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Sobre o recadastramento biométrico de eleitores

Entrevista a Ana Oliveira
Curso de Comunicação Organizacional, UnB

Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
16 de junho de 2013


Ana Oliveira: 1 -Para que serve o recadastramento biométrico?

Pedro Rezende: Boa pergunta. A propaganda oficial sugere uma resposta, de que serviria para ninguém poder se passar por você na votação, mas a rigor isso é enganoso. Qualquer método de identificação biométrica é probabilístico, ou seja, propenso a falsas identificações, conhecidas como falsos negativos (quando um dado verdadeiro não é reconhecido) e falsos positivos (quando um dado falso é reconhecido). Então, como nele esses erros automáticos são inevitáveis, o método tem que prever alternativa para identificação em aplicações onde isso seja inaceitável.

Alguém já viu catraca biométrica sem portinhola lateral, ou fechadura biométrica sem miolo para chave, para tratar os falsos negativos? A urna eletrônica também tem que ter, pois o direito de votar não depende de tecnologia, e sim de democracia. O mesário que antes identificava o eleitor com documento para liberar a votação na urna, com a biometria continua podendo liberar da mesma forma, em tese para tratar falsos negativos.

O modelo de urna que usamos desde 1996, de 1a. geração, foi adaptado com um dispositivo biométrico para identificar eleitores, e o equipamento é dos mais precisos que essas urnas tem condições de suportar. O fornecedor afirma que o equipamento opera com média de 1% de falsos negativos, o que significa que ele rejeita em média tres a quatro eleitores verdadeiros em cada seção eleitoral. Esses eleitores continuam sendo liberados para votação como antes, pelo mesário, usando uma senha.

O engano que a propaganda oficial da biometria pode induzir é sobre a função do mesário na votação. A biometria não força o mesário a ficar honesto. Se antes, mal fiscalizado, um mesário podia liberar outra pessoa para votar em seu lugar fazendo vista grossa na verificação do documento de identificação, continua podendo, fazendo vista grossa agora também para um verdadeiro negativo da biometria, tomando-o por falso. Ou nem isso, com ambos fingindo "defeito" no dispositivo, para não deixarem na urna impressão digital daquele que votou por outro.

Na primeira eleição com biometria, em 2010, muitos mesários já sabiam disso, e o resultado saiu de urnas com 40%, 45%, 59% e até 65% dos eleitores votando sem serem identificados por biometria, tidos como falsos negativos. A fraude aí nem precisa de luva feita de cola e molde de dedo alheio. O custo de se executar uma eleição mais que dobra com a biometria, sem nenhum efeito real para impedir, como sugere a propaganda oficial, que uns votem por outros, como explicado por um analista do CMInd.

Seria então lógico supor que essa biometria sirva para mais alguma coisa, além da propaganda, por algum outro motivo.


AO: 2- Como e onde as pessoas podem fazer? 

PR: Para recadastrar-se, as pessoas devem se apresentar aos locais indicados pela justiça eleitoral, nos prazos divulgados. Ali vão ser capturadas imagens em alta resolução de sua face e dos seus dez dedos, para compor uma gigantesca base de dados. Depois receberão um novo título de eleitor, mas sem retrato, como o anterior.

Das dez digitais capturadas, duas -- dos dedos indicadores, se mantido o procedimento da eleição de 2012 -- terão extrato (template) de dados incluídos no cadastro de eleitores da sua seção eleitoral, que é copiado para a urna a ser usada nesta seção durante os preparativos para uma eleição. Esses extratos é que serão usados pelo dispositivo biométrico da urna, para fazer o batimento com a leitura dos correspondentes dedos do eleitor antes da votação.

Para informar-se de quais poderiam ser os reais motivos dessa biometrização, que cria e mantém, com muito dinheiro dos nossos impostos, uma gigantesca base de dados da qual apenas pequena fração é usada para identificação do eleitor nas urnas, mas sem nenhum efeito real para a presumida finalidade alardeada em massiva propaganda, que também nos sai cara, as pessoas devem examinar os editais de licitação que a justiça eleitoral publicou para biometrizar nossas eleições.

As pessoas podem fazer, por exemplo, uma análise das justificativas apresentadas para o que há de mais estranho nesses editais, como por exemplo, licitar um sistema de software de biometria com o nome do fornecedor, do produto e a versão do produto previamente escolhidos (SAGEN ILSS 6i), contrariando dispositivos da lei n. 8.666, ou licitar urnas com adaptações para identificação que violam as características exigidas por lei eleitoral então vigente, a lei n. 12.034, ao invés de apenas engolir o embrulho da mídia corporativa.


AO: 3- Qual a importância nacional disso?

PR: Uma resposta honesta deve começar com "depende". Depende da nação.

Numa nação cujos cidadãos pagam impostos para que seus dados biométricos e pessoais sejam mantidos numa gigantesca base de dados sob pretexto de que, com ela, um eleitor não poderia votar por outro, e também pagam a conta da marquetagem para que acreditem nisso, numa iniciativa cujo modus faciendi é justificado por acordos de acesso privilegiado a essa base que violam a lei 7.444, inclusive com a polícia federal, a importância disso é que assim esses eleitores aprofundam sua renúncia ao papel que lhes cabe numa verdadeira democracia, que inclui fiscalizar eleições, à sua privacidade, perante um estado que se organiza para mais e mais vigilantismo, e, por fim, à soberania de sua nação.

Na nação cujos diplomatas arranjam acordos dessa natureza, para que seus serviços de inteligência e repressão tenham acesso privilegiado a dados pessoais de cidadãos de outros países às custas destes, dados que podem ser úteis para operações militares não tripuladas, a pretexto de combate global ao terrorismo ou ao crime organizado em troca de algumas miçangas tecnológicas, a importância disso é que assim eles aprofundam seu domínio geopolítico, via soft power em tempos erosivos para a democracia, seu combate à privacidade, rumo a um estado que se reorganiza como totalitário, e a soberania daquela nação frente às demais, que assim planta sementes de um governo global.


AO: 4- Por que vai ser positivo?

PR: Para alguns, porque certas empresas vão ganhar muito dinheiro, fornecendo equipamentos e serviços sem competição. Porque certos marqueteiros vão ganhar muita verba e novos enredos, para propagandas massivas que só mostram um lado de um jogo surreal, jogado no campo do ingenuo ufanismo e do trágico tecno-triunfalismo. Porque certos aparelhos de espionagem, repressão e inteligência militar com propensões hegemônicas terão seu trabalho traiçoeiramente facilitado a troco de mera vassalagem inercial.

E para outros, nos subterrâneos do poder, porque o nosso processo de votação continuará efetivamente infiscalizável pelo eleitor, enquanto no jogo de videogame em que se transformou nossas eleições ele parece estar se aprimorando. O eleitor não confia nos seus políticos mas confia cegamente no sistema de votação que esses mesmos políticos escolhem para ocuparem cargos eletivos. O que de fato se aprimora é a política, se reconhecermos que fazer política é a arte de conspirar, no sentido objetivo em que o dicionário define o termo. Obviamente, qualquer conspiração só será eficaz se parecer apenas mera teoria conspiratória.


AO: 5- Qual sua opinião a respeito do tema? 

PR: Acho que o motivo desse cadastramento biométrico ainda está obscurecido. Quem também acha, e que a forma solicitada de participação nele está mal explicada, ou é nada edificante para a nossa democracia, e sabe assinar o próprio nome, deveria, por hora, resistir e questionar qualquer ameaça de sanção calcada em suposta obrigatoriedade de fornecer dados biométricos à justiça eleitoral.

Acho que esses devem comparecer ao recadastramento obrigatório mas fornecer apenas os dados pessoais solicitados, como endereço, etc. Até onde me consta, pelo § 1º do art. 5º da lei 7.444 a justiça eleitoral só tem direito de obrigar um eleitor a fornecer dados biométricos se esse eleitor não souber assinar seu nome. Quanto aos outros, como prevê a profecia, resta atirarem no paranóico mensageiro.