Quarta-feira, Junho 20, 2007

Congresso em Foco, segundo indicaçao de Orlando Tambosi

Segredo constitucional
Estudo aponta dispositivos que teriam sido incluídos na Constituição, sem análise do Plenário, por ex-líderes do PMDB e do PTB

Eduardo Militão

Apesar de já ter atingido a maioridade, a Constituição Federal, promulgada em 1988, ainda desperta polêmica. Um estudo de dois professores da Universidade de Brasília (UnB) afirma que parte de um artigo foi incluído na Carta Magna sem passar pelo Plenário. O dispositivo inserido, segundo eles, beneficiou credores internacionais da dívida externa. As alíneas “a”, “b” e “c” do artigo 166 (172, na versão original) tratam de privilégios para o pagamento da dívida, de pessoal e de transferências aos estados e municípios (veja aqui). Os autores do trabalho responsabilizam pela inserção do texto o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Nelson Jobim, então deputado constituinte pelo PMDB gaúcho e líder do partido, e o ex-deputado Gastone Righi (SP), que liderava a bancada do PTB. Os dois negam a acusação (leia mais). Há quatro anos, Jobim admitiu ao jornal O Globo ter inserido, sem submeter ao Plenário, dois artigos na Constituição. Um deles, revelou, era sobre a independência dos poderes – o artigo 2º. Sobre o outro artigo, ele nada explicou. O ex-líder do PMDB prometeu escrever um livro para explicar tudo, mas até hoje não deu início à obra.

Com essa dúvida em mente, o professor de Segurança da Informação Pedro Antônio Dourado de Rezende e o advogado e consultor legislativo do Senado Adriano Benayon começaram a pesquisar para saber qual foi o outro dispositivo inserido sem a necessária aprovação dos deputados e senadores.No ano passado, os dois publicaram o artigo acadêmico Anatomia de uma fraude à Constituição (veja a íntegra), no qual apontam Jobim e Righi como os responsáveis por inserir um texto não votado pelos constituintes. “Isso aqui foi enxertado. Os dois deixaram rastros”, afirmou Rezende, ao exibir uma folha dos Arquivos da Assembléia Nacional Constituinte (ANC), que comprovaria as alíneas “alienígenas”.Segundo o estudo de Benayon e Rezende, o fato ocorreu no momento em que os constituintes cuidavam da discussão do texto final da Constituição. Naquela fase, nada de novo poderia ser acrescentado, eram admitidas apenas emendas para corrigir o texto, melhorando sua redação, ou suprimir dispositivos.

Entretanto, de acordo com os autores do estudo, um requerimento de três páginas para fundir os artigos 171, 172 e 173 incluiu uma folha estranha à matéria. Isso aconteceu em 27 de agosto de 1988, um sábado. A página continha a alínea “b” do artigo 172 (atual 166), pela qual não era mais necessário indicar fontes de receita nas emendas destinadas ao pagamento do “serviço da dívida”. Para Rezende, a folha deveria ter a rubrica de todos os 14 líderes partidários. Mas continha apenas as dos líderes do PMDB e do PTB, Jobim e Righi (veja aqui).Os professores da UnB não entenderam por que, na caixa referente às matérias do dia 27 de agosto de 1988, o Fundo Arquivístico da Constituinte, da Biblioteca da Câmara dos Deputados, não se registra a fusão do artigo 172, mas apenas a dos artigos 171 e 173 (veja aqui e aqui também).

"Houve umas coisas desse tipo"

Os autores lembram que, em 1988, a dívida externa e a inflação assombravam as contas públicas brasileiras. A aprovação da alínea “b” do artigo 166 da Constituição, na avaliação deles, serviria para beneficiar os credores dos mercados financeiros internacionais. “É um cheque em branco para o credor botar a mão na arrecadação”, acredita Rezende.Ele e Benayon citam dados da Secretaria do Tesouro Nacional atualizados em moeda corrente para defender a tese. Em 1986, a União pagou o equivalente a R$ 50,5 bilhões no chamado serviço da dívida, isto é, despesas com juros, taxas bancárias e outras obrigações relacionadas com os débitos externos. Quatro anos mais tarde, com a aprovação da nova Carta Magna, o valor passou para R$ 564,1 bilhões, em cifras atuais. Por outro lado, os investimentos caíram de R$ 20,9 bilhões para R$ 12,8 bilhões naquele mesmo período. Na opinião dos dois, a alínea “b” do artigo 166 contribuiu para essa discrepância.Benayon e Rezende não são os únicos a reclamarem da maneira como certos textos entraram na Carta Magna. Em 1995, o então senador Ademir Andrade (PSB-PA) apresentou uma proposta de emenda constitucional para retirar a polêmica alínea que tratava do “serviço da dívida”. À época, Cabral disse que examinaria o assunto com os técnicos do setor de informática da Casa. Mas a proposição de Andrade foi arquivada.

Até hoje, o ex-senador paraense acredita que alguma coisa não foi feita da maneira correta. “Todo acerto que era para modificar tinha o consenso total dos líderes. No caso, acordamos uma coisa e saiu outra”, lembrou Andrade, que não conseguiu eleger-se deputado federal ano passado.Righi e Jobim admitiram que houve celeuma na apreciação dos textos. Righi, inclusive, disse ao Congresso em Foco que há trechos “suspeitos”. “De fato, houve umas coisas desse tipo, inclusive contra a minha opinião”, declarou.

Técnico nega irregularidade

Procurado para comentar a suposta fraude no artigo 166 da Constituição, o relator-geral da Constituinte não quis se pronunciar. O ex-senador Bernardo Cabral indicou o ex-diretor do Prodasen Kléber Ferreira Lima para falar sobre o assunto. Responsável pelos programas de informática para organizar os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte (ANC), Ferreira disse ser “humanamente impossível” ter havido qualquer tipo de irregularidade no processo, mesmo aquela admitida por Nelson Jobim há quatro anos.Ele conta que uma simples consulta às "Bases Históricas da Constituinte", disponíveis na internet, mostra que o termo “serviço da dívida” já existia em documentos de maio de 1987, bem antes da votação de agosto de 1988, apontada como fraudulenta pelos pesquisadores Adriano Benayon e Pedro Rezende. Por isso, argumenta, não seria possível achar que parte do artigo 166 tivesse aparecido “do nada”. À época, Ferreira criou um programa de computador, o ATMS, para checar cada mudança ou alteração no texto constitucional e compará-lo com o da Carta anterior, de 1967. Ele descarta a possibilidade de inclusão de emendas “alienígenas” no texto constitucional. “É uma impropriedade técnica. Se ele [Jobim] enfiasse uma folha [fraudulentamente], ela seria processada, distribuída e numerada”, afirma.

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Tião Viana defende apuração do caso Jobim
Para o 1º-vice-presidente do Senado, suspeita de fraude em artigo da Constituição merece “observação rigorosa” do Congresso

Eduardo Militão

O primeiro-vice-presidente do Senado, Tião Viana (PT-AC), defendeu ontem (19) que o Parlamento apure a suspeita de que houve irregularidade na elaboração do artigo 166 da Constituição Federal, conforme revelou o Congresso em Foco (leia mais). “É evidente que isso aí precisa de uma observação rigorosa. É evidente que isso precisa de uma retificação”, disse Viana.De acordo com estudo dos professores da Universidade de Brasília Adriano Benayon e Pedro Rezende, três alíneas do artigo 166 foram inseridas sem votação em plenário para beneficiar os credores da dívida externa. O estudo aponta o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Nelson Jobim, líder do PMDB na Assembléia Nacional Constituinte, como um dos responsáveis pela adulteração do texto da Carta Magna.Os professores atribuem parte do crescimento da dívida externa e da queda dos investimentos no início dos anos 1990 ao dispositivo constitucional. “É um cheque em branco para o credor botar a mão na arrecadação”, disse Rezende.Para Viana, qualquer prejuízo à população deve ser analisado com cautela. “Se houve qualquer dano à sociedade, tem que ser revisto. Mas isso tem que ser visto com muita serenidade”, opinou o senador.A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) e a Associação Nacional dos Membros do Ministério Pblico (Conamp) também defenderam a apuração do caso pelo Congresso Nacional (leia mais). “O povo foi fraudado”, disse o presidente da Conamp, José Cosenzo.

Imprecisão

O vice-presidente do Senado ressalta que é preciso avaliar se houve alguma intenção de modificar ilegalmente o texto constitucional. A mudança no artigo 166, avaliou, pode ter sido motivada por algum momento político de imprecisão.
“A história é feita com acidentes ou incidentes dessa natureza. Deve ser um fato histórico que deve ter se repetido em muitas outras elaborações de Constituição, o que não justifica a sua não-revisão, a sua não-interpretação e a sua não-reflexão”, ponderou o senador. Segundo Tião Viana, diante da profusão dos atores envolvidos numa Assembléia Constituinte, é preciso apurar com cuidado a responsabilidade pela suposta fraude. “Você tem que ver exatamente onde houve a falha. Foi uma falha do parlamentar? De quem redigiu? De quem fez a revisão? Temos que olhar com toda tranqüilidade”, analisou.

Chinaglia à espera

Já o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia (PT-SP), mostrou-se pouco receptivo ao comentar a suspeita de fraude na Constituição. Ele afirmou que vai aguardar ser procurado por entidades como a OAB, a AMB e a Conamp. “Vamos ver se eu sou procurado por alguém. Não é porque você publicou que nós vamos ter uma iniciativa, ok?”, disse ao Congresso em Foco.
Chinaglia declarou ter dúvida sobre a viabilidade de se rever o processo de elaboração do artigo 166, como sugeriu Tião Viana. “Na época, havia a Mesa que dirigia os trabalhos e quem deve ser consultado é o ministro Jobim”, disse ele, inicialmente.O presidente da Câmara afirmou que uma investigação sobre o caso será necessária somente se a mudança tiver criado algum problema. Mas, até agora, o petista não vê problemas gerados pela fraude denunciada. “[Então], você puxar o fio da meada para questionar procedimentos da Mesa à época, que foram acordados, não me parece razoável.”A assessoria do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), afirmou que ele não poderia comentar o assunto por estar compenetrado em sua defesa no Conselho de Ética.

Jobim desqualifica estudo

Ex-deputado classifica como “bobagem” conclusão de pesquisadores. Gastone Righi admite que redação final foi “confusa” e “suspeita”

Eduardo Militão

O ex-deputado constituinte Nelson Jobim desqualificou as conclusões dos pesquisadores Pedro Antônio Dourado de Rezende e Adriano Benayon. “Que bobagem. São uns imbecis!”, riu. Na seqüência, o ex-presidente do STF disse que não entraria em detalhe sobre a polêmica porque desconhecia o estudo dos dois professores.De acordo com o ex-deputado, no primeiro turno da Constituinte, o trabalho de sistematização era feito em comissões. “Era tudo pulverizado. As discussões eram setoriais.” Só no segundo turno, o então relator da Constituinte, Bernardo Cabral, consolidou o texto completo, o que permitiu que as falhas fossem observadas. Segundo Jobim, na Comissão de Redação, os líderes partidários propuseram corrigir as “falhas”. Mas ele ressalta que essas mudanças foram feitas em votação entre os líderes. A votação foi nominal, de acordo com o ex-ministro do STF. “Toda essa discussão está nos anais. O Ulysses [Guimarães, PMDB-SP, presidente da Assembléia Constituinte], inclusive, fez um discurso quando chamou a votação nominal: ‘Vamos proceder a uma votação total, nominal, não-simbólica, por maioria absoluta, para referendar tudo o que aconteceu’. Aí, a gente fez uma terceira votação. Mas todo mundo viu”, justificou ele.

Independência

O ex-ministro reafirmou que o artigo 2, sobre a independência e autonomia dos Três Poderes, foi elaborado dessa forma, na Comissão de Redação, pelos líderes partidários. “Era o nosso sistema. Esqueceram de colocar [o texto]. Aí, todo mundo concordou, votou-se, aprovou-se e tal.” Jobim lembrou que, à época, alguns deputados já reclamavam dessa forma de inserção de textos, com a apreciação apenas dos líderes. “Teve processos que não obedeceram ao esquema”, admitiu.

O ex-deputado Gastone Righi, líder do PTB na Constituinte, admite que a redação final da Carta Magna foi confusa e “suspeita”. “Aquilo lá foi tudo atropelado. De fato houve umas coisas desse tipo, inclusive contra a minha opinião.”
Sobre o caso específico do artigo 166, ele disse que não cuidava de questões orçamentárias e fiscais. “Eu sempre fui favorável à moratória da dívida. Quem cuidou disso foi o Jobim, o [Luiz Carlos] Hauly [hoje deputado pelo PSDB-PR] e o José Serra [governador de São Paulo pelo PSDB]”, justifica-se.Atualmente afastado da vida política, Righi diz que a Comissão de Redação da Constituinte acabou suspendendo direitos que haviam sido acordados em Plenário. Ele cita um exemplo: o artigo 192 da Constituição Federal, que limita os juros bancários reais a 12% ao ano. Segundo Righi, a comissão inviabilizou sua aplicação ao incluir o dispositivo que condicionava o teto à lei complementar. Como a medida não foi regulamentada até hoje, ela não pode ser aplicada.

Outra “coisa suspeita” para Righi foi a “porcaria” da criação das medidas provisórias. “Isso é coisa do Jobim. Elas surgiram na fase de sistematização. Passaram por uma votação final, mas não por uma inicial e por um debate nas comissões temáticas”, reclama. O Congresso em Foco procurou o ex-presidente do STF para ouvi-lo sobre as declarações do ex-líder do PTB na semana passada. Na última quarta-feira (13), sua secretária disse que ele não poderia atender a reportagem por estar com a agenda cheia.

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Para o caso, pode ser lido o artigo dos autores citados em :
http://www.pedro.jmrezende.com.br/sd.htm

Confiança: em Instituições

Anatomia de uma fraude à Constituição

Adriano Benayon *
Pedro Antonio Dourado de Rezende **
Brasília, Agosto de 2006

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