor pensarmos na farinha não em sacos, mas em cumbucas. Em uma cumbuca chamada software, junto com a farinha, haverá também duas castanhas. A primeira castanha se chama autoria, a segunda se chama propriedade. Alguns programadores, dados a macaquices, descobriram que faz mais sentido largar a segunda para melhor se servirem de ambas, separadamente. E estão, com isso, incomodando os que penhoram ou alugam benefícios casados no lastro das duas, os que querem ser donos das duas castanhas ao mesmo tempo e, literalmente, não abrem mão.
Uma das pérfidas ironias na citada matéria da IstoÉ Dinheiro bem ilustra o estado de espírito dos que, metendo-se com software, querem as duas castanhas, não abrem mão, e põem-se a gritar ao verem seus clientes sair atrás das cumbucas que só têm uma castanha dentro. Ao falar de uma das primeiras iniciativas da nova política de TI do governo, pintanto-a com cores de devaneio populista-stalinista, os autores fazem uma troca aparentemente ingênua, mas capciosa. Falam do compromisso do Serpro de refazer com software gratuito o portal de compras do governo federal (ComprasNet), quando na verdade o compromisso do Serpro é refazê-lo com software livre.
Cumbucas e castanhas
A gratuidade é característica natural das licenças de uso dos softwares livres, mas não é necessária nem determinante para fazê-los livres. Existem softwares proprietários que, sendo proprietários, não são livres, mas têm licença de uso gratuita (Internet Explorer, Zip, Acrobat). Existem softwares livres com mais de um tipo de licença, uma paga e outra gratuita (MySQL, Star/OpenOffice). Software livre, para quem a ficha ainda não caiu, é aquele cujo autor largou a segunda castanha dentro da cumbuca.Software livre é aquele cuja licença de uso não trata da sua propriedade, mas da autoria, integridade, formas de expressão (acesso irrestrito ao código fonte para uso próprio), redistribuição (condições de reuso do código fonte para uso de terceiros) e uso (livre) legítimos. No caso do ComprasNet, o principal motivo para se buscar esse compromisso do Serpro são as formas de expressão do software, e não a gratuidade da licença. Por que?
Porque softwares são feitos por seres humanos, e não por seres angelicais. E porque ComprasNet não é um simples editor de texto, é um sistema de compras. Se um software vai automatizar processos de compra, é necessário que o usuário-pagador conheça, exatamente, como os procedimentos serão conduzidos, se quiser evitar surpresas desagradáveis. Isto se chama auditoria. Outrossim, não se faz auditoria em software sem acesso irrestrito ao código fonte, mais a possibilidade de se compilar esse código fonte no ambiente de produção. Alguém se lembra do "botão macetoso" no software do painel do senado, ou querem se fazer todos de zonzos?
Os que queiram hão de reconhecer, todavia, que um dos maiores problemas enfrentados pelo Estado hoje é o dos crimes financeiros. Artigo de Luiz Orlando Carneiro no Jornal do Brasil de 8 de maio de 2002 (pagina 14) nos alerta: quatro anos de lei contra lavagem de dinheiro em vigor resultaram em apenas uma condenação; 87% dos juízes que poderiam julgar tais crimes jamais viram um processo tipificando-o. Basicamente, devido a dificuldades de se produzir e coletar provas. E uma das dificuldades básicas são softwares inauditáveis.
Todos são livres para atacar o governo pelo empenho em tornar auditável seu sistema de compras pela internet. Mas terão que explicar as razões, de forma bem mais convincente do que as insinuações na citada matéria da IstoÉ Dinheiro. Se for porque o fornecedor do software atual não pode mostrar seu código-fonte, devido ao fato do código-fonte desse software ser, nas palavras dos autores, "a alma" do seu negócio (do software), terão que explicar também que negócio, exatamente, é esse, que presume a confiança cega que existia no tempo em que se amarrava cachorro com lingüiça.
Entretanto, mais inquietante do que esse tipo de ataque direto, nos quais a frustração dos que se vêem presos com as duas castanhas na mão se faz ouvir com estridência, há outros mais perigosos, por se insinuarem na esfera jurídica, dos que defendem, com emocionalismo erudito, os interesses do status quo nesta seara. O jornal Valor Econômico, por exemplo, publicou, em 26 de junho no caderno Legislação e Tributos, um artigo nesse estilo, assinado por uma advogada de importante escritório em São Paulo, Simone Tascht, também doutoranda em Economia na maior universidade brasileira, e por um dos nossos mais famosos juristas, Miguel Reale Júnior, entitulado "Software Livre e a Administração Pública".
Os verdadeiros motivos
Aquele artigo chama a atenção para potenciais conflitos entre as leis que preferenciam o software livre na administração pública e a Lei das Licitações. São citadas as iniciativas já sancionadas nos estados do Rio Grande do Sul e do Espírito Santo, e em trâmite em Mato Grosso do Sul e Paraná (omitido o projeto de lei em trâmite no estado de Santa Catarina). Os autores começam questionando as razões dessa preferência, e se elas protegem, de fato, o interesse público.Porém, ao especularem sobre essas razões, seguindo padrão reacionário que já se faz inquietante, colhem-nas em argumentos outros, bem estranhos aos daqueles que promovem as iniciativas. E, mais grave, descartando-os ad hominem, trocando sua lógica e contexto por rótulos de emocionalidade e ideologização, em piruetas semânticas de perigosa leveza fática. Como se, por trás da pompa advocatícia, a retórica com que tentam descartá-las, em açodado arremesso contra o ordenamento jurídico vigente, mais e antes não os fora.
De altas cátedras do Saber Jurídico vozes proclamam, por esse lado, cautela aos que legislam sobre informática na administração pública, para que não se afoitem com ondas revoltas do ciberespaço, enquanto por outro, pedem pressa na aprovação de leis "enxutas" de modernização do Judiciário, para que não o afoguemos num mar de lastros de papel e tinta. Mas causa espécie que o façam, em ambas direções, com argumentos claudicantes em perspectivas históricas, sociais e técnicas de consistência razoável.
Por que a atividade judicativa -- último esteio da cidadania -- deve saltar lépida e simploriamente em águas desmaterializantes, enquando a próxima braçada dos que lá já se debatem, em redemoinhos de custo, desperdício, dependência e insegurança, deva exigir reflexões mais profundas? Pois então reflitamos.
Busca-se os verdadeiros motivos dos que querem legislar sobre contratação na informática pública. Os motivos estariam, supõe-se, fora dos discursos. Mas a quem o pânico pesa, não se os encontra. O verdadeiro motivo é trazer ao debate o negócio do software. Que é software? Que é liberdade? Justificar a dedução das categorias é a tarefa mais árdua na filosofia do Direito, como nos lembra Kant, pela sóbria pena de Roberto Romano.
Começam os autores com a proclama "existe no mercado o que podemos chamar de software comercial e software livre", na qual lastreiam seus argumentos. Argumentos que, ou presumem a complementaridade entre essas categorias, ou sua contraposição. É difícil que haja, numa tal reflexão, mais potente indutor de falácias. Repetindo o que já disse antes, há software livre com licenças de uso comerciais disponíveis (ex: MySQL, PGP, Star/OpenOffice), e há software proprietário -- antônimo adequado ao contexto -- que são gratuitamente distribuídos (ex: Internet Explorer, Zip, Acrobat).
Livre, ali, não deveria querer dizer antes gratuito, como conota a proclama, pois nas leis em debate quer dizer não-proprietário. E "comercial" não se adequa em complemento ou contraposição a "livre", já que, nas leis em debate, o que complementa ou contrapõe-se a "livre" é "proprietário". Os adjetivos escolhidos pelos autores, e os sentidos categoriais que constroem naquele texto, só ofuscam o que está em jogo. Por que se encobre o sentido de propriedade? Quiçá desejam-no fora de questão, quando, na verdade, está no cerne?
Academia, mercado e fator FUDge
É compreensível que o fetiche escravizante da propriedade imaterial, novamente em voga ao atingir a Idéia e o Gene, seja dogma para uns, que a vêem inquestionável. É o sentido deles para modernidade. Como a cruzada pela fé durante a Inquisição, eles agora a fazem pela avareza, pondo a mão invisível do mercado no lugar da infalibilidade papal. Mas não há lei sintática ou social que imponha absoluto valor a tal dogma. Cada um constrói sua identidade sobre um substrato cultural que é de todos e de ninguém. Como seu corpo, sob o ar. Quanto ao software? A pergunta cabe. Autoria não é sinônimo de propriedade, e autor pode, querendo, desconhecer posse.Talvez não por acaso, a categorização proposta induz naquele texto outras falácias, gerando uma coisa que analistas de TI chamam de FUD (Fear, Uncertainty and Doubt), acrônimo que se paronomiza com fudge, borrão (já a vimos na matéria da IstoÉ Dinheiro). A estratégia-mestra do marketing da indústria monopolista do software proprietário é mesclar, em dose certa, tal coisa ao fascínio coletivo por tecnologia-rotulada-panacéia para ofuscar seus abusos, os efeitos nefastos das suas alianças e a fadiga do seu modelo de negócio. Mas dose certa é relativa, e feitiço tem limites.
Querem os autores que software livre assim seja categorizado por ser “originariamente destinado à pesquisa científica, ...sendo o código-fonte aberto, sua distribuição e reprodução livres, o que gera, normalmente, a gratuidade da licença de uso, embora esta não seja uma característica necessária desses programas." Com o que já nos plantam primeva dúvida: "livre" contraposto a "comercial", e, ao mesmo tempo, não necessariamente gratuito?
Para que entendamos, prosseguem: "...deve ser ressaltado que os softwares comerciais são criados para o consumidor. ..., o que torna esses programas, normalmente, mais fáceis de usar e compatíveis com uma infinidade de outros. " Deduzem, assim, a categoria central do discurso num flashback fetal de um fenômeno assaz fluido e inédito, transformador do social, enquanto seu dual, categoria que presumem complementá-la ou contrapô-la, deduzem dalguma rósea fantasia do seu presente. Ou, caso não se o reconheça, do futuro.
Quantas falácias podem daí emanar? Os argumentos que desta categorização sucedem, pela pena dos autores, distinguem-se da parolice de vendedores de licenças de software proprietário apenas em tênue verniz de erudição. E dai? Daí é o próprio Kant quem nos alerta, no início de sua Analítica Transcedental: "Um decorador de sentenças e códigos não é sábio, mas presa do idiotismo erudito".
Que fé moveria os que balizam o interesse público na facilidade -- e não na segurança -- com que a informática remodela práticas socias, em lances que já presumem antagonização entre academia e mercado? É só o começo. No fim, os autores nos covidam a uma “necessária maior reflexão” sobre escolha de software. De minha parte já a teriam, menor ou não, em dezenas de artigos que, certamente, ignoram se não desdenham.
Conclusão
Do ponto de vista da preservação da soberania que ainda resta ao Estado, a total e irrestrita transparência das intenções e da lógica que o programador transfere ao programa -- intermediadores da inteligência do usuário no ciberespaço -- é fundamental. Não importa se alguém irá ou não inspecioná-las. É o fato de que alguém poderá, se quiser, o mais eficaz desestímulo ao abuso do poder semiológico por parte do produtor, ou de quem com ele se mancomune.Por isso, a auditabilidade é o principal diferencial a favor do modelo do software livre, fato relevado pelo Senado da França no debate em torno da sua resolution 465, diante das evidências apresentadas pelos serviços de inteligência sobre a vulnerabilidade do país à espionagem industrial pela via do software proprietário (isto ocorreu em relação ao windows NT, quando as “portas de fundo” do windows ainda não eram publicamente reconhecidas pelo produtor, como no windows XP) [16].
Doutra parte, a inauditabilidade do software proprietário só pode ser vantajosa para quem deseja dissimular sua intenção de evadir-se da supervisão e auditoria sobre os processos informatizados pelos quais responde. Os direitos autorais do produtor do software intermediador podem, neste caso, ser levantados como óbices para o exercício destes controles, que poderiam revelar desvios de funcionalidade ou irreguladades. No caso de software monopolista, até mesmo a inexigibilidade de concorrência pode ser levantada para dissimular óbices adicionais ao controle de irregularidades ou de indevidas intimidades na aquisição das licenças.
Em licitações estatais, os mais insidiosos argumentos empregados para justificar tal inexigibilidade tem sido as “garantias de segurança” (até contra “os hackers”!) e as paralizantes profecias auto-realizadoras de que "trata-se de padrão de mercado”. A única garantia de segurança que este monopolismo oferece é o da sua própria preservação [14], e a responsabilidade pela consolidação de padrões semiológicos é uma das últimas funções que ainda resta ao Estado, como na educação e na preservação do patrimônio cultural dos seus povos.
Mas as empresas monopolistas do software proprietário já perceberam que os argumentos baseados no obscurantismo, para produzirem FUD, vem apresentando eficácia cada vez mais limitada. Daí a maior delas ter lançado, neste ano, um novo e revolucionário produto, que institui a sua versão do mistério da eucaristia no ciberespaço. Trata-se da licença GSLP. Um órgão de governo assina um contrato secreto que lhe permite, mediante cláusulas de sigilo, ver na tela do computador -- mas não compilar -- o código-fonte dos softwares de propriedade da empresa que ele estaria interessado em licenciar, ou que já licenciou. Após os olhos ingerirem a hóstia código-fonte, visualizada desde Redmond, esta se transmutaria no software homônimo em código executável no seu estômago disco-rígido.
O fundamentalismo neoliberal não poderá sustentar indefinidamente sua ideologia como mapa único da realidade. Se enfrentarmos grave recessão global, suas chantagens auto-reflexivas tornar-se-ão inócuas [17]. Enquanto o modelo negocial do software livre constitui a pedra de toque para a soberania do Estado na era da informação.
Bibliografia
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17- Soros, George: "A Crise do Capitalismo" Editora Campus, Rio de Janeiro, 1999