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Grande mídia ataca liberdade

Comentários sobre artigo
"Microsoft ataca Brasil" no jornal Correio Braziliense

Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
17 de outubro de 2003



O Correio Braziliense de 12/10/03 volta a nos brindar, em matéria assinada por Felipe Campbell, com o tipo de jornalismo que nos põe a refletir sobre o papel da grande imprensa no Brasil de hoje. Para resumir, uma análise semiológica do episódio nos mostra como o ato de informar pode ser enveneado por destrezas editoriais furtivas.

Não será um episódio isolado, já que este incidente reitera a tendência do maior jornal da capital federal em confundir, se não desinformar, o leitor a respeito do confronto ideológico entre os modelos de produção e negócio do software que hoje se chocam (veja alguns precedentes em http://www.observatoriodaimprensa.com.br/ artigos/eno111220021.htm).

Para os acionistas que o controlam, trata-se de uma tendência inofensiva à combalida situação financeira do jornal, pelo menos por enquanto. Aliás, tendência que pode até ser nisso benéfica. Prejuízo, por enquanto, só à sua missão pública. O confronto está no cerne do esquema de pirâmide que o governo norte-americano quer impor às Américas, através da Alca, no que chama de "direitos de propriedade intelectual", por meio do que o negociador brasileiro chamou de "agenda teológica". Não só às Américas mas a todo o mundo, através da OMC.

Em matéria principal do caderno "Economia", acima do título garrafal "Microsoft ataca Brasil", o editor traz chamada com duas frases que se insinuam, por justaposição, portadoras de sentidos conexos.

"Gigante internacional critica decisão do governo federal de dar preferência ao uso de software livre nos computadores de órgãos da administração pública. Empresas pressionam pelo pagamento de direitos autorais".
Porém, a leitura do que segue leva-nos à conclusão de que os sentidos das duas frases estarão, se extraídos do texto, completamente desconectados. Embora a segunda frase da chamada se insinue como justificativa para o ataque anunciado no título, a relação que ela guarda com a primeira, descrevendo a fúria do monopolismo ameaçado, é oposta à que insinua a justaposição de ambas sob tal título. Esta discrepância seria apenas uma curiosidade, indicando, talvez, pouca familiaridade do editor com o assunto de que trata o articulista, não fosse por importante detalhe.

Se examinarmos os fatos por trás da contenda, podemos concluir que a pressão de empresas de software proprietário pelo pagamento de direitos autorais não tem relação outra com a escolha por software livre, a não pelo fato dessa pressão tornar essa escolha ainda mais racional. Uma coisa é software livre (direitos autorais não cobráveis), outra coisa é software pirata (direitos autorais não pagos). A primeira frase se refere a software livre, e a segunda a software pirata. Doutra feita, a pirataria de software proprietário constuma ser tolerada para a indução de hábitos semiológicos, e ao mesmo tempo brandida para justificar práticas negociais e regulamentações abusivas.

Software livre é aquele cujo detentor dos direitos autorais o coloca em usufruto público: como negócio, tal decisão serve para induzir seu próprio mercado de serviços e suporte. E software pirata é aquele cujo usufruto é privado e cujo usuário se vale de cópia ilegal: como negócio, tal uso é regulado por draconianos e fantasmagóricos contratos de adesão (alguém consegue ler uma licença de uso do windows XP antes de intalar o sistema, com suas 16 portas de fundo?). O que faz um modelo parecer viável e o outro não, depende, podendo inverte-se, da lente de avareza através da qual se escolhe enxergar expectativas, horizontes, modos e taxas de retorno, econômico e social, ao investimento na produção de software.

O verdadeiro efeito de tal justaposição pode ser o de levar o leitor a inverter sua percepção inicial sobre a moralidade do noticiado ataque, sem que se agrida, no restante da matéria, a veracidade da narrativa. Tal manobra acaba envenenado, com conotações de possível ilegalidade, a ação de um Estado que exercita sua autonomia num mundo dominado pelo dogma fundamentalista de mercado. Noutras palavras, servindo de enganosa propaganda em favor da imperial agenda teológica "pelo livre comércio", à guisa de notícia econômica.

Tentar embaralhar as duas coisas -- software livre e software pirata --, à guisa de se noticiar contenda ideológica que repercute no plano econômico, crucial para o futuro da liberdade humana, é exemplo maior de irresponsabilidade jornalística. É apologia à desenfreada fetichização mercadológica que avança rumo à destruição do conceito de bem público, ao escravagismo digital e à negação da liberdade humana de acesso ao conhecimento, disfarçada de notícia.

Insinuar cobrança de direito autoral como possível justificativa ou meio de ataque ao governo federal por sua escolha, é conotar software livre como violador de direito autoral de empresas que negociam noutro modelo, quando, na verdade, é na direção contrária que a apropriação indébita por quem produz software vem sendo comprovada. É, também, conotar o governo brasileiro como Estado bandido, quando, na verdade, sua escolha é pela defesa do interesse público, contra práticas monopolistas abusivas e predatórias e contra a erosão da sua autonomia e da ordem pública, decorrentes das distorções de um modelo de negócio que esgotou seu ciclo de eficácia e busca sobrevida a qualquer modo e custo.

Fosse a matéria equilibrada, a última avaliação judicial das práticas do citado "gigante internacional" em relação a direito autoral alheio, por exemplo, não teria sucumbido ao crivo de "valor jornalístico" do autor ou editor:  recém-condenada, em primeira instância, por violação de patentes da empresa EOLAS (Embeded Objects Linked Across Systems) e da Universidade da Califórnia, referentes a plugins de conteudo ativo no seu navegador, a pagar US 521 milhões a título de reparação (veja em http://www.newsfactor.com/perl/story/22199.html). Empresas pressionam, portanto, para cobrar inclusive pelo que não lhes pertence.

Mas o que diz, afinal, a matéria, além da chamada? Mostra o presidente da empresa gigante ensinando como o governo brasileiro deve escolher software: "Deve escolher pelo valor agregado". Mas é claro que o valor agregado a que se refere a lição seria aquele medido pela escala da própria empresa, anexado à agenda teológica da Alca. Nela, o valor representado pelo direito de se auditar o software, com builds independentes (oferecido pelo software livre), para que o usário saiba se o que ele faz com dados é exatamente o que anuncia, não conta. O valor do acesso à lógica do software, para adaptá-lo às necessidades e ao controle autônomo de vulnerabilidades, tampouco.

E quanto ao currículo do professor? Bem, talvez não seja muito abonador, além do saldo da conta bancária. A empresa que dirige acumula condenações por violação de direitos intelectuais alheios que não se restringem ao supracitado. Já foi condenada, em ação movida pela Sun Microsystems, por violação dos direitos da platafroma Java. E antes, em última instância, por falsas mensagens de erro na primeira versão do windows 3.11, que sinalizava mentirosa incompatibilidade com o sistema DR-DOS, concorrente ao MS-DOS. E, em 8 de outubro de 2001, por prática monopolista predatória no mercado de navegadores, de onde o seu produto apresenta o recorde de vulnerabilidades dentre todos os que se tem em registro. Sem falar nos processos por propaganda enganosa.

Tendo chegado tarde na corrida do ouro da internet, já que seu presidente não acreditava que uma "coisa sem dono", como a internet,  pudesse dar certo, teve que correr atrás do prejuízo. Comprou o Mosaic da SpyGlass, renomeou-o  Internet Explorer, e nele introduziu, como linguagem de conteudo ativo, além do JavaScript (para interoperabilidade com outros navegadores), o VBScript, para manter sua base de 8 milhões de programadores da antiga plataforma MS-DOS, na desabalada corrida por dominação em competência teconológica no emergente mercado de desenvolvimento de aplicações habilitadas à web.

Enquanto partia para asfixiar concorrentes nesse mercado, lastreada na sua posição monopolista no mercado dos sistemas operacionais para desktops, estratégia que resultou na histórica condenação de 8 de outubro de 2001, desfecho da chamada "guerra dos browsers", por sentença unânime e incomentada da suprema corte norte-americana (que o Correio Braziliense não noticiou).

Ocorre que o VBScript é um dialeto da linguagem de controle de processos do windows, o VBasic. Incorporar esta linguagem de conteúdo ativo para aplicações em rede aberta foi uma decisão estratégica que teve, como consequência técnica, a derrubada da fronteira entre o público e o privado nos seus sistemas, tornando-os praticamente indefensáveis, como podemos comprovar pelo cenário de hoje, com a infindável corrida entre vírus e remendos (os patches). O vírus Sobig pode ser apenas uma amostra do que vem por aí. A responsabilidade, segundo os adeptos do santo byte [1], é toda dos hackers, os bruxos pós-modernos.

Aqueles que acham que as práticas abusivas do poder monopolista na indústria de TI recebem o devido controle social através do sistema judicial, e que, ademais, se esse controle ainda não mostra resultados é porque o sistema ainda não concentrou suficiente poder de fogo na caça aos bruxos de hoje, não devem comemorar ainda suas "vitórias de pirro". Quem paga pelas condenações aqui citadas, e pelos advogados que com elas ganham, são os pagadores de licença de uso dos softwares. E quase sempre, as condenções se tornam prêmios aos réus.

No caso da guerra dos browsers, nada da irresponsabilidade social pela decisão de se incorporar o VBScript ao navegador veio à tona. Na hora da apenação, a empresa conseguiu afastar o juiz que lavrou a primeira sentença (ele havia dado entrevista comparando o fundador da empresa a Napoleão), e a juíza substituta "obrigou" a empresa, como "castigo", a licenciar o uso de suas APIs de middleware: e como compensação pelo "castigo", outorgou-lhe o explícito direito de cobrar, de autores de outros softwares, "licença" pela interoperabilidade através dos padrões estabelecidos por essas APIs.

E quanto aos direitos do consumidor, em um mercado assim dominado pelo monopólio? Até agora, a "gigante internacional" tem escapado de responsabilização nesta esfera, através de engenharia social nas suas licenças de uso, do criativo emprego da estratégia do vendor lock-in, e da propaganda exploradora do fascínio coletivo pela teconolofia-enquanto-panacéia (com ajuda de "notícias" como a supracitada), exploração que propaga a perigosa seita do santo byte, e de um das maires folhas de pagamento de departamento jurídico no mundo.

Já do outro lado, que notícia temos do software livre "roubando propriedade intelectual" alheia? Temos a empresa SCO que anunciou, com estardalhaço, em maio deste ano, estar processando a IBM, a maior das empresas ativas em empreendimentos no modelo do software livre, por suposta "violação da propriedade intelectual do Unix system 5", exigindo, de início, 3 bilhões de dólares em indenização (a IBM, além de distribuir GNU/Linux, livre, licenciou e distribui sua sua versão do Unix, o AIX, proprietário).

Que violação é essa? Ninguém sabe. A SCO, ora alega que programadores do Linux "piratearam suas idéias", ora que "piratearam seu código" (código-fonte do Unix System 5), mas não diz exatamente o quê, alegando proteger seu segredo de negócio: "só mostraremos as provas em juízo". Enquanto isto, vai chantageando clientes da IBM e usuários de Linux pelo mundo. Quer dizer, literalmente, "pressiona pelo pagamento de direitos autorais" mas faltando dizer, nesse caso, que tais direitos são apenas alegados.

Se tal alegação for por algum pedaço de código "vazado" inadvertidamente do System 5 ou do AIX, em uma semana esse pedaço seria refeito no Linux. São 350 mil programadores contribuindo, basta aos coordenadores saberem qual é o pedaço inadverdidamente ofensor. Se for por algum segredo de negócio (idéia sobre como escrever algum código), a SCO não teria dado bola para tal coisa, tendo comprado "seus direitos" (sobre o Unix) em 1995, ocasião em que qualquer livro sobre sistemas operacionais já ensinava como o Unix funciona.

E, pela letra da lei, se não zelou do segredo, havendo tacitamente deconhecido-o, não teria do que reclamar. Mesmo porque, enquanto lhe convinha, ganhava dinheiro com o próprio Linux, em distribuição GNU/Linux de autoria alheia, que ela agora acusa de ser "ladrão" da sua "propriedade intelectual" (só parou de distribuir GNU/Linux três semanas depois que começou a chantagem).

E na maior cara de pau as chantagens se intensificam, enquanto a primeira audiência com o juiz só em 2005. (http://www.newsfactor.com/perl/story/22014.html). Há nisso, todavia, algo ainda mais sinistro. A Novell, segundo a SCO, teria lhe vendido (por US$75 milhões) "os direitos" do Unix system 5 -- inclusive sobre eventuais "trabalhos derivativos". A Novell, por sua vez, os teria comprado em 1992 da AT&T (criadora do Unix), em outros termos. Quando começou a chantagem, no início de maio, até a Novell veio a público na mídia, para dizer que sua venda não incluiu os tais "direitos derivativos".

A AT&T havia liderado um processo colaborativo com distintas licenças e versões do código-fonte do Unix, entre 1974 e 1983, através do qual pedaços de código do FreeBSD (concorrente do Linux no mundo livre, originado na Universidade de Berkeley) foram parar no próprio Unix System 5, bem antes da expressão "pirataria de código" reverberar, pela primeira vez, nas cordas vocais de qualquer advogado, juiz, jurista, marqueteiro ou jornalista.

Se cooperação depois vira pirataria, e 75 milhões de doletas legalizam o vampirismo, drácula agora quer 3 bihões pra começar, num passe de mágica juridiquesa: trabalhos intelectuais derivativos (alheios)! Em livros de Direito uma estória como esta, da contenda da SCO sobre direito a trabalhos derivativos que surge do nada, daria um bom exemplo de tipificação de estelionato digital. Mas na imperial agenda teológica do "livre comércio" representa a sacrossanta pedra de toque no esquema de pirâmide da "propriedade intelectual".

Recentemente um grupo de cientistas e profissionais da segurança computacional, dentre os mais competentes e ilustres no mundo, assinou um relatório que produziram sob os auspícios da Computer & Communications Industry Association (CCIA), alertando a sociedade globalizada sobre o crescente risco sistêmico decorrente da atual estratégia de consolidação monopolista da indústria de TI, sacramentada na imperial agenda teológica "pelo livre comércio".

Antes que os  fanáticos do santo byte continuem o exorcismo, iniciado com a demissão sumária de um dos signatários, pela empresa de segurança digital onde trabalhava e liderava pesquisas, observe-se que um dos autores do manifesto, Bruce Schneier, fundou e dirige a primeira empresa de segurança digital a conseguir, para seus clientes, apólices de seguro contra invasões [2]. Nada disso, pelo visto, representa "valor jornalístico" para o editor de Economia do Correio Braziliense, para outros do mesmo jornal e, por que não dizer, da grande mídia que anda de pires na mão.

Pergunta-se: Como pode o governo brasileiro lançar-se na informatização dos seus processos negociais e jurídicos, sob o mantra entusiasticamente entoado pelos adeptos da seita do santo byte, pela inclusão digital, lastreado-os em sistemas monopolistas inauditáveis e infestos de portas de fundo, arapucas que o próprio fabricante alardeia sob pretexto de "gerenciar seus direitos digitais"? Lastreando-os em monopólios técnico-econômicos que eximbem tal perfil de conflitos com o interesse público, e sob a peia de uma miraculosa agenda teológica do "livre comércio" que, antes de provar seu milagre, ameaça a humanidade com o espectro da volta à escravatura, desta vez na esfera do conhecimento?

Defender sua autonomia e a ordem pública são deveres constitucionais do governo. Insinuar bandidagem no cumprimento deste dever é prática jornalística perigosa. A imprensa não deve atacar, mesmo que indiretamente, o governo pelo exercício da liberdade de cumpri-lo. Não deve se afoitar com lamentáveis maus exemplos, como o de um supremo magistrado que recentemente insinuou, à guisa de troçar com o triste vexame da confissão de um dos seus pares, à época deputado constituinte, de ter manipulado, entre votação e aprovação legislativa, nossa Lei Maior.

A imprensa não deve se entusiarmar com a insinuação de que o exercício da suprema magistratura, na guarda da nossa Constituição, seja talvez uma atividade desnecessária, supérflua ou inútil. Sua ilocução em público, diante de microfones da mídia, pela boca de quem comanda a Justiça Eleitoral [3], torna desnecessária, supérflua e fútil qualquer antipatia prévia, presidencial inclusive e principalmente, para que se configure campanha pública desestabilizadora do poder que o perlocutor representa.

Uma troça na corte já funcionou como estopim para rebeliões populares, na França iluminista. E um contrato governamental monopolista e abusivo, lesivo ao interesse público, acaba de assim também funcionar, num país vizinho ao nosso. Enquanto escrevo, bem ali ainda se lava sangue do asfalto [levante e deposição do presidente Sanchez de Lozada, na Bolívia]. Não sabemos como vai estar o Brasil daqui a poucos anos, no mundo perigoso que habitamos.

Mas sabemos, e saberermos, reconhecer a desavergonhada vassalagem de punhos rendados, que pretende perpetuar privilégios seus e mazelas nossas, em troca de eternas promessas vazias, cada vez mas dissoantes. Quem tem telhado de vidro deveria acautelar-se com o que deixa sair de sua boca ou de sua pena, em tempos de transformações sociais tão rápidas, profundas e imprevisíveis como os que estamos vivendo.
 



O sujeito inominado do direito e a novilíngua

Comentários sobre matéria de capa
"Por que a pirataria pode acabar com seu negócio" na Revista Exame

Publicado no Observatório da Impensa

Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
4 de novembro de 2003

A revista Exame traz reportagem de capa sobre pirataria, na sua edição de 29 de outubro. Na capa, uma bandeira de pirata em fundo vermelho e título "Por que a pirataria pode acabar com o seu negócio (e como se defender dos corsários corporativos)". A matéria põe no mesmo saco cópias falsificadas de produtos físicos e cópias de software livre.

Cópias de software livre são absolutamente legítimas. Porém, ao explicar o movimento do software livre "em resumo", os autores arriscam: "Em vez de tentar fazer valer os direitos de propriedade intelectual – o que é cada vez mais difícil com a internet – o movimento do software livre estimula as cópias". O movimento do software livre estimula as cópias não porque despreze direitos de propriedade intelectual.

Ao contrário, o movimento do software livre estimula-as justamente em respeito a esses direitos. Faltou, é claro, a óbvia constatação de que esse respeito, no caso do software livre, é aos direitos do autor do software, que assim o deseja, e não aos interesses por trás da matéria. A partir desse crasso erro na atribuição do sujeito do direito, na frase acima, a palavra "cópia" que nela ocorre foi traduzida, em novilíngua, como "pirataria", para uma manchete na página anterior. Capciosa e leviana: "O modelo de negócio do software livre estimula a pirataria". Para que a leviandade? Anuncia-se a salvação: mais rigor com a propriedade intelectual (a dos interessados na matéria)!

Capital e liberdade

Esta manobra editorial de natureza político-lingüística poderia ser apenas um lamentável erro de atenção ou de concentração do editor, mas há outras lamentáveis coincidências. Com a mesma data (29 de outubro), revistas eletrônicas dedicadas a TI anunciaram o ataque da empresa SCO à General Public License (GPL), o instrumento jurídico pelo qual autores de softwares livres, interessados em preservar a liberdade de usuários e programadores em relação à sua obra, os licenciam.

A SCO havia atraído, regada a recursos oriundos da Microsoft, empresas de software livre para alguma ação judicial, provocando usuários do sistema operacional livre GNU/Linux com extorsão e chantagem, e seus programadores com calúnias, por suposta violação de direitos de propriedade intelectual que alega serem seus, mas que se recusa a especificar quais sejam. Na ação que lhe move a empresa Red Hat ela agora contra-ataca. Quer que a Justiça declare nula a GPL. O que haveria de errado com a GPL? A GPL é uma cessão de direitos, pelo autor do software licenciado, ao portador de uma sua cópia.

Esses direitos correspondem às quatro liberdades fundamentais relativas ao dito software, com apenas uma restrição: a GPL impede restrições a uma dessas liberdades, em redistribuições (a redistribuição é uma das quatro liberdades). A GPL não tem nada a ver com contratos aditivos para suporte e serviços ao software (SLA), que podem ser vendidos com garantias. Igual ao software proprietário, exceto que a agregação de SLAs à distribuição é livre, para quem tenha competência. A GPL é um hacking perfeito do modelo de licença de uso proprietário. A questão que se coloca é: teria o autor o direito de escolher em que termos e condições disponibiliza o usufruto de sua obra intelectual? A SCO acha que não, e o drama da guerra entre o poder do capital e a liberdade humana aumenta.

Mais cuidado

Mas essa não é a única lamentável coincidência. A preferência pelo software livre é política pública do governo brasileiro. E o é por amplos motivos, sendo o menor deles econômico, e o maior, estratégico. A matéria da revista Exame não só passa ao largo de todos esses motivos, mas insinua conduta irresponsável ou até criminosa do governo pela sua política, enquanto confunde o leitor, induzindo-o a crer que software não pago (software pirata) é o mesmo que software não pagável (software livre).

E há mais uma lamentável coincidência. A Editora Abril está seguindo maus exemplos de outros veículos da mídia, no tocante ao desleixo com a lógica e com a linguagem capazes de induzir o leitor ao mesmo erro de percepção e de julgamento moral. Como o Correio Braziliense, em matéria de 12 de outubro, comentada no Observatório da Imprensa (ver em <http://www.observatoriodaimprensa.com.br/ artigos/eno211020031.htm>.

A Editora Abril, e qualquer outra por sinal, deveria ser mais cuidadosa ao tratar questões sensíveis de Estado em destaque. É que já existem precedentes de governos esquerdistas, em exercício na América Latina, dedicando especial atenção à burocracia fiscal e aduaneira para empresas de mídia que se mostram tendenciosas e levianas no trato de assuntos sensíveis de Estado.


O autor: ATC PhD em Matemática Aplicada pela Universidade de Berkeley, Professor de Ciência da Computação da Universidade de Brasília (UnB), coordenador do programa de Extensão Universitária em Criptografia e Segurança Computcional da UnB, representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira.

Bibliografia

[1]- Pedro A. D. Rezende "A Seita do Santo Byte".  Observatório da imprensa, 23 de setembro de 2003 http://www.observatoriodaimprensa.com.br/ artigos/eno230920031.htm

[2]- Dan Geer, Rebbeca Bace, Peter Guttman, Perry Metzger, Charles Pfleeger, John Quarterman, Bruce Schneier: "CyberInsecurity - The cost of monopoly" http://www.ccianet.org/papers/cyberinsecurity.pdf  Sept 2003.

[3]- "Ação contra Nelson Jobim". Correio Braziliense, 10 de outubro de 2003, pp. 6. In verbis:

"O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Sepúlveda Pertence chegou a brincar com a situação [manipulação da Constituição]. 'Estou torcendo para que apareça o artigo 102; aí, a gente arquiva os processos todos', afirmou, citando o artigo da Constituição que define atribuições do Supremo" [Tribunal Federal]