Os humanos são hackeáveis?
Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
25 de janeiro de 2018
Em breve, seres humanos poderão ser hackeados?
Yuval Noah Harari, professor da Universidade Hebraica de Jerusalém e autor do livro (já traduzido ao português) "Sapiens – Uma Breve História da Humanidade", acha que sim. Ao palestrar no Fórum Econômico Mundial em 24/01/2018, Harari levanta a questão sobre como regulamentar a propriedade de dados, já que, segundo ele, o futuro da humanidade e da vida dependem dessa resposta. Em notícia a respeito dessa palestra, Harari explica por que o controle dos dados se tornou tão importante:
"[Em meio a] "muitas conversas nos dias de hoje sobre hackear computadores, contas bancárias e smartphones... na verdade, estamos ganhando a habilidade de hackear os humanos".Lendo isso, lembrei-me dos estudos que publiquei sobre o tema desse "controle". Um deles em 2013, sobre tutela de dados, em que argumento por que "propriedade de dados" (não confundir com posse de dados) não pode passar de oxímoro, e depois outro, na mesma linha semiológica -- What's "data theft"? --, sobre "roubo de dados" (não confundir com vazamento de dados). E compartilhei minha lembrança na lista sobre Direito e informática onde havia lido a notícia.
O compartilhamento suscitou um comentário do jurista Sebastião Tavares Pereira, que achou interessante a abordagem e lembrou, por sua vez, que "dado" e "informação" costumam ser simplificadamente confundidos em doutrinas jurídicas. Pelo que ele prefere, nesse tema, se basear em conceituações estabelecidas por Morin e Luhmann, que reconfigura "a" teoria da informação para os sistemas sociais, de onde podem afluir para o Direito, em geral no âmbito da teoria das provas. E citando uma passagem no meu primeiro artigo, que diz:
"Pois 'Dado' é algo que só existe em função de algum código ou linguagem; e serve tão somente para codificar informação, em função de algum contexto cognitivo. Isto quer dizer um contexto no qual sinais podem transmiti-los, através de um canal no tempo ou no espaço, entre uma fonte e um destino tais que ao menos um deles seja cognitivamente capacitado; aquele que tiver seu estado de conhecimento modificado em função da informação assim transferida."ele questiona se não estaria exatamente aí [na distinção entre dado e informação], o espaço para a atuação do Direito como tecnologia de regulação social. Ou [por que] não?
Acredito que estaria aí sim, mas em termos: Para regulação social do conceito de propriedade, somente em situações onde os elementos constitutivos deste construto jurídico ("propriedade") possam fazer sentido. No contexto citado, para objetos ou em situações nas quais uma fonte da informação transmissível possa ser identificada, ou possa ser presumidamente identificável, como originária da informação em tela, em cujo caso essa fonte originária única opera como fundamento e locus para o direito de usufruto, que compõe -- junto com o de gozo e o de posse -- o conceito jurídico de propriedade, com seu correspondente direito.
O caso do Direito Autoral
Para ilustrar seu questionamento, Tavares argumentou que, no ramo especializado do Direito Autoral por exemplo, a tutela não trabalha com o conceito de PROPRIEDADE (como no Direito Civil em geral, com seus desdobramentos usuais), mas com o conceito de titularidade. A tecnologia jurídica teria se ajustado, [aí], à natureza dos bens a proteger.
Meu contraponto inicial abordou apenas um dos aspectos desta especialização, que a meu ver não se generaliza. Um dos aspectios específicos da natureza do bem sob tutela. O Direito Autoral tem, ou pelo menos eu sua origem tinha, como objeto de tutela entes valiosos que podem ser chamados de criações do espírito, conceito para o qual a presunção de fonte originária emana da natureza do objeto (emana do ser que sedia o presumido espírito). Assim é que o Direito Autoral admite, sem maiores problemas ontológicos, parcialmente o conceito de propriedade (para a tutela do usufruto), porque no caso da obra autoral uma fonte única dos dados que podem codificar a referida obra pode, pelo menos em tese, ser rastreada a um espírito humano, ou ao agregado de dados que codificou inicialmente uma criação de algum ser consciente dotado de espírito, para fundar um dos elementos constitutivos da titularidade.
Ocorre que nem todo dado capaz de codificar informação valiosa admite tal presunção. E os exemplos disso só aumentam com a evolução das TIC, aliadas a outras técnicas de mensuração, agregação, etc. Pense neste exemplo: você seria capaz de sustentar o argumento de que uma representação da constante geométrica pi, seja em sua representação decimal (3.14159...) ou binária, seja com qualquer quantidade de algarismos de precisão, à exceção da "primeira" que foi assim registrada em escrita, seria sempre oriunda de plágio, e nunca de observação independente, mensuração ou cálculo independentes da "primeira"? Se o exemplo de pi não lhe sensibiliza, pense neste outro: Posto que o teclado padrão tem 92 teclas, e a internet. mais de 1 bilhão de internautas que algum dia precisaram criar uma senha, das quais 90% ou mais tem menos que 9 caracteres, então tem mais de uma pessoa por aí com a mesma senha. Você pode afirmar que alguma pessoa teria plagiado tal senha de alguma outra?
Mas o questionamento do mestre Tavares tinha também outro argumento, este ainda mais persuasivo: a Constituição está eivada de conceitos, nos direitos fundamentais, que atraem a noção de "dado" com a acepção que Harari e o jornalista na citada notícia utilizam. Com mesma acepção de "coisa". Eis aí o cerne do problema, se podemos assim chamar, ontojudídico, que busco abordar em meus dois estudos citados.
Do ontológico ao jurídco, ou vice-versa?
Em sua essência, "dado" é um conceito meramente combinatório, que só ganha capacidade para representar informação em contextos cognitivos, ou seja, onde exista um acordo tácito para a representação -- codificação que "fixe" escrita de texto, som, imagem, programa executável em máquina, etc através de sequências ou arranjos de símbolos -- entre mentes/softwares/dispositivos/convenções sociais/etc. O problema que surge quando se quer tratar qualquer dado como se trata obra autoral (criação do espírito) surge da necessária generalização descuidada, artificiosa e acrítica, da presunção de fonte originária única para informação transmissível, que o Direto presume ao tentar tulelar o usufruto de entes que surgem de tais "fixações" (formações) e/ou transmissões.
Ocorre que tal presunção desvanece no horizonte de todas os entes e coisas que podem funcionar como fontes de dados valiosos, horizonte que se escancara com a evolução das TIC, e que se amplia em importância com a capilarização do uso intermediador dessas tecnologias nas práticas sociais. Se imaginarmos uma escala sobre a qual dispomos tudo que se preste como fonte de dados valiosos, ordenada quanto à admiissibliidade natural da presunção de origem individual ou de locus único para seu valor informativo, no extremo de admissibilidade máxima teríamos os entes que costumam ser considerados "criações do espírito", e no extremo oposto (de admissibilidade mínima), o que as ciências "duras" ou exatas consideram ou chamam de componentes de leis naturais ou leis universais.
Meu contraponto se resumiu a isso pois entendo que a única diferença significativa, para o escopo desta análise, entre os conceitos jurídicos de propriedade e de titularidade está no elemento referente a posse, que não é exclusiva do titular de obra autoral enquanto o é -- pelo menos derivável de direito exclusivo de usufruto -- do proprietário, de um imóvel ou bem material valioso. Ao passo que os problemas por mim levantados não estão aí, mas sim no direito de usufruto, que se pretende exclusivo em ambos, sendo que o fundamento deste elemento (usufruto) para o segundo conceito (titularidade) é inconsistente em várias situações cognitivas gerais -- onde se tenta generalizar atributos de "obra autoral" para "informação" --, as quais passam a abundar na medida em que o uso das TIC se generaliza. Ou seja, como procurei ilustrar com dois exemplos de gedanken (experimentos mentais), quando se tenta tutelar "dado" ou "informação" generalizando-se o que faz sentido apenas para "obra autoral".
Nos dois estudos que publiquei sobre o tema, defendo a tese de que os ativismos normativo e judicativo que tentam toscamente "empilhar" todos esses entes e coisas no extremo da aplicabilidade máxima na escala semiológica mencionada, está nisso a serviço da instrumentação das TIC como arsenal de controle econômico e político hegemônico global. Para os que têm bagagem ou formação cristã, é como se esse ativismo estivesse propositadamente confundindo, como se fossem a mesma coisa, "criações do espírito" (humano) e "criações do Espírito" (de Deus). Imagem e semelhança como identificação.
Quanto aos seres humanos serem hackeáveis ou não, resta-me a impressão de que a notícia mencionada no início deste artigo levantando a questão, pugna por tal ativismo, pela tentativa de se legitimar essa proposital confusão.
Autor
Pedro Antonio Dourado de Rezende é professor concursado no Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Brasília, Advanced to Candidacy a PhD pela Universidade da California em Berkeley. Membro do Conselho do Instituto Brasileiro de Política e Direito de Informática, ex-membro do Conselho da Fundação Software Livre América Latina, e do Comitê Gestor da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-BR). http://www.pedro.jmrezende.com.br/sd.php
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