Onde estão as dúvidas?
Para publicação no Observatório da Imprensa
Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasilia
28 de Maio de 2005
A Folha on-line publicou, em 25/05/05, artigo de Gerson Schmitt, vice-presidente da câmara e-net e
conselheiro da Abes, intitulado
"Empresas de software ainda têm dúvidas sobre regras do
segmento" (http://www1.folha.uol.com.br/folha/ informatica/ult124u18526.shtml).
Que mal pergunte: neste segmento,
quem não tem dúvidas? A começar pela natureza das
regras: quem
as impõe, a quem, quem pode ou deve impô-las, ou
negociá-las, e como? Da leitura do tal artigo, a primeira
dúvida a me assaltar é básica: Com que autoridade
pode alguém tratar do tema ignorando completamente as regras
basilares, ou seja, os regimes hoje praticados no licenciamento de
softwares? Sobre softwares, diferentemente de outros temas, a Folha
nunca aceitou publicar opiniões minhas, de sorte que, em se
tratando de dúvidas, nem tentarei. Sobre elas, o leitor
poderá ler aqui.
Indústrias e mercados no segmento de TI
evoluem rápida e constantemente, mas o momento atual é
especial. Nele vivemos importantes e
profundas transformações. Nele, a rica demografia das
dúvidas e certezas dá o sentido dessa importância e
profundidade. Enquadrar essa demografia, por inteiro e a uma
distância que a atenção do leitor permita, é
objetivo deste artigo, diante da parcialidade marota com que a
retratam ali
e alhures. Caricaturas que tentam ofuscar, a qualquer custo, a marcha da
comoditização do software (vide http://ianmurdock.com/?page_id=222),
inevitável quando a evolução das técnicas
de reuso de código, regimes de licenciamento que estimulam a
produção colaborativa e coletiva, e a hiperconectividade que batiza
a sociedade da informação se combinam, em busca de
eficiência técnica, moral e econômica no setor.
O conselheiro da Abes começa a traçar a do seu artigo com uma pergunta retórica: "como
proteger
o direito autoral daquele que produz software de código aberto?"
A resposta, para o articulista, "é
simples: 'isso é impossível'". Tal resposta é
perigosamente simplista. E não simples, como sua aparente
certeza
confunde. Mais ainda o leitor, com suas aspas lançando o veredito a partir de boca anônima. Entendamos a
pergunta, e a resposta se inverte na contra-parte dos interesses
representados no seu grandioso
currículo. Noutras palavras: ao identificarmos quem deseja
proteger, proteger o que, contra qual tipo de ilicitude, chega-se, pela óptica do
usuário, a resposta oposta, como se pretende aqui mostrar.
Para se entender a proteção autoral do software,
é preciso antes entender seu contexto. Para a maior parte da atividade
produtiva no setor, a
questão do código de um software ser aberto ou fechado não
é assunto de foro público. São softwares
produzidos por encomenda, em cujo
caso o acesso ao código é assunto privativo entre
contratantes. No Brasil, se o contrato é omisso sobre a titularidade da obra, esta titularidade é
atribuída ao contratante, pela lei do software. Assim,
esse tipo de contrato determina quem
é o titular, e o titular determina, para si, a forma de
proteção a
direitos daí gerados que deseje exercer. Em regimes
democráticos de Direito, direitos se exercem, não se
impõem como os deveres.
Por que, então, tanta verborrice sobre regimes contratuais
envolvendo a
menor parte? Porque, em se tratando de software, a menor
parte do que se produz constitui-se na maior parte do que se usa.
Quanto mais genérico, maior o potencial de
uso. O software terá valor de uso não só para quem
o encomenda.
Poderá ser replicado e
distribuído, envolvendo terceiros na
relação produção/"consumo". Na
expressão jurídica desta relação,
além de contratos entre autor e empreendedor, surgem as
licenças
de uso e
os licenciados. Tecnicamente, a grande maioria dos softwares atualmente em uso se
encaixa em 'ecossistemas', plataformas estratificadas onde inter-operam
através de códigos e formatos digitais padronizados,
compartilhados pelo ecossistema.
Nessa estratificação, cada vez mais complexa,
generalidade corresponde, grosso modo, a
abstração funcional e proximidade do hardware. Daí
a importância
estratégica dos sistemas operacionais, pois seu regime de
licenciamento influi decisivamente no regime dos padrões que
estabelece.
A competição entre regimes de licenciamento se
exacerba pelo
fato dos padrões de interoperabilidade alimentarem o "efeito
rede", estudado por economistas da era da informação. Tal
efeito faz com que o valor de uso de um software aumente com sua
disseminação. Esse efeito faz também com que o
mercado onde atua, normalente de intangíveis, tenda ao
monopolismo. A lógica de mercado de bens rivais, que normalmente
são tangíveis, indica, no caso do software, o potencial
para esquemas piramidais fabulosos:
Lucrar várias vezes com a mesma obra (um software), vendendo
licenças de uso por cópia executável, sem
depreciar o produto. Como se fossem sabonetes. Para isso, é
preciso coibir
a replicação por terceiros, e tratar a matriz do
software (o código fonte), a forma original em que foi escrito,
como segredo de negócio. Do código fonte se obtém,
por tradução automatizável, versões
executáveis em hardware, para certos tipos de plataforma. Na
base do esquema, sistemas operacionais e
os padrões que os mesmos estabelecem. Tal é o modelo
proprietário,
que ganha esse nome por tratar cada cópia executável de
um software como propriedade
do fornecedor. A pirâmide do modelo proprietário já
está esquematizada,
e seu monopolismo, em adiantada consolidação.
É ilusão querer hoje galgá-la a partir do nada.
Nela, só resta lugar para parceiros vassalos.
Mas o
esquema de pirâmide desse modelo tem um
calcanhar de Aquiles: a premissa de escassez, essencial à
lógica
de mercado de bens rivais. Para controlar a escassez exigida por essa
lógica, o modelo
proprietário precisa induzir demanda por novas licenças,
quase sempre para funcionalidades já atendidas. No discurso dos
seus
acólitos, isto se chama 'inovação'.
Usuários são 'beneficiados' com tais inovações (quase sempre upgrades) através da obsolescência
programada, sobre o acervo dos seus dados, que estão fechados em
códigos e formatos proprietários. Um CD pode ser vendido, mas o preço da cópia executável
ali gravada é como o de um aluguel: proíbe-se a engenharia
reversa sempre que possível, enquanto se força indiretamente os upgrades, através
de incompatibilidades seletivas sob o efeito rede. O aluguel é pago à vista,
com garantia da gradual dissolução do valor do 'sabonete
caixa-preta'. O preço da recusa aos upgrades é dado pela dependência
aos padrões fechados e proprietários nos quais estão armazenados os dados do licenciado (vendor lock-in). Tal modelo viveu
seu ciclo de eficácia entre a
revolução do downsizing, no final dos anos 70, e a da hiperconectividade, com a Internet atual.
Um software é uma seqüência de símbolos,
formando uma hierarquia de instruções num determinado código ou
linguagem. Copiar uma tal seqüência de símbolos digitais
tem custo desprezível
em relação ao da autoria, sendo que o ato de copiá-la não
destitui quem a detem da posse, usufruto ou disponibilidade da mesma.
Diferentemente de um sabonete, cuja venda destitui quem o detem da
posse, usufruto e disponibilidade do mesmo. O que
significa, na acepção precisa do termo em
economês, que software é um bem não rival e
sabonete é um bem rival. Tratar bens não
rivais, como software, como se fossem rivais, como o sabonete, aguça a avareza mas também leva a
distorções cumulativas nas práticas
comerciais, sociais e jurídicas envolvidas. Por isso, a
eficácia desta estratégia tende a se estreitar com o
tempo.
No caso, em vinte anos, tal qual a estratégia anterior, a do
modelo monolítico dos mainfraimes, que atrelava o negócio
do software ao do hardware. Não por coincidência, a
Internet é o primeiro caso de
sucesso de um modelo de produção e licenciamento
alternativo a ambos, baseado em padrões abertos e
licenças que
tratam o software como bem não rival. Como linguagem
técnica, aberta a especialistas.
Sob o estresse causado pelas distorções do modelo
proprietário, é
natural que o próprio mercado busque modelos alternativos.
É natural que surjam agentes motivados a colaborar no
desenvolvimento coletivo e aberto de softwares, para se livrarem do
jugo escravagista de um tal esquema, enquanto buscam modelos negociais
alternativos. Isso pode ser visto como aventura, mas também como
evolução natural. Foi assim que surgiram e
prosperaram os regimes de desenvolvimento e licenciamento coletivamente
chamados de FOSS (software
livre / de código aberto). Em regimes de licenciamento do modelo
FOSS, os direitos autorais
que um autor deseja proteger não são os mesmos que no
modelo proprietário. Alguns, aliás, são opostos.
É mesmo impossível proteger como segredo uma obra
cujo autor lhe deseja o livre acesso. Moralmente, isso melhor alinha o
FOSS -- que desestimula a avareza -- com a pedra de Moisés. A
resposta do articulista é simplória porque implicitamente
rejeita, ou finge rejeitar, a
possibilidade de modelos sustentáveis alternativos ao
proprietário. 'Finge rejeitar'
está aí porque há outra explicação
plausível, e perigosa, para o seu simplismo. Semente de
dúvidas.
Ao referir-se à política de TI do Governo, o articulista
fala como se software só pudesse ser tratado como sabonete. Fala
da destruição de empresas e do
desemprego tecnológico, de vazamento gratuito de conhecimento,
da
impossibilidade de com ela se conjugar comércio e
exportação, caso software seja tratado doutra forma. Se o
foi
antes do downsizing, não lhe vem ao caso, e ele prossegue. Fala
de obrigações constitucionais do governo como se fossem
aventuras
irresponsáveis, fareja nele uma
cruzada demagógica, quer julgar o que é
melhor para governos. Estudos de
"institutos idôneos" explicariam tais arroubos falaciosos e
previsões tenebrosas. Mas ele só conjuga no futuro do
condicional, e sem citar sequer um único caso ou exemplo. Isso se
chama FUD (Fear, Uncertainty and Doubt), uma forma de terrorismo
verborrágico camuflado de profetismo tecnológico,
patrocinado por gordas contas bancárias e executado por
veículos midiáticos com muita sede de verbas
publicitárias e pouca
paciência com nuanças desambiguadoras entre ficção e fato.
Não é à toa que as dúvidas só crescem. No caso, de propósito: software
não é sabonete; é inteligência
intermediadora, estratégica na era
da informação. Nem toda empresa hoje bem
sucedida no setor trata software
como sabonete. Há sete anos, pelo menos. Conhecimento não se vaza; se expressa. E o
que se
oculta na
intermediação de um software só pode ser imposto a
quem se disponha, caso "livre mercado" não seja apenas uma piada
grosseira, oxímora.
A maior parte da produção de software não é para
distribuição, e portanto, passa ao largo desse
catastrofismo pueril. E empresas que se recusam a evoluir, presas a um modo de
produção por demais avarento e decadente,
pré-internet, e ao regime de licenciamento que lhe faz par, cada
vez mais abusivo, poderão, sim, sucumbir. Mas pela própria inércia
e escassez de demanda
por suas licenças; não pela ação de Estados
cujos governos defendem sua
soberania, da selvageria insuflada no capitalismo pelo fundamentalismo
neoliberal. A menos que tais empresas os enfrentem por isso, na tentativa de desestabilizar ou
criminalizar regimes negociais alternativos.
Na prática, os direitos autorais que um autor de código
aberto deseja defender tem sido, ao contrário do que prega o FUD, muito bem
defendidos até aqui. O mais popular modelo de licença, por exemplo, amparado em dispositivos do tratado
internacional de direito autoral de Berna e adotado pelos autores de mais
de 3/4 dos mais de 70 mil projetos de desenvolvimento colaborativo de
software livre --
a licença GPL (http://www.fsf.org/licensing/licenses/gpl.html)
--, ainda não encontrou, ao longo dos mais de 15 anos em que vem
sendo usado, nenhum interessado em bancar um desafio à sua
consistência
jurídica, em sua jurisdição de origem, nos EUA. E
onde já foi desafiado, recentemente na Alemanha, passou
incólume no teste (http://www.vnunet.com/news/1162512).
O que contrasta enormemente com o nível de litígio
considerado 'normal' para o regime proprietário. Uma lista de
links para ações judiciais nas quais a
maior empresa a operar no regime proprietário já se envolveu, por exemplo,
ocupa mais de sete páginas (em http://www.groklaw.net/staticpages/index.php ?page=2005010107100653)
Outro bom teste tem sido o mais espetacular assalto já
praticado
contra o FOSS. Trata-se de um ataque jurídico bilionário
da empresa
SCO contra meio mundo, inclusive grandes clientes dela mesma,
camuflando tentativas de
extorsão de usuários e de rapto jurídico do
maior patrimônio de usufruto coletivo do software livre, o
direito autoral sobre o Linux. Essas tentativas, baseadas em
esdrúxulas e
fantasiosas teorias hermenêuticas dos direitos contratual e
autoral
norte-americanos, vêm se mostrando, esta sim, uma aventura
demagógica. E, ao final, suicida. Diante do ataque, dezenas de
milhares de usuários e desenvolvedores de
sistemas operacionais e outros softwares livres se mobilizaram para
defender seus interesses e desarmar a farsa. A barragem de FUD e falsas
representações em juízo, nessa saga que se arrasta
há mais de dois anos com dinheiro de origem obscura, vem sendo
meticulosa
e sistematicamente desarticulada com farta documentação, pesquisa e
análise, histórica, técnica e jurídica, num esforço colaborativo ímpar, similar
aos de produção no modelo FOSS (http://www.cio-today.com/story.xhtml?story_id=01800000CPZ0).
Na prática, do outro lado também ocorre o contrário do que prega o FUD. Impossível de se
proteger tem sido mesmo o modelo de negócio que o artigo aponta
como único
viável. Na medida em que, reagindo mal ao estreitamento de sua eficácia, o regime proprietário
radicaliza suas regras, induzindo, com isso, uma escalada de
desobediências, violações, e de custos sociais e
jurídicos para a contenção. Custos que seus
acólitos e vassalos pretendem imputar, pasmem, ao Estado (http://www.cptech.org/ip/health/c/brazil/ brown-waite05242005.pdf),
vítima dentre as mais prejudicadas por esse radicalismo, ante a perda
do controle de sua exposição à espionagem
eletrônica, através das tecnologias de Digital Rights
Management (DRM) de fornecedores proprietários (http://www.hevanet.com/peace/microsoft.htm).
Externalidades de um modelo que trata o consumidor como bandido em
potencial, mas que se assim o trata é pela única forma de
defender seu
quinhão de direito autoral? Aqui, caro leitor, não pode
caber dúvida: o discurso
Goëbellino que pressupõe ou insinua que esse
quinhão, o quinhão máximo, seja obrigatório
a qualquer um que escreva software, é
perigoso e totalitarista.
Um autor que abre o código do seu software é
alguém que julga por si mesmo quais direitos autorais lhe
convem
reter. É alguém que, vendo-se também como
usuário e respeitando os de outros, exerce sua liberdade de
escolha no exercício desses direitos. É alguém que
se nega a abdicar desta liberdade delegando tal julgamento a
terceiros, a uma elite que quer impor ao mundo seus
interesses a qualquer preço, embriagada em esotéricos
dogmas econômicos, nunca comprovados. É alguém
motivado por princípios que nenhum FUD ofusca. Se hoje há
mais de um milhão de programadores ativos e assim dispostos,
qualquer tentativa de se banir essa liberdade e criminalizar tais
escolhas terá conseqüências imprevisíveis.
Culpar ideologia A ou fanatismo B pela marcha do
tempo, da evolução tecnológica e dos
desdobramentos das conquistas humanistas das revoluções
Francesa e Americana, só servirá para espalhar FUD.
Demonizar esta
marcha porque a comissão de frente tem ideólogos e
fanáticos, como se a defesa dos interesses do modelo
proprietário não os tivesse, é FUD.
Para ilustrar, examinemos a segunda pergunta retórica do
artigo em tela: "O software livre não te[m] um
modelo de negócios que se prove sustentável... De que
maneira, então, o
governo espera estimular os negócios de software sem um modelo
de
comercialização viável?" Para quem só pensa
em vender licença de uso, para quem
não quer entender, qualquer prova será insuficiente. Para
quem quer entender, a resposta é, esta sim,
simples: Não é o governo, é o próprio
mercado que estimula. O modelo comercial é o SOA
(Service-Oriented
Arquitectures). O mercado oferece, e o governo prefere. Simples. Seria
uma aventura muito arrogante, em tempos magros e incertos, ignorar esse
rumo do
mercado só porque nele o lucro sobre um trabalho se ganha uma
vez só. É fato insofismável que existe cada
vez mais código livre disponível para reuso, suficiente
para solapar cada vez mais a estratégia de escassez induzida que
sustenta o
mercado de software-sabonete. Se houver algum concorrente disposto a
tirar vantagem desse fato, quem o desdenha pode se ver em desvantagem.
Principalmente na medida em que o concorrente consiga angariar
colaboradores.
A julgar pelo discurso do articulista, não haveria nenhum
concorrente interessado, já que nenhum modelo de negócios
para o FOSS se lhe provou sustentável. Mas ora, nenhum se provou
para ele. Quanto aos
outros, ou ele não se deu ao trabalho de verificar, ou omite.
Ignora que a adesão parcial ou total de empresas a regimes de
desenvolvimento e licenciamento
do modelo FOSS não para de crescer, em todo o mundo, e que a
taxa
de sucesso dessas adesões
se iguala à de outros modelos. Os modelos de negócio
associados vêm se sustentando o bastante para que as
adesões mantenham o ritmo. O que se torna inviável
com o FOSS não é, como prega o FUD, o negócio de
produzir ou comerciar com software, mas a aspiração
monopolista. É a espoliação via vendor lock-in. É a promessa da pirâmide que se esvai, em
favor do monopólio da liberdade semiológica via SOA.
Também outros
setores de TI, além do que produz e comercia com software,
vêm encontrado sucesso com o SOA. Como o setor de
telefonia, que, diante da massiva
hiperconectividade propiciada pelos padrões abertos que
constituem a Internet, expondo seus negócios ao risco de
diluição em convergências tecnológicas, tem
enfrentado
a reengenharia para sobreviver.
Na reengenharia do setor de telefonia,
soluções SOA racionalizam a tarifação por
suporte ao
serviço, e não mais por volume de uso, em busca de maior
eficiência. Ali, onde essa
reengenharia tarifária é tida como útil ou
necessária, ninguém ideologiza, sem se passar por tolo,
tal racionalidade como aventura demagógica. Minha dúvida
aqui é sobre o motivo do articulista omitir critérios de
sustentabilidade objetivos, enquanto está a pregar sobre
objetividade ao governo. Soa a farisaísmo. O mercado de software
continua
desregulado, mas não há mais nele muito espaço
para bobos. Se o articulista é conselheiro de uma
associação de empresas de software, fica difícil
acreditar no seu desconhecimento do sucesso, medido pelo mercado, de
empresas que abraçaram o modelo FOSS. E ainda, quando ele
critica o "brutal crescimento da presença do estado
como produtor, fornecedor e concorrente no setor de software", fica
difícil acreditar que ele não saiba, diante da sabida
penúria por que passa o nosso estado, que o que ele está
aí a descrever
é o efeito sinérgico do FOSS, racionalizando a
produção interna para atender a demandas de TI que se lhe
imputam, exemplo
da eficiência objetiva que todos cobram do estado.
Para que não pairem mais dúvidas sobre a sustentatibilidade do
FOSS e viabilidade do SOA, mencionemos a segunda maior empresa de software do mundo, a
primeira em número de empregados, em faturamento e em portfolio
de patentes. Há vários anos ela vem investindo
bilhões de dólares em desenvolvimento colaborativo de
software livre e de código aberto, em vários projetos
coletivos, inclusive no Brasil. Contrapartida? Sua receita com serviços de
suporte a plataformas de software livre ultrapassa, hoje, o dobro de
sua receita com licenciamento auferida do maior portfolio de patentes
de TI do planeta. No balanço do último trimestre de 2004,
essa empresa estimava uma reserva de pedidos de serviços por
executar, primariamente em plataformas de software livre, de cerca de
U$ 111 bilhões de dólares (http://www.ibm.com/investor/4q04/4q04earnings.phtml).
A mais grave omissão do articulista, entretanto, não
é de números e fatos como estes, ou de outros do gênero
(http://www.flossworld.org).
Mais grave é ignorar completamente empresas brasileiras que
operam com sucesso e só no modelo FOSS, como a Cyclades e a
Conectiva. Esta, com operações continentais recentemente
globalizadas, por associação à francesa Mandrake.
É ignorá-las num artigo onde assina como conselheiro da
associação de empresas brasileiras do setor e como autor.
Donde surgem
outras dúvidas: que interesses sua associação
representa? Pelo teor do artigo, parece que só os dos
monopólios proprietários. Quem é que está a
retroceder no tempo? Seu catastrofismo profético sobre os
efeitos nefastos da política governamental -- de incentivo ao
FOSS -- nas exportações soa piegas: quais empresas
brasileiras do setor vivem hoje da venda de licenças de uso dos
seus softwares? Ele não diz, e eu as desconheço. Como
elas, caso existam, galgariam o lado global da pirâmide do modelo
proprietário, enquanto o lado local
também já está dominado pelo monopolismo
transnacional? Bastaria que o
governo aceitasse passivamente a dominação, alargando o
seu ralo de despesas com royalties para a medida do apetite
monopolista? Duvido. Como
política pública, esta sim, seria uma aventura
demagógica. E, com agenda oculta.
Se não, vejamos. A radicalização do regime de
licenciamento proprietário tem se mostrado insuficiente para
neutralizar o encolhimento de sua eficiência. Daí, o
marketing proprietário pressiona: o
valor das licenças não pagas, por conta da pirataria
digital, constitui perda da indústria (do software
proprietário), debitável à ineficiência do
Estado. Mas quem garante que o infrator não optaria
por software livre, se fosse obrigado a pagar pela licença?
Quem garante que tal postura sobre pirataria não seja
hipócrita, já que a mesma agrega valor de uso ao produto
via efeito rede, e fidelização de futuros clientes a
custo zero? Dúvidas. Em paralelo, interesses se concentram no
lobby legislativo, para a
aprovação de leis mais severas e desequilibradas de
direito autoral e de patentes. Mais dúvidas, sobre o
custo/benefício. Ato seguinte,
ideologiza-se o FUD: software livre é coisa de comunista! Quem
prova, e como? Agora, a pressão é imperial.
Pressão para que os países interessados em ter o direito
ao "livre comércio" globalizado, se submetam, através de
tratados
internacionais, ao neo-colonialismo patentário (http://www.technetra.com/writings/silicon_valley/ innovation_or_patent_colonialism_html).
Principalmente os que estejam reféns da agiotagem global. O
cerco se fecha, de volta às licenças de uso. Em novembro
passado, o maior agente interessado na defesa do modelo proprietário anunciou sua
nova estratégia.
No Asian
Government Leaders Forum de 2004, em Cingapura, o presidente da maior
empresa de software do mundo esclareceu como esse fecho se dará. Ao se incluir, nas licenças de uso dos seus softwares,
algo como um seguro compulsório contra responsabilização
solidária do licenciado em eventuais litígios,
nos quais o licenciado possa se ver envolvido por conta do
acirramento da guerra de patentes promovida por esta nova forma de
colonialismo.
Isso resguardaria a liberação do arsenal de patentes sobre idéias, do portfolio da
empresa, para uso, supostamente com a participação da
Organização Mundial do Comércio (OMC), como arma
de pressão e ameaça contra países que, em sua
política de
informática, elejam o FOSS como regime
preferencial de desenvolvimento ou licenciamento (http://www.groklaw.net/article.php? story=20041118224916429). Por sinal, uma entidade testa-de-ferro dos interesses desta empresa -- a CompTia -- recém
ingressou, por este motivo, com queixa-crime contra o Brasil na OMC (http://www.softwarelivre.org/news/3406).
A dúvida que agora me assalta é: por que o tal seguro
compulsório só entrou no marketing, e talvez no
preço, das licenças? Até onde se saiba, o tal
seguro ainda não apareceu nas licenças propriamente ditas.
Ao menos nas do sistema operacional que é o
carro-chefe da empresa, nesta data (http://www.microsoft.com/windowsxp/pro/eula.mspx),
enquanto a cláusula que autoriza o licenciador a espionar a
plataforma do licenciado se pereniza. No caso do tal sistema, no
parágrafo 2 do artigo 7. Mas esta é uma
dúvida apenas retórica, já que o repertório
de práticas eticamente questionáveis, e sentenças
condenatórias por práticas monopolistas abusivas, sob os
links daquelas sete
páginas não nos autoriza aqui a surpresa. Nem
mesmo se a licença linkada neste parágrafo desmentir o
que nele é dito,
já que tal empresa não costuma datar nem nomear autores
de seus documentos on-line.
Embora o leitura do artigo comentado possa nos assaltar com mais
dúvidas, como por exemplo, pela reprise da falácia sobre
reserva de mercado (vide http://www.pedro.jmrezende.com.br/trabs/mandarino3.htm),
creio ser prudente parar por aqui, pois a tranqüilidade do leitor
pode já ter sido suficientemente abusada. Encerro, então,
com duas certezas. Tentar impor, no grito, um regime de licenças
decadente e
escravagista aos governos, camuflado-o com critérios
economicistas fajutos a título
de respeito a regras concorrenciais, enquanto se tenta ostracizar a
racionalidade que o próprio mercado aponta, não é
apenas FUD. É
ideologização totalitarista e perigosa. Acima dessas
regras existem as Constituições, e a nossa obriga o
governo a defender sua soberania. Que soberania nos restará
quando os atos de governo forem executados através de documentos
cujos formatos e meios legítimos de acesso -- do
tipo sabonete caixa-preta -- sejam propriedade estrangeira, sob
jurisdição estrangeira? Muito pouco, tenham certeza.
Como vemos, o caso SCO pode ser apenas um balão de ensaio, uma
missão de busca e reconhecimento. A guerra é global e
promete ser boa. O moral de quem se vê atacado em artigos como o
que aqui comentamos só aumenta com o tipo de FUD dali disparado.
A arrogância que exsuda, cega pela avareza, do desdém ao
poder que a hiperconectividade devolve às consciências
numa sociedade informatizada, onde a liberdade de acessar e expressar o
conhecimento se torna vital, cobrará o seu preço.
Negociável ou não, ele parece inevitável.