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O Brasil Fustigado

Pubicado no Observatório da Imprensa em 23/10/91

Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasilia
29 de Setembro de 2001


O Congresso Nacional viveu cenas chocantes, com seu recem eleito presidente vaiado e xingado por uma turba de parlamentares, enfurecidos com sua condução da votação do PPA, em 26/09. Alguns prometeram recorrer ao STF para anular a votação, enquanto se viam alvos de promessas de punição por falta de decoro. A alguns jornalistas o presidente Ramez Tebet admitiu, depois, não ter estudado a matéria votada, e a possibilidade de ter prejudicado a oposição e ferido o regimento, no encaminhamento que deu à mesma. O que haveria por trás de tanta indignação com este deslize?

O PPA continha matéria de alta voltagem ideológica, merecendo cautela em sua condução. No cerne da confusão estavam dispositivos sobre prioridades na escolha de softwares do programa Internet na Escola, licitados pela Anatel com recursos do FUST, que quer dispensar concorrência. Sobre esta cautela Miriam Leitão, que é do MEC e escreve uma coluna de economia no jornal o Globo, disse que o mundo dos sistemas operacionais movimenta paixões e bilhões. Por que?

A resposta curta é que softwares são a chave do poder na revolução digital. A longa, pede a compreensão de como esta chave opera. Softwares controlam e transformam dados digitais, que se tornam informação quando contextualizados, o ativo principal na nova economia. Dentre os softwares, os sistemas operacionais são os que controlam outros softwares. Intermediam as conexões destes aos recursos físicos (hardware e mídia) e lógicos (formatos e protocolos digitais) que lhes perimitem realizar suas funções.

A paixão que movimentam não é bem pela causa deste ou daquele, mas antes, pela causa do modelo de negócio por trás. Como cumprem, no mundo virtual, o mesmo papel que a capacidade linguística cumpre no mundo da vida, seu negócio é de natureza semiológica. Um sistema operacional é como um idioma, pois quem o domina ganha acesso e poder de manipular informação. Por isso o negócio dos sistemas operacionais é naturalmente monopolista, da mesma forma que uma cultura humana tende a desenvolver um idioma comum. E por isso as pessoas se sentem culturalmente ligadas a eles, por ligações que se transformam em paixão quando ameaçadas.

No caso dos idiomas, o modelo de negócio é livre. Ninguém, por exemplo, é dono absoluto da lingua portuguesa. Aprende e usa quem quer, bem ou mal, mas livremente. Seu monopólio é o da liberdade. Da mesma forma, o modelo de negócio do software livre é aquele onde seu código é aberto e seus preços são negociáveis, à excessão da sua liberdade, que não se vende. Mas, quando o negócio dos sistemas operacionais se torna absolutista, isto é, proprietário e monopolista (não foi assim que começaram), suas características universalizantes se tornam moeda de troca para o exercício de um poder absolutizante. A moeda dos formatos e protocolos que dão compatibilidade e interoperabilidade aos softwares, que se expressam por seu intermédio.

O modelo de negócio expresso na licença sob a qual é distribuido o Linux, opção ao Windows para a escolha em foco nos editais de que trata o PPA, e milhares de outros softwares livres, é o modelo GPL. Este modelo evidencia o caráter semiológico no negócio do software, contrabalançando seu caráter mercadológico, hoje exacerbado pelo fundamentalismo de mercado que dirige a globalização, como no modelo de negócio do Windows, expresso em sua licença de uso (EULA). Para o presidente Fernando Henrique, o fundamentalismo de mercado causa perversidades, como explica em artigo no JB de 12/8/01. Neste ideário fundamentalista, do software só importa o negócio tecnológico, sendo irrelevante o seu processo semiológico. E seriam infantis quaisquer ideologias além desta, por não terem valor econômico. Enquanto o EULA do Windows busca proteger a liberdade de mercado, realizadora deste ideário, o GPL busca proteger a liberdade humana, única capaz de realizar o legado humanista da nossa civilização.

A paixão pelo software livre é fruto de uma reação natural do homem livre ao déficit de controles sociais na esfera virtual, que permitiu ao Windows e seu dono desenvolverem tendências absolutistas, ameaçando a liberdade de escolha na esfera virtual. Não da escolha de softwares, mas de formatos e protocolos pelos quais softwares podem ser úteis e evoluir, em direção à confiabilidade. A asfixia desta escolha se reflete comprovadamente na precária e crescente insegurança da navegação na rede global, como alertam vários especialistas na área.

A luta ideológica que alimenta a paixão transbordada no Congresso, é uma luta darwiniana pela sobrevivência de espécies de negócio na esfera virtual. O que se tenta camuflar como vantagem pedagógica na dispensa de concorrência do edital da Anatel é, no fundo, um alinhamento automático e servil com o fundamentalismo de mercado, nesta batalha. Mas o edital precisa seguir as diretrizes do PPA, que chegou à sessão conjunta do congresso com dispositivos para neutralizar este servilismo. Teve ali estes dispositivos derrubados e, pelo regimento, deveria voltar à comissão de orçamento, fato ignorado por Tebet. O critério adotado pela Anatel e resgatado pela votação açodada de 26/09 é de uma lógica implacável, que expõe claramente este servilismo.

Segundo ela, o aluno deve dominar instrumentos de escrita que sua sociedade adota. Como 90% do mercado prefere a tecnologia das esferográficas Bic, dispensa-se a concorrência e elimina-se a lousa, o lápis e os crayons das salas de aula. O edital trata assim um desses instrumentos, o computador. O que o MEC quer oferecer, com sua escolha de software para o programa Internet na Escola, é treinamento em produtos de uma empresa inidônea, à guisa de educação e às custas do erário. Treinamento não é o mesmo que formação. Não se trata apenas do critério de economicidade que está sendo agredido, mas principalmente nossa soberania, pelo amordaçamento do ensino público. Este ensino seria privado da diversidade digital e do controle dos custos de sua plugagem na Internet, passivamente submetido ao monopolismo de uma multinacional que aguarda apenação por práticas lesivas à socieade, em seu país de origem, por buscar a todo custo perpetuar dependências mercantis a seus produtos, serviços e práticas contratuais, através de artifícios semiológicos e jurídicos.

Os casuísmos da lógica que tanto enfurece parlamentares não se esgotam na sua dimensão pedagógica. Monopólios econômicos precisam ser quebrados quando são estatais, como foi a Embratel. Mas quando for multinacional precisa ser perpetuado, pela mesma lógica do mercado, como quer a Anatel manipulando a aferição do interesse público. O fato da empresa favorecida com dispensa de concorrência não ter sua condenação ainda transitado em julgado não anula esta condenação, como quer nos empulhar sua máquina publicitária, inclusive do alto da rampa do Planalto. Seria este o tipo de perversão na globalização que FHC diz querer corrigir?

O que o Brasil está conquistando em independência tecnológica, contribuindo para segurar a espada de Dâmocles da balança de pagamentos que paira sobre nossas cabeças, pelos esforços do Minstro da Saúde, alguns de seus colegas querem devolver pelas verbas do FUST, com o aluno brasileiro tratado feito gado, apertador de botões. Nesta globalização o povo brasileiro segue sendo fustigado, conduzido ao matadouro do fundamentalismo de mercado como gado de corte inocente, por decisões como a da Anatel e com a cumplicidade do presidente Tebet. Seremos todos lá punidos, por omissão ou ingenuidade. Desnecessário punir quem muge a caminho.


v.2
19/10/01