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Grande mídia ataca liberdade II

Comentários sobre a nota "0,1599%" da revista IstoÉ Dinheiro de 19/05/04

Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
22 de Maio de 2004


IstoÉ Dinheiro (versão eletrônica) de 15/5/04 volta a nos brindar, em matéria assinada por Taís Lobo e Juliana Mariz ( www.terra.com.br/istoedinheiro/350/mercadodigital/mercado_digital_2.htm), com ilações que nos põem a indagar onde mais o jornalismo praticado por Larry Rohter faz escola.

Diz a nota:

"A corrente pró-software livre dentro do governo federal ficou enfraquecida após a contabilização final das declarações de Imposto de Renda entregues este ano pela internet. A expectativa inicial era que muitos "linuxistas" fizessem suas declarações a partir de outros sistemas operacionais que não o Windows. A realidade se revelou amarga. Os arquivos enviados de softwares como o Linux representaram menos de 1% do volume total. Para ser mais preciso: 0,01599%. Foram apenas 2.990 declarações das 18,7 milhões entregues."

O que se revela amarga, primeiramente, é a hipocrisia com que se trata a questão da pirataria digital na grande imprensa.

A iniciativa do governo, através da sua atual política de informática, é a de oferecer ao contribuinte uma alternativa digna para o exercício de suas obrigações cidadãs. Para que o mesmo não seja forçado, como dantes, a escolher entre a submissão passiva à espoliação e ao cativeiro semiológico, ou à prática de crime contra o direito autoral de poderosos monopolistas, se optar por exercê-las através da informática.

A realidade que não amarga o bastante na boca das duas jornalistas, ao menos a ponto de ofuscar as picuinhas estatísticas que anunciam com tal gosto, é que mais da metade das declarações teriam sido enviadas de softwares ilegalmente instalados, de acordo com outras estatísticas, oferecidas pelos interessados no combate à pirataria digital. E certamente que nenhuma das quase 10 milhões de declarações ilegalmente enviadas está entre as 2.990: qualquer instalação para uso de software livre como o Linux, qualquer que seja a origem, é legal.

Em vez de explicar por que mais da metade dos contribuintes não legaliza os softwares que usam para submeter suas declarações, ou a natureza dos abusos contratuais a que se submetem aqueles que o fazem, a nota prefere decretar o enfraquecimento de uma corrente cujos elos as autoras sequer se dão ao trabalho de conhecer. Sobre a política de informática do governo presumem motivos, na soberba ou na cumplicidade, e erram feio. Seus veículos ora demonizam, ora adocicam a vida dos piratas digitais, conforme lhes convém.

Veneno amargo

Se a grande maioria dos contribuintes prefere cumprir suas obrigações fiscais violando direitos autorais digitais, isso definitivamente não é um problema da corrente pró-software livre do governo. Isso talvez seja um problema associado à vassalagem da grande maioria da imprensa, que, de pires na mão, distorce o que está em jogo, atemoriza com FUD [sigla para "Fear, Uncertainty and Doubt" -- medo, incerteza e dúvida --, da qual se faz parônimo com "fudge&", borrão] o cidadão em relação a alternativas, pintando seu cativeiro digital atual com róseos tons de fatalidade, de olho em gordas contas publicitárias. Tudo funciona como conluio para sustentar uma síndrome de empatia pelo seqüestrador.

O problema da corrente pró-software livre do governo é mobilizar o Estado para que ofereça alternativa a si e ao cidadão. O que ela está conseguindo, com muita tenacidade e determinação. Por que as duas jornalistas não focaram a estatística da maioria? Por que a ocasião não lhes serviu para comparar licenças de uso de sistemas operacionais livres com as do Windows, mostrando ao leitor quanto de cidadania se constrói com essas, e quanto se abdica com aquelas?

Um motivo bem plausível seria o de nunca terem lido uma licença de software, enquanto acham natural seguir fazendo jornalismo sobre informática sem conhecer nenhuma. Enquanto sequer se amargam com o fato de que, para se ter direito a conhecer uma licença de uso do Windows, não basta querer. É preciso ter instalado o software, tendo pago antes, e só nesse momento psicologicamente desfavorável. Outro motivo plausível seria o risco de demissão, caso escrevessem sobre a natureza do cativeiro semiológico criado por esses contratos.

No mais, dos pinguinistas que entregaram declarações, alguns podem ter se excluído dos 2.990 por vários motivos, todos ignorados na pirracinha. A versão multiplataforma do software, em linguagem Java, só saiu depois de um mês de iniciado o recebimento de declarações. Muitos podem ter desejado se ver livre da obrigação o quanto antes, mesmo porque, quanto mais cedo declaram, restituição mais cedo recebem. Também havia limitações sobre quem poderia declarar usando a versão multiplataforma, o que poderia ter impedido outros.

Quanto a mim, que tenho GNU/Linux instalado e sou professor de Criptografia e Segurança na Informática da Universidade de Brasília, não quis nem uma coisa nem outra por um motivo racional. Prefiro entregar minha declaração no formulário em papel, já que esta escolha me gera recibo legível por qualquer mortal, não apenas por software criptográfico do órgão do Estado que poderia, justamente ele, contestar a honestidade e a lisura do meu ato.

Esta nota não foi um episódio isolado. A mesma revista, em 30 de junho de 2003, ataca executores da atual política de informática do governo, instigando a intriga palaciana e decretando o risco desta levar o país a ‘isolamento do mercado internacional’, como se a IBM, a Novell, a HP e a Conectiva fossem empresas de fundo de quintal, e como se jornalismo assim praticado pudesse dissimular seus motivos ( www.terra.com.br/istoedinheiro/309/ecommerce/309_todo_poderoso.htm), devidamente comentada em http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/news/showNews/eno050820031.htm. Ficou enfraquecida, a meu ver, não a corrente da qual me orgulho em participar, com a estatística apresentada pela nota, mas a reputação deste órgão da mídia, com sua estreiteza e amargoso veneno.