OOXML é um padrão aberto?
Entrevista ao prof. Sérgio Amadeu,
Presidente da Rede Livre, para seu blog
Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
25 de agosto de 2007
Sérgio Amadeu: 1 - Prof. Pedro Rezende, as pessoas que não acompanham a área de tecnologia nos perguntam freqüentemente quais seriam os maiores problemas de um padrão internacional proprietário ou que contenha elementos protegidos pelo copyright ou patentes.
Pedro Rezende: Existem padrões e padrões. Para entender o que isso significa, é preciso conhecer um pouco da dinâmica da padronização. O OOXML é um conjunto de formatos para documentos eletrônicos, cuja proponente pretende tornar um padrão internacional de jure, sancionado pela ISO como se fora um padrão aberto. Quando já existe um padrão para isso, aberto de fato e livre de restrições proprietárias, que pode ser implementado por qualquer fornecedor de software de escritório, o ODF (ISO/IED 26300).
A proponente do OOXML já controla o setor de softwares de escritório, com padrões de mercado que são proprietários: o .doc, o .ppt, o .xls, dentre os mais conhecidos. Portanto, ela não precisa de selo ISO para seguir usando ou modificando esses padrões, ou criando novos padrões em seus softwares. Por outro lado, para sancionar um padrão sobreposto, ou seja, com a mesma finalidade de outro já sancionado, a ISO requer justificativa fundamentada. No caso do OOXML, a justifcativa apresentada pela proponente a mim mais confunde do que explica. Para começar, devido a inúmeras inconsistências e deficiências técnicas, amplamente documentadas pelo Grupo Técnico da Comissão de Estudos montada pela ABNT para analisar a proposta, o OOXML sequer está maduro, a meu ver, para ser considerado um padrão de jure. Se ele já foi aprovado por uma associação de fabricantes de computadores na Europa, resta saber em que condições, e quais interesses tiveram representação no processo.
A especificação proposta no OOXML é incompleta. Apesar do volume, a falta de detalhamento chega ao extremo em que partes do padrão fazem referência ao comportamento de softwares proprietários, da proponente, à guisa de especificação. Além disso, o padrão não é aberto: sua evolução é controlada por uma só empresa, a proponente, cujo licenciamento de patentes, à guisa de justificativa para o rótulo de aberto, exclui as partes não detalhadas. Partes essas que, apesar de não detalhadas e fechadas, são havidas como justificativa para a sobreposição de padrões ISO, visto que não são cobertas pelo padrão ODF. Nem poderiam ser, porque um padrão de fato aberto, como o ODF, não pode conter partes fechadas ou apenas indexadas ao comportamento de softwares proprietários. Tem-se aqui, como justificativa, um argumento circular. E um argumento circular só faz sentido para quem já nele acredita.
A empresa proponente sempre implementou e modificou seus próprios padrões, ofuscando-os o suficiente para bloquear, na medida que lhe convém, interoperabilidade com versões anteriores de seus próprios softwares e/ou com os de outros fornecedores. Quando seus padrões se baseiam em padrão aberto ou padrão de jure, o que se faz necessário, por exemplo, quando ela não é pioneira no setor, a estratégia ganha o nome de EEE, Embrace, Extend, Extinguish (Abrace o padrão, Estenda-o, e Extingua a concorrência). Essa estratégia pode ser alavancada pela dominância no setor de sistemas operacionais para PCs, especialmente para o público que pensa em PC como um eletrodoméstico. A partir dessa posição, os padrões da empresa acabam se tornando padrões de fato. E essa estratégia, em garantia de um certo fluxo de caixa, conhecida por vendor lock-in.
A empresa vinha usando essa estratégia sem se importar com rótulos, se o padrão era considerado fechado ou aberto, se de jure ou de mercado. Mesmo quando acabava assim condenada por práticas abusivas, anti-concorrenciais ou monopolistas predatórias, o que tem ocorrido com freqüência. As leis anti-concorrenciais tem sido esvaziadas pela influência hermenêutica da doutrina neoliberal, e as vantagens
comerciais ao transgredi-las têm compensado, especialmente nas TIC.
Portanto os maiores problemas, para a sociedade, com padrões proprietários que se tornam padrões de fato, independentemente de rótulo ou chancela de organismo internacional, vem do seguinte fato: é o controle sobre tais padrões, ou seja, o controle de sua evolução, que garante eficácia a práticas anti-concorrenciais ou monopolistas abusivas, num contexto jurisprudencial que estimula esses abusos. Se a proponente do OOXML adotasse o ODF, como padrão para seus novos softwares, ela não poderia seguir alavancando sua estratégia de vendor lock-in, porque o ODF é um padrão verdadeiramente aberto e livre de restrições proprietáras.
A propaganda da empresa pode levar o incauto ou apressado leitor, já sufocado pela atmosfera ideológica neoliberal, a crer que o que é bom para ela é bom para o usuário. Entretanto, dado o empenho com que está buscando o aval da ISO para o OOXML sob esses rótulos, cabe buscar entender o que há de novo na dinâmica desses controles: do controle que ela exerce na evolução dos padrões implementados por seus softwares, e, através destes, sobre a dependência de seus clientes a seus softwares e modelos de negócio. O importante aqui é entender porque esses rótulos, de padrão internacional de jure e de padrão aberto para o OOXML, se tornaram para ela repentinamente importantes. Estou trabalhando nisso e devo publicar algo em breve a respeito.
2) O chamado padrão Open XML é um padrão fechado? Possui componentes patenteados? Você teria como exemplificar?
PR: Para explicar porque o OOXML merece o rótulo de padrão fechado, e não o de aberto, e como ele se encaixa na estratégia de vendor lock-in, descrita na reposta anterior, remeto à reveladora análise de Rob Wheir, em seu blog. Para entendermos melhor as consequências dos exemplos citados por Rob Wheir, precisamos retomar o argumento circular dos que defendem a chancela do OOXML pela ISO como padrão aberto.
Quando um outro produtor de software de escritório busca alcançar interoperabilidade com o enorme acervo dos documentos eletrônicos já existentes gravados por softwares da Microsoft, para ter alguma chance do seu produto ser considerado como alternativa viável no mercado, ele se vê diante de uma enorme tarefa. Esses arquivos estão gravados em formatos que seguem padrões não documentados, parcial ou erroneamente especificados, ou protegidos doutra forma por entraves legais. Ele está diante da tarefa de descobrir uma forma de simular, com seu software, o que os programas da Microsoft fariam ao mostrar na tela arquivos gravados nesses formatos, e como gravariam alterações feitas pelo usuário. Essa tarefa é chamada de engenharia reversa.
A engenharia reversa é uma tarefa muito mais morosa, difícil e arriscada do que implementar esses padrões a partir de uma especificação detalhada, completa e legalmente desimpedida. Quando esse outro produtor conseque atingir esse objetivo em grau satisfatório, o proprietário que controla o padrão lança novas versões de seus softwares que convertem esses arquivos, ao manipulá-los, para novos formatos digitais, em versão modificada do padrão anterior (para .docx, no Office 2007 por exemplo). Com nenhum motivo ou conseqüência aparente além do de quebrar a interoperabilidade com versões anteriores e/ou concorrentes.
Começa então uma nova volta dessa corrida, pela pista da interoperabilidade. Com os clientes acumulando mais despesas, e os concorrentes mais desvantagem, tendo estes que buscar, novamente pela custosa engenharia reversa, recuperar a nova diferença. Enquanto o proprietário
do padrão usa o tempo ganho para incluir novas funcionalidades ou penduricalhos nos seus softwares, e para faturar. Com sua propaganda insuflando uma suposta importância dessas "inovações", corroborada pelo fetiche do consumo dos que já se renderam à marca. Como se os entraves e dificuldades de interoperabilidade fossem culpa de sua ignorância, ou um fato da vida.
Para uma comparação, cabe perguntar quem, no Brasil, nunca se aborreceu com combustível adulterado, ou quem nunca queimou um aparelho, ou deixou de usá-lo, por diferença de voltagem. Na informática, muitos padrões proprietários têm como único efeito prático o aprisionamento do consumidor a um único fornecedor. O que equivale, grosso modo, à composição do combustível só ser conhecida por quem fabrica o automóvel, ou à voltagem da rede elétrica só poder ser conhecida, e utilizada, por um fornecedor de aparelhos: o mesmo que distribui energia.
Quando esse efeito atinge usuários de software, seu aprisionamento à marca ocorre através do controle que o fornecedor exerce sobre certos padrões, técnica ofuscados ou legalmente restritos, pelos quais o software se comunica com outros, lê e grava dados para usuários. Tomando a analogia entre dados e energia, é como se o aparelho operasse produzindo resultados na própria rede elétrica, e a voltagem na rede variasse conforme certos segredos do fornecedor, manipulados pelo aparelho, inviabilizando o uso compartilhado dessa rede com aparelhos de outros fornecedores. É como se um tal fornecedor pudesse dizer: "eletrodomésticos Furnas proporcionam uma Experiência Aumentada".
Trata-se do "efeito rede", sobre a padronização digital. Padrões dominantes se tornam padrões de fato, confundidos com a marca. Quando um tal padrão é fechado, fornecedores que praticam o vendor lock-in (p.ex.: Windows, música ou vídeo com DRM) douram a pílula chamando-o de "descomoditização". Economês que parece inofensivo, mas que resulta lesivo a interesses maiores do consumidor e da sociedade. Quem hoje não precisa de preservar documentos eletrônicos?
3) Você não acha estranho o consórcio que mantém o padrão XML não ter nada a ver com o padrão Open XML? Qual a relação entre um e outro padrão?
PR:A relação entre esses padrões é que o segundo serve de suporte ao primeiro, para guiar sua interpretação. A relação entre o padrão Microsoft Office XML, que a empresa prefere chamar de Office Open XML e voce chama de Open XML, e a linguagem XML, é, portanto, semelhante à relação entre um contrato formal impresso em padrão ABNT e o padrão ABNT, ou entre esse contrato e o Código Civil.
O padrão ABNT é um padrão aberto, pois está livremente disponível e não inclui elementos proprietários. Da mesma forma, o Código Civil é uma norma aberta, no sentido de que seus dispositivos estão abertos à leitura e interpretação de todos, incluindo as que dispõe sobre contratos formais e seus efeitos (interpretação do contrato).
O padrão ABNT diz que o papel deve ter tamanho A4, que as margens devem ter tais tamanhos, que a organização do documento deve seguir tal estrutura, etc. O Código Civil pode dispor que, se o objetivo do contrato incluir a validade jurídica no Brasil, ele deve estar escrito em Português, ter essa ou aquela estrutura, etc. Doutro lado, o contrato pode ser sigiloso, ou de gaveta.
Dizer que o padrão MS Office XML é aberto porque o XML é aberto, equivale a dizer que um contrato de gaveta é público porque foi escrito em portugues, ou porque foi impresso segundo o padrão ABNT. Trata-se de um truque para justificar o rótulo, que pode enganar incautos, ou os que querem ser enganados, e encobrir os verdadeiros motivos para se buscar tal rotulação.