Segredo constitucional
Estudo aponta dispositivos que teriam sido incluídos na Constituição, sem análise do Plenário, por ex-líderes do PMDB e do PTB
Eduardo Militão
Apesar
de já ter atingido a maioridade, a Constituição Federal, promulgada em
1988, ainda desperta polêmica. Um estudo de dois professores da
Universidade de Brasília (UnB) afirma que parte de um artigo foi
incluído na Carta Magna sem passar pelo Plenário. O dispositivo
inserido, segundo eles, beneficiou credores internacionais da dívida
externa. As alíneas “a”, “b” e “c” do artigo 166 (172, na versão
original) tratam de privilégios para o pagamento da dívida, de pessoal e
de transferências aos estados e municípios (veja aqui). Os autores do
trabalho responsabilizam pela inserção do texto o ex-presidente do
Supremo Tribunal Federal (STF) Nelson Jobim, então deputado constituinte
pelo PMDB gaúcho e líder do partido, e o ex-deputado Gastone Righi
(SP), que liderava a bancada do PTB. Os dois negam a acusação (leia
mais). Há quatro anos, Jobim admitiu ao jornal O Globo ter inserido, sem
submeter ao Plenário, dois artigos na Constituição. Um deles, revelou,
era sobre a independência dos poderes – o artigo 2º. Sobre o outro
artigo, ele nada explicou. O ex-líder do PMDB prometeu escrever um livro
para explicar tudo, mas até hoje não deu início à obra.
Com
essa dúvida em mente, o professor de Segurança da Informação Pedro
Antônio Dourado de Rezende e o advogado e consultor legislativo do
Senado Adriano Benayon começaram a pesquisar para saber qual foi o outro
dispositivo inserido sem a necessária aprovação dos deputados e
senadores.No ano passado, os dois publicaram o artigo acadêmico Anatomia
de uma fraude à Constituição (veja a íntegra), no qual apontam Jobim e
Righi como os responsáveis por inserir um texto não votado pelos
constituintes. “Isso aqui foi enxertado. Os dois deixaram rastros”,
afirmou Rezende, ao exibir uma folha dos Arquivos da Assembléia Nacional
Constituinte (ANC), que comprovaria as alíneas “alienígenas”.Segundo o
estudo de Benayon e Rezende, o fato ocorreu no momento em que os
constituintes cuidavam da discussão do texto final da Constituição.
Naquela fase, nada de novo poderia ser acrescentado, eram admitidas
apenas emendas para corrigir o texto, melhorando sua redação, ou
suprimir dispositivos.
Entretanto, de acordo com os autores do
estudo, um requerimento de três páginas para fundir os artigos 171, 172 e
173 incluiu uma folha estranha à matéria. Isso aconteceu em 27 de
agosto de 1988, um sábado. A página continha a alínea “b” do artigo 172
(atual 166), pela qual não era mais necessário indicar fontes de receita
nas emendas destinadas ao pagamento do “serviço da dívida”. Para
Rezende, a folha deveria ter a rubrica de todos os 14 líderes
partidários. Mas continha apenas as dos líderes do PMDB e do PTB, Jobim e
Righi (veja aqui).Os professores da UnB não entenderam por que, na
caixa referente às matérias do dia 27 de agosto de 1988, o Fundo
Arquivístico da Constituinte, da Biblioteca da Câmara dos Deputados, não
se registra a fusão do artigo 172, mas apenas a dos artigos 171 e 173
(veja aqui e aqui também).
"Houve umas coisas desse tipo"
Os
autores lembram que, em 1988, a dívida externa e a inflação assombravam
as contas públicas brasileiras. A aprovação da alínea “b” do artigo 166
da Constituição, na avaliação deles, serviria para beneficiar os
credores dos mercados financeiros internacionais. “É um cheque em branco
para o credor botar a mão na arrecadação”, acredita Rezende.Ele e
Benayon citam dados da Secretaria do Tesouro Nacional atualizados em
moeda corrente para defender a tese. Em 1986, a União pagou o
equivalente a R$ 50,5 bilhões no chamado serviço da dívida, isto é,
despesas com juros, taxas bancárias e outras obrigações relacionadas com
os débitos externos. Quatro anos mais tarde, com a aprovação da nova
Carta Magna, o valor passou para R$ 564,1 bilhões, em cifras atuais. Por
outro lado, os investimentos caíram de R$ 20,9 bilhões para R$ 12,8
bilhões naquele mesmo período. Na opinião dos dois, a alínea “b” do
artigo 166 contribuiu para essa discrepância.Benayon e Rezende não são
os únicos a reclamarem da maneira como certos textos entraram na Carta
Magna. Em 1995, o então senador Ademir Andrade (PSB-PA) apresentou uma
proposta de emenda constitucional para retirar a polêmica alínea que
tratava do “serviço da dívida”. À época, Cabral disse que examinaria o
assunto com os técnicos do setor de informática da Casa. Mas a
proposição de Andrade foi arquivada.
Até hoje, o ex-senador
paraense acredita que alguma coisa não foi feita da maneira correta.
“Todo acerto que era para modificar tinha o consenso total dos líderes.
No caso, acordamos uma coisa e saiu outra”, lembrou Andrade, que não
conseguiu eleger-se deputado federal ano passado.Righi e Jobim admitiram
que houve celeuma na apreciação dos textos. Righi, inclusive, disse ao
Congresso em Foco que há trechos “suspeitos”. “De fato, houve umas
coisas desse tipo, inclusive contra a minha opinião”, declarou.
Técnico nega irregularidade
Procurado
para comentar a suposta fraude no artigo 166 da Constituição, o
relator-geral da Constituinte não quis se pronunciar. O ex-senador
Bernardo Cabral indicou o ex-diretor do Prodasen Kléber Ferreira Lima
para falar sobre o assunto. Responsável pelos programas de informática
para organizar os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte (ANC),
Ferreira disse ser “humanamente impossível” ter havido qualquer tipo de
irregularidade no processo, mesmo aquela admitida por Nelson Jobim há
quatro anos.Ele conta que uma simples consulta às "Bases Históricas da
Constituinte", disponíveis na internet, mostra que o termo “serviço da
dívida” já existia em documentos de maio de 1987, bem antes da votação
de agosto de 1988, apontada como fraudulenta pelos pesquisadores Adriano
Benayon e Pedro Rezende. Por isso, argumenta, não seria possível achar
que parte do artigo 166 tivesse aparecido “do nada”. À época, Ferreira
criou um programa de computador, o ATMS, para checar cada mudança ou
alteração no texto constitucional e compará-lo com o da Carta anterior,
de 1967. Ele descarta a possibilidade de inclusão de emendas
“alienígenas” no texto constitucional. “É uma impropriedade técnica. Se
ele [Jobim] enfiasse uma folha [fraudulentamente], ela seria processada,
distribuída e numerada”, afirma.
========
Tião Viana defende apuração do caso Jobim
Para o 1º-vice-presidente do Senado, suspeita de fraude em artigo da Constituição merece “observação rigorosa” do Congresso
Eduardo Militão
O
primeiro-vice-presidente do Senado, Tião Viana (PT-AC), defendeu ontem
(19) que o Parlamento apure a suspeita de que houve irregularidade na
elaboração do artigo 166 da Constituição Federal, conforme revelou o
Congresso em Foco (leia mais). “É evidente que isso aí precisa de uma
observação rigorosa. É evidente que isso precisa de uma retificação”,
disse Viana.De acordo com estudo dos professores da Universidade de
Brasília Adriano Benayon e Pedro Rezende, três alíneas do artigo 166
foram inseridas sem votação em plenário para beneficiar os credores da
dívida externa. O estudo aponta o ex-presidente do Supremo Tribunal
Federal Nelson Jobim, líder do PMDB na Assembléia Nacional Constituinte,
como um dos responsáveis pela adulteração do texto da Carta Magna.Os
professores atribuem parte do crescimento da dívida externa e da queda
dos investimentos no início dos anos 1990 ao dispositivo constitucional.
“É um cheque em branco para o credor botar a mão na arrecadação”, disse
Rezende.Para Viana, qualquer prejuízo à população deve ser analisado
com cautela. “Se houve qualquer dano à sociedade, tem que ser revisto.
Mas isso tem que ser visto com muita serenidade”, opinou o senador.A
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação dos Magistrados do
Brasil (AMB) e a Associação Nacional dos Membros do Ministério Pblico
(Conamp) também defenderam a apuração do caso pelo Congresso Nacional
(leia mais). “O povo foi fraudado”, disse o presidente da Conamp, José
Cosenzo.
Imprecisão
O vice-presidente do Senado ressalta
que é preciso avaliar se houve alguma intenção de modificar ilegalmente
o texto constitucional. A mudança no artigo 166, avaliou, pode ter sido
motivada por algum momento político de imprecisão.
“A história é
feita com acidentes ou incidentes dessa natureza. Deve ser um fato
histórico que deve ter se repetido em muitas outras elaborações de
Constituição, o que não justifica a sua não-revisão, a sua
não-interpretação e a sua não-reflexão”, ponderou o senador. Segundo
Tião Viana, diante da profusão dos atores envolvidos numa Assembléia
Constituinte, é preciso apurar com cuidado a responsabilidade pela
suposta fraude. “Você tem que ver exatamente onde houve a falha. Foi uma
falha do parlamentar? De quem redigiu? De quem fez a revisão? Temos que
olhar com toda tranqüilidade”, analisou.
Chinaglia à espera
Já
o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia (PT-SP), mostrou-se pouco
receptivo ao comentar a suspeita de fraude na Constituição. Ele afirmou
que vai aguardar ser procurado por entidades como a OAB, a AMB e a
Conamp. “Vamos ver se eu sou procurado por alguém. Não é porque você
publicou que nós vamos ter uma iniciativa, ok?”, disse ao Congresso em
Foco.
Chinaglia declarou ter dúvida sobre a viabilidade de se rever o
processo de elaboração do artigo 166, como sugeriu Tião Viana. “Na
época, havia a Mesa que dirigia os trabalhos e quem deve ser consultado é
o ministro Jobim”, disse ele, inicialmente.O presidente da Câmara
afirmou que uma investigação sobre o caso será necessária somente se a
mudança tiver criado algum problema. Mas, até agora, o petista não vê
problemas gerados pela fraude denunciada. “[Então], você puxar o fio da
meada para questionar procedimentos da Mesa à época, que foram
acordados, não me parece razoável.”A assessoria do presidente do Senado,
Renan Calheiros (PMDB-AL), afirmou que ele não poderia comentar o
assunto por estar compenetrado em sua defesa no Conselho de Ética.
Jobim desqualifica estudo
Ex-deputado
classifica como “bobagem” conclusão de pesquisadores. Gastone Righi
admite que redação final foi “confusa” e “suspeita”
Eduardo Militão
O
ex-deputado constituinte Nelson Jobim desqualificou as conclusões dos
pesquisadores Pedro Antônio Dourado de Rezende e Adriano Benayon. “Que
bobagem. São uns imbecis!”, riu. Na seqüência, o ex-presidente do STF
disse que não entraria em detalhe sobre a polêmica porque desconhecia o
estudo dos dois professores.De acordo com o ex-deputado, no primeiro
turno da Constituinte, o trabalho de sistematização era feito em
comissões. “Era tudo pulverizado. As discussões eram setoriais.” Só no
segundo turno, o então relator da Constituinte, Bernardo Cabral,
consolidou o texto completo, o que permitiu que as falhas fossem
observadas. Segundo Jobim, na Comissão de Redação, os líderes
partidários propuseram corrigir as “falhas”. Mas ele ressalta que essas
mudanças foram feitas em votação entre os líderes. A votação foi
nominal, de acordo com o ex-ministro do STF. “Toda essa discussão está
nos anais. O Ulysses [Guimarães, PMDB-SP, presidente da Assembléia
Constituinte], inclusive, fez um discurso quando chamou a votação
nominal: ‘Vamos proceder a uma votação total, nominal, não-simbólica,
por maioria absoluta, para referendar tudo o que aconteceu’. Aí, a gente
fez uma terceira votação. Mas todo mundo viu”, justificou ele.
Independência
O
ex-ministro reafirmou que o artigo 2, sobre a independência e autonomia
dos Três Poderes, foi elaborado dessa forma, na Comissão de Redação,
pelos líderes partidários. “Era o nosso sistema. Esqueceram de colocar
[o texto]. Aí, todo mundo concordou, votou-se, aprovou-se e tal.” Jobim
lembrou que, à época, alguns deputados já reclamavam dessa forma de
inserção de textos, com a apreciação apenas dos líderes. “Teve processos
que não obedeceram ao esquema”, admitiu.
O ex-deputado Gastone
Righi, líder do PTB na Constituinte, admite que a redação final da Carta
Magna foi confusa e “suspeita”. “Aquilo lá foi tudo atropelado. De fato
houve umas coisas desse tipo, inclusive contra a minha opinião.”
Sobre o caso específico do artigo 166, ele disse que não cuidava de
questões orçamentárias e fiscais. “Eu sempre fui favorável à moratória
da dívida. Quem cuidou disso foi o Jobim, o [Luiz Carlos] Hauly [hoje
deputado pelo PSDB-PR] e o José Serra [governador de São Paulo pelo
PSDB]”, justifica-se.Atualmente afastado da vida política, Righi diz que
a Comissão de Redação da Constituinte acabou suspendendo direitos que
haviam sido acordados em Plenário. Ele cita um exemplo: o artigo 192 da
Constituição Federal, que limita os juros bancários reais a 12% ao ano.
Segundo Righi, a comissão inviabilizou sua aplicação ao incluir o
dispositivo que condicionava o teto à lei complementar. Como a medida
não foi regulamentada até hoje, ela não pode ser aplicada.
Outra
“coisa suspeita” para Righi foi a “porcaria” da criação das medidas
provisórias. “Isso é coisa do Jobim. Elas surgiram na fase de
sistematização. Passaram por uma votação final, mas não por uma inicial e
por um debate nas comissões temáticas”, reclama. O Congresso em Foco
procurou o ex-presidente do STF para ouvi-lo sobre as declarações do
ex-líder do PTB na semana passada. Na última quarta-feira (13), sua
secretária disse que ele não poderia atender a reportagem por estar com a
agenda cheia.
==============
Para o caso, pode ser lido o artigo dos autores citados em :
http://www.pedro.jmrezende.com.br/sd.htm
Confiança: em Instituições
Anatomia de uma fraude à Constituição
Adriano Benayon *
Pedro Antonio Dourado de Rezende **
Brasília, Agosto de 2006
[
Roberto Romano Moral e Ciência. A monstruosidade no sec. XVIII
Silence et Bruit. Roberto Romano
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