O Futuro e a Liberdade no Mundo Digitalizado
Publicado no Observatório da Imprensa em 5/02/02 Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasilia
3 de Fevereiro de 2002
O fundador do Movimento Software Livre, Richard Stallman, abriu no sábado (2/2/02) a 3ª. edição do Fórum Internacional Software Livre – uma das atividades do Fórum Social Mundial 2002, realizado em Porto Alegre (RS). Nesta edição do FSM, Stallman também participa, como debatedor, na conferência "Saber, direitos de reprodução e patentes". Poucos leitores se dão conta da importância e do alcance do movimento por ele fundado para o futuro da cidadania no mundo globalizado. Dentre os que têm alguma idéia do que seja o software, poucos sequer sabem o que pode significar a sua liberdade. Esta lacuna de conhecimento terá conseqüências dramáticas, particularmente nas ações dos legisladores e operadores do Direito, e para o futuro que estamos construindo para nossa civilização.O software representa um processo intermediador da comunicação humana em meio digital. Trata-se, sob um certo ângulo de análise no campo teórico do Direito, de um processo constituído, por um lado, pela funcionalidade que dele se almeja ou supõe; e, por outro, pela inteligência que nele codifica esta funcionalidade, visando torná-la efetiva. A funcionalidade que se almeja do software está na sua especificação (que lhe dá origem) e na sua interface com usuários (que lhe dá a utilidade de um artefato). De outra parte, sua funcionalidade efetiva está na sua lógica – que lhe dá valor semiológico, impregnando de sentido os símbolos cuja produção e consumo intermedeia. E diante da sua inexorável penetração nos processos sociais, sua funcionalidade efetiva também está, cada vez mais, na interface de sua lógica com sistemas e normas jurídicas – que dá valor legal aos seus efeitos. Sob este ângulo, o software se compara à figura mitológica de Janus, com suas duas faces. Uma, a que lhe dá o programador. E outra, a que lhe dá o usuário. O programador produz a lógica do software a partir da utilidade que dele supõe o usuário. E o usuário produz a utilidade do software a partir da lógica que dele supõe o programador.
As imperfeições e limitações humanas fazem-no, assim, uma personalidade cindida, cuja evolução ensejou um alter ego – o produtor do software. A indústria do software se apresenta historicamente como intermediadora nesta cisão, para controlar seus efeitos desagregadores e conseqüente ameaça esquizofrênica. Tais efeitos podem se espalhar por um amplo espectro, que vai desde efeitos inocentes, vazios de intenções ocultas, oriundos da deficiência comunicativa entre quem vai usar e quem vai fazer o software, passando por efeitos potencialmente "babelizantes" (como os da proliferação de distintos padrões e formatos na intermediação que operam), indo até o logro, tentação que cresce na medida em que o software se torna ubíquo intermediador da vontade humana, nas nossas modernas práticas sociais.
Como exemplo, basta citar a evolução dos instrumentos financeiros na nossa cultura tecnológica contemporânea. Assim, o controle que exerce este alter ego equivale ao poder de uma nova norma, de natureza metalinguística. Uma norma que, quando esvaziada de conteúdo ético, se transforma em inédito poder político.
Quem hoje detém este poder é o ramo da indústria que emerge do maior empreendimento da história: a indústria do software. Nunca, na história da humanidade, um empreendimento gerou tanta riqueza em tão pouco tempo. Seu poder metalinguístico permite-lhe determinar dois fatores cruciais para o futuro da cidadania. Um deles é a dependência da sociedade global a artefatos e semiologias proprietárias, softwares que se comunicam em linguagem privada enquanto interpretam, julgam e decidem, segundo lógicas opacas, em nome de quem os usa ou os disponibiliza. O outro fator é a legitimação desta dependência por meio de uma aliança de interesses entre seu alter ego e poderes estatais, sob a égide de ideologias fundamentalistas de mercado, explicitadas no consenso de Washington e no esforço de uniformização de jurisprudências do direito comercial e da propriedade intelectual – como nos acordos WIPO, ALCA, OMC etc. Esta aliança emerge na medida em que poderes públicos e atores econômicos de larga escala se dão conta das vantagens que lhes representam a eficiência econômica e a capacidade de controle permitidas pela intermediação do software, na comunicação necessária aos seus processos.
A ação desta aliança se articula na direção de abolir, das práticas sociais futuras, processos comunicativos que representem ineficiências operacionais aos seus aliados – quer sejam as que tomam a forma de risco de fraude e responsabilidade pelo manuseio de documentos, para poderes públicos e agentes econômicos de larga escala;, ou as que tomam a forma de práticas mercantis pouco eficazes ou modelos de negócio que competem com mais eficácia, para o alter ego da produção do software. Acontece que os processos a serem abolidos são os que melhor oferecem ao cidadão o direito de saber, em linguagem pública, o quê e a quem estará consentindo ou anuindo, ao se comunicar. Isto só poderá se dar através da livre lavra de sua marca pessoal em instrumentos jurídicos dotados de estabilidade ontológica, ou da intermediação de software que seja de sua livre escolha, não discriminatório em sua capacidade comunicativa e transparente em sua lógica.
Por meio da assinatura cursiva, de próprio punho, em documentos escritos numa linguagem humana sobre um suporte físico – o papel –, a tradição jurídica alcançou, através da jurisprudência dos contratos, alguma forma de equilíbrio de riscos e responsabilidades entre partes contratantes. E através da intermediação de softwares que implementam padrões e formatos digitais de conhecimento público, e que sejam externamente auditáveis, a manutenção deste equilíbrio também pode ser buscada.
Porém, sob o fascínio que as promessas da tecnologia-como-panacéia exercem sobre o homem contemporâneo, a aliança entre técnica e poder procura blindar, contra o escrutínio social, a inteligência que o software introduz nas interlocuções que intermedeia. Logo examinaremos, com mais atenção, o porquê. De início, basta observar que tal blindagem serve para preservar a eficácia do negócio predominante em torno do software, que prioriza o seu caráter de propriedade intelectual – uma das faces de Janus, em detrimento de seu caráter de inteligência intermediadora, sua outra face. Enquanto a isto se presta, a opacidade desta blindagem cria também uma bola de neve de custo social, agregadora de desequilíbrios entre riscos e responsabilidades dos interlocutores que, por intermédio do software, produzirão efeitos no plano jurídico. Tal blindagem escamoteia o desequilíbrio jurídico introduzido por opacidades tecnicamente desnecessárias a esta intermediação, tornando qualquer das faces de Janus potencial inimiga da outra. A justificativa para a legitimidade de uma aliança com este propósito não pode ser apenas a produção econômica, pois os mesmos parâmetros se aplicariam também ao tráfico de drogas.
Novas funcionalidades, novas vulnerabilidades
O Movimento pelo Software Livre propõe um outro tipo de aliança. Uma aliança entre as duas faces do software – a do usuário e a do programador –, que o liberta da camisa-de-força que seu alter ego encarnado em poder econômico lhe impôs, sob o pretexto de salvar-lhe da esquizofrenia de Janus. Uma aliança que o submeta a um alter ego encarnado em valores humanistas, aqueles da tradição jurídica surgida a partir da Revolução Francesa, que privilegiam a liberdade humana sempre que esta se vê ameaçada. Como se vê hoje, pela liberdade do capital de tomar as rédeas e o controle do que bem entenda.
Num abuso de linguagem nada ingênuo, que confunde essas duas liberdades pela supressão de suas premissas, a expressão "livre comércio" tem sido usada e abusada para denotar o Livre exercício do poder econômico para controlar o Comércio. Denotasse a expressão outra coisa, não teriam seus tratados tantas cláusulas, páginas e complexidades hermenêuticas. Denotasse outra coisa, não seria a aliança humanista (que engloba não só o movimento pelo software livre mas também outros, como o ambientalismo) a emergir da lupa sobre essas complexidades como verdadeira vítima.
Enquanto a internet e as leis promulgadas a toque de caixa sobre o virtual, sob pretexto da realidade desta, atraem com sua força de gravidade a bola de neve do custo social do software proprietário, formam assim o campo de batalha e os indutores das duas possíveis alianças em torno do software, já mencionadas. Por mais que se invista em segurança na internet, os incidentes nela só aumentam – entre fraudes, sabotagens e invasões, em velocidade maior que o próprio desenvolvimento da rede. A internet, fruto mais visível e cobiçado da aliança humanista pelo Software Livre, nada mais é do que um conjunto de padrões, formatos e softwares básicos, hoje públicos e livres, destinados à intercomunicação cooperativa, redundante e autônoma entre redes de computadores, despidos do poder de discriminação do conteúdo nela comunicável. São padrões que evoluíram e amadureceram em seu próprio tempo, na ausência de qualquer pressão de natureza financeira. A aliança que lhe deu vida é a única estratégia até hoje conhecida capaz de realizar uma rede de comunicação digital aberta, global e ilimitada. Uma revolucionária infra-estrutura de comunicação, que teve sua explosão de sucesso devida não só a tais características, mas também ao seu custo operacional, marginal em relação ao das redes proprietárias que a realizam, descontados os custos imputáveis a novas vulnerabilidades, decorrentes da interconectividade das mesmas. Os usuários dos sistemas interconectados passam então a demandar a evolução dos mesmos, na forma de novas versões, que sejam compatíveis com o legado das anteriores e que possam explorar novas formas comunicativas, possibilitadas por esta fantástica infra-estrutura.
Tal pressão evolutiva produz, entretanto, resultados distintos nos modelos de negócio subjacentes às duas alianças possíveis. Para que mantenham seus fluxos de caixa, os produtores dos sistemas proprietários precisam antes oferecer novas funcionalidades nas novas versões dos seus produtos e, assim, justificar o custo final de suas atualizações aos licenciados. E precisa fazê-lo no ritmo ditado por estes fluxos .Novas funcionalidades, por sua vez, introduzem novas vulnerabilidades no software. Este choque entre ritmo e complexidade crescente leva a evolução do software proprietário a estacionar em robustez, diante de riscos crescentes no ambiente hostil e aberto onde irão operar. Um ambiente que passa a refletir, com realismo crescente, as condições das relações humanas na esfera da vida. Um ambiente que os sistemas proprietários não podem desprezar, pois é a capacidade de nele operar que hoje mais lhes agrega valor. Para vencer resistências e incertezas, tal ritmo é vendido como se fora ditado pelo "mercado", e portanto, um ritmo que o usuário não deveria deixar de seguir para não "ficar atrás" dos seus concorrentes. O sofisma entra aqui na forma de uma entidade una e suprema chamada mercado, onde há vários mercados com dinâmicas distintas e objetivos conflitantes.
Graus de Liberdade
Quando começou, o negócio em torno do software formava um mercado mais simples e livre. Para entendermos o sentido em que o software pode ser livre, podemos classificar as licenças de uso de software (EULAs) em relação a um espectro que mede a liberdade do licenciado em relação ao objeto da licença. Este espectro não mede preço ou custo do software, mas o que podemos chamar de grau de liberdade. Este espectro vai da licença mais radical do software proprietário (UCITA) até a licença GPL. No centro da aferição deste grau está o código-fonte do software. Semelhante a um "canal de consciência" de Janus, o código-fonte do software se compara a seu código genético, através do qual é construído por seu criador, antes de ser compilado para a linguagem da máquina onde irá operar, e através do qual sua lógica se expõe a outras inteligências humanas. Nesta escala, em ordem de proximidade à licença proprietária clássica (na qual se paga pelo direito de uso, sem direito de acesso ao código fonte) estão as licenças de softwares com código "compartilhado" (paga-se pela direito de uso, que inclui o direito de acesso ao código fonte, mediante cláusulas de non-disclosure e/ou não alteração), o freeware (nenhuma restrição em relação a uso e redistribuição, etc.), o software de código aberto (licença livre sem copyleft), e finalmente, na outra ponta do espectro a licença GPL (General Public License), com cláusula que proíbe a supressão da liberdade do seu objeto (copyleft).
A licença GPL foi concebida por Richard Stallman, no início da década de 80, como modelo de negócio para o projeto GNU, coordenado pela Free Software Foundation, presidida por ele. O projeto GNU é um dos vários projetos de integração e desenvolvimento cooperativo de software considerado, grosso modo, livre. Deste projeto e sob licença GPL é distribuido, por exemplo, o sistema operacional Linux. Outros projetos, por sua vez, adotam licenças de uso menos radicais, como por exemplo, o projeto do sistema operacional FreeBSD, que é freeware com codigo aberto. Numa interpretação liberal do que seja liberdade para o software, podemos incluir desde os de código aberto e os freeware, até os distribuidos sob a GPL, mas quem defende a GPL considera que só ela pode conferir liberdade verdadeira ao software. A idéia genial de Stallman foi a de usar, na licença GPL, as armas do modelo proprietário para proteger o software livre contra absorção por aquele.
A licença GPL oferece a qualquer um a liberdade de dispor do software licenciado como bem entender, exceto para suprimir esta liberdade a terceiros. Tal licença é, portanto, cobrada não em dólar, mas na moeda do compromisso pela preservação desta liberdade, através da exigência de que seu código permaneça aberto, em adaptações ou redistribuições. Isto é, que o software seja distribuído com código fonte, transmitindo esta exigência para qualquer software onde entre como parte. A GPL é um contrato de difícil exequibilidade. É muito dificil saber se um software proprietário, distribuido apenas em código de máquina, incluiu, ou não, na sua compilação, algum trecho de código fonte distribuido sob GPL. Mas seu efeito moral tem se mostrado espetacular. A Microsoft tem declarado a GPL como sua maior inimiga, sua pretensão de torná-la juridicamente nula ou mesmo de criminalizá-la. Porém, mesmo que consiga atingir um desses objetivos, dificilmente conseguirá anular seu efeito moral, amalgamador de uma parte do movimento do software livre.
Diferentemente do software proprietário, o software sob GPL evolui em seu próprio ritmo, por esforço cooperativo. Ele é o marketing de si mesmo. Só se ganha com ele indiretamente: por valor agregado na distribuição, por serviço prestado, por adaptação sob encomenda, por qualquer meio exceto a licença de uso. A GPL é hoje a licença predominande entre os sistemas de software que podem ser considerados livres, e que hoje evoluem pelo esforço coordenado de mais de 300.000 programadores, dentre os melhores, engajados neste esforço cooperativo e humanista.
Resta então, à aliança entre técnica e poder, induzir necessidades para novas funcionalidades no seu modelo de negócio, ou competir com um modelo socialmente mais eficiente. A julgar pelos discursos de seus executivos e pelo efeito dos seus lobbies, a estratégia escolhida parece inequívoca. Para ser bem-sucedida, ela precisa estender a blindagem inicial, da lógica do software proprietário contra o escrutínio social, ao desequilíbrio de riscos e responsabilidades que o rolo compressor do seu modelo de negócio introduz, nas novas práticas sociais que induz, contra a sensibilidade jurídica de legisladores e magistrados. Para fazê-lo sem atacar esta sensibilidade, tais lobbies precisam sobrevalorizar, no plano cultural, a necessidade de mecanismos compensatórios ao direito de propriedade intelectual diante da crescente ineficácia, na esfera virtual, das normas tradicionais deste direito. A pirataria e o cibercrime se tornam, com a ajuda da mídia, hediondos. Uma aliança passa a ver a força da outra como a de um câncer. E não por acaso, a legitimação desta dupla blindagem irá então servir simultaneamente a dois propósitos.
Segurança!, mas do quê mesmo?
Um desses propósitos será o de engessar a dependência da sociedade globalizada a práticas comunicativas digitais que sejam opacas e discriminatórias, qualidades que produzem o "efeito rede" indutor desta dependência, também conhecido como "vendor lock-in". Hoje, os bancos de dados do governo inglês estão, por contrato, sob controle da Microsoft. Hoje só se acessa, ou só se submete, um documento eletrônico sensível ao governo inglês a partir de alguma das últimas versões de software de propriedade da referida empresa. O mesmo ocorre, no Brasil, com algumas funções do "internet banking" da Caixa Econômica Federal. É claro que as explicações oficiais para esta discriminação ganham respostas técnicas no mínimo ambíguas à linguagem jurídica: incompatibilidade dos "concorrentes" com novos padrões de comunicação, supostamente públicos. Mas quem submeter software proprietário à engenharia reversa, para tentar descobrir se o padrão que nele funciona é mesmo algum suposto padrão público, estará violando as leis de proteção ao direito autoral do proprietário do software – do seu produtor.
O outro propósito será o de nos vender, no mercado das idéias, a opacidade e a discriminação -- a segurança do seu negócio, como se fosse a segurança jurídica do usuário de seu produto. Pela nova lei do direito autoral americana – o DMCA –, se o produtor de um software afirmar que um dos seus dispositivos é destinado a proteger o direito autoral de usuários deste software ou de seus intermediários, qualquer divulgação sobre a violabilidade desse dispositivo será criminosa. Antes que faça prova de má-fé ou de imperícia contra o alter ego do software, tal divulgação fará prova contra o acusador, impugnando-se como prova contra o primeiro, por ter sido "ilegalmente" obtida.
Exatamente como ocorrido em recentes litígios, como por exemplo, no caso entre a associação dos estúdios de Hollywood e os desenvolvedores de software livre, envolvendo um programa que desarma um dispositivo de venda casada de licença de uso de software e conteúdo de DVDs, rotulado pelo produtor como proteção contra cópia (CSS). Ou no caso entre a associação das gravadoras musicais e um professor de segurança computacional da Universidade de Princeton, Edward Felten, por disputa semelhante (SDMI). Ou no caso entre uma empresa americana de software para publicações eletrônicas (Adobe) e Dmitri Sklyarov, um aluno russo de doutorado em computação que ficou seis meses preso (hoje em liberdade vigiada e sob fiança) após apresentar "prova de imperícia" contra aquela em congresso científico nos EUA . Ou, pior, como suspeitam os serviços de inteligência do governo francês, de que sua indústria tenha sido vítima contumaz de espionagem perpetrada através de conluio no módulo de segurança do sistema operacional preferido por nove entre dez estrelas, suspeita esta que esses serviços nunca poderão investigar, devido às características do mecanismo de assinatura digital que permitem este tipo de conluio.
O curso do destino
Tal estratégia de dupla blindagem está produzindo seus efeitos sobre a aliança contra a qual competem seus adeptos. O efeito decorrente de seu primeiro propósito é o de imputar, às práticas comunicativas digitais livres e transparentes, a suspeita ou o crime de apropriação indébita de propriedade intelectual. De "roubo" de idéias que alguém tenha registrado, em algum tribunal da inquisição pós-moderna, como originalmente suas. Idéias como a de venda eletrônica em um clique, ou como a de links para hipertexto, ou como a do cursor que passeia ativo pela tela do computador. O efeito do segundo propósito é o de imputar, a essas mesmas práticas, a suspeita e a responsabilidade pelos desequilíbrios de riscos que emergem não só dessas, mas também daquelas "protegidas" por opacidade e discriminação.
É exemplo deste efeito a propaganda subliminar que associa a habilidade de programação, a independência e a autonomia no seu exercício com a intenção criminosa, expressa na transformação vertiginosa que o sentido da palavra "hacker" tem sofrido, amplificada pela grande mídia. Porém, o efeito mais dramático de tal estratégia poderá emergir da combinação desses dois efeitos. A saber: o de perpetuar a dependência da sociedade globalizada a um modelo de negócio cujo custo social lhe debita descontrole orçamentário, supressão de direitos básicos de cidadania, tais como a liberdade de escolha das formas comunicativas de sua confiança, e o pior: desequilíbrio e ineficácia jurídica crescentes, camuflados como seus opostos.
Sob vãs promessas de tecnologias que virão, em próximos lançamentos, resolver os problemas da natureza humana, o custo social do modelo predominante de negócio em torno do software – o modelo proprietário – vai sendo camuflado e protegido por esta dupla blindagem, enquanto a realização de tais promessas é continuamente adiada. Tudo encoberto pela aura de sacralidade com que o direito ao lucro em negócios tidos por legítimos é ungido pelo fundamentalismo de mercado. Enquanto uma empresa leva cinco anos para ser condenada e apenada, em processo judicial de altíssimo custo, por práticas monopolistas predatórias na exploração duma tecnologia digital "de ponta", esta tecnologia esgota seu ciclo de utilidade e a pena fixada resulta para a empresa em uma fração do poder amealhado por tais práticas. E o ciclo se reinicia, com a próxima tecnologia "de ponta", a exemplo da sentença sobre a guerra dos browsers, seguida do lançamento da plataforma .net.
Enquanto os sacerdotes do fundamentalismo de mercado combatem outros fundamentalismos, também comandam o processo de globalização, no qual se enfrentam as duas possíveis alianças em torno do software.
Se o ângulo de observação da luta entre essas possíveis alianças for o da propaganda neoliberal, ele mostrará a entrada em cena da arma jurídica que poderá dar vitória à aliança entre a técnica e o poder contra o "eixo do mal" digital, também por ela rotulada de "anarquismo digital". Em tramitação no Congresso americano, o Security Systems Standards and Certification Act (SSSCA) diz: "É crime criar ou vender qualquer tipo de equipamento digital que não inclua e utilize tecnologias de segurança certificada e aprovada pelo governo federal" [dos EUA].
Estas "tecnologias de segurança" destinam-se a bloquear, no equipamento certificado, a execução de software que não tenha sido digitalmente assinado pelo órgão estatal competente, controlador global da distribuição legal dos intermediadores virtuais da inteligência humana. Será também crime "remover ou alterar qualquer tecnologia de segurança certificada de um aparelho digital, transmitir ou tornar disponível qualquer material protegido por copyright onde as medidas de segurança associadas tenham sido certificadas e removidas ou alteradas".
Alguém apostaria na possibilidade do SSSCA, uma vez aprovado, vir ou não a se tornar objeto de lobby nos tratados WIPO, ALCA, OMC etc? Ou de softwares livres como o sistema operacional Linux, o servidor web Apache, o servidor de correio eletrônico Sendmail (os dois últimos os mais populares em suas categorias) virem a ser criminalizados ou certificados com suas licenças de uso atuais pelo governo federal americano?
São esses temas que Richard Stallman, notável figura pública a quem rendo minha homenagem, veio expor e debater em Porto Alegre. São esses temas que George Orwell abordou, entre outros, em sua sombria ficção literária publicada um ano antes da descoberta do transistor. São esses temas que Lawrence Lessig, outro Don Quixote das tradições humanistas e professor de Direito Constitucional da Universidade de Harvard, trata em seu recém-lançado e brilhante livro The Future of Ideas. São esses temas que a grande mídia evita penetrar, entre outros motivos porque não dão ibope.
Porque afetam a textura do futuro que estamos construindo para nós mesmos e para as futuras gerações, esses temas não devem merecer atenção apenas de técnicos. Elas devem merecer a atenção de qualquer cidadão deste mundo globalizado, mesmo contra recomendações de autoridades, como as oferecidas pelo presidente do Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), Wolney Martins, no seminário e-Gov [28/11/01] e em entrevista à revista eletrônica Computerworld, quando interpelado sobre certos riscos que estariam correndo os cidadãos brasileiros, sob a vigência da medida provisória 2.200, que decreta a validade jurídica de documentos eletrônicos no Brasil [veja em "O Silêncio que Produz Ruídos"].
Nossa ação, ativa ou passiva, nas escolhas que fazemos ou aceitamos e nas decisões que tomamos ou acatamos, como cidadãos ou como agentes econômicos, ao longo do confronto entre essas duas possíveis alianças, terá influência decisiva no que virá a ser a cidadania na sociedade globalizada do futuro. Não podemos escolher nosso destino, mas podemos influenciar no seu curso. A ignorância, o temor ou a vergonha da própria ignorância, a preguiça e a arrogância intelectual não servirão de desculpas para nossas gerações, perante a história. Pensar globalmente e agir localmente é filosofia que anima o Fórum Social Mundial. Uma filosofia que pode ser quixotesca, mas que aplaca inquietudes que assaltam nossa consciência sempre que lhe auscultamos com a devida atenção, em meio à cacofonia da hipocrisia coletiva a venerar a roupa nova do rei, tecida em tecnologia e costurada pela "suprema sabedoria" da mão invisível do mercado.
- Versão publicada no Observatório da Imprensa