Rafael Evangelista: Por
força da lei, o TSE deverá, neste ano, submeter aos fiscais
dos partidos, o código fonte do software da urna eletrônica
(sistema operacional, aplicativo e programa de criptografia). Como será
feita, então, essa fiscalização?
Pedro Rezende:
Foi feita durante cinco dias, nas dependencias
do TSE entre 5 e 9 de Agosto, em ambiente controlado pelo fiscalizado. Os fiscais
tiveram cinco dias para examinar a documentação do sistema
e o código fonte dos programas para, no quinto dia, participarem
da cerimônia onde esses programas foram compilados, gerando-se a
versão executável dos mesmos. O código fonte é
a expressão de um software na linguagem em que é criado pelo
programador, e o resultado da complilação é a sua
tradução para a linguagem do computador onde irá executar
suas tarefas. No caso do sistema eleitoral, das urnas e das redes de apuração.
A idéia é que se possa produzir, na presença dos
fiscais que examinaram a documentação e o código fonte
dos programas, a versão executável dos mesmos. Desta versão
seria calculado um autentidor, para que os executáveis possam ser
verificados quanto à integridade, ao serem instalados nas urnas
e redes de totalização. Tudo seria então gravado em
um CD cerimonial, o CD lacrado para posterior leitura e retransmissão
aos TREs e o autenticador tornado público, para posterior verificação
de integridade.
RE: Os fiscais terão
tempo e estrutura para analisar adequadamente esses softwares?
PR: O tempo foi exíguo para uma ampla fiscalização,
como pede a lei eleitoral. Para se ter idéia, o mais recente modelo
de urna traz o sistema operacional Windows CE, um sistema operacional multitarefa
de mais de 2 milhões de linhas de código. Este sistema foi
projetado para arquiteturas dedicadas e hardwares customizados, sendo superdimensionado
para a urna eletrônica. Já as bibliotecas criptograficas e
o aplicativo de votação são bem menores. Não
sei de mais detalhes porque não tive acesso ao código, já
que renunciei à indicação partidária para atuar
como fiscal nesta apresentação, por discordar dos termos
do compromisso de manutenção de sigilo, exigido pelo TSE.
Mas podemos saber, mesmo não tendo participado da apresentação
dos programas, que não se pode analisar tanto código em cinco
dias. Talvez em cinco anos, tomando por exemplo experiências alheias
de validação de software que seguem padrões internacionais.
A ampla fiscalização, prevista em lei, é importante
porque fraudes pode ser perpetradas por pequenos trechos de dezenas de
linhas de código, inseridas entre essas milhões de linhas.
Além disso, esta apresentação só seria efetiva
como fiscalização se, após a análise detalhada
do código fonte dos programas pelos fiscais, e após a compilação
desses programas e do imediato cálculo e divulgação
do autentidador dos mesmos, algum posterior procedimento de fiscalização
pudesse permitir a verificação deste autenticador nos softwares
instalados nas urnas durante a eleição, pelos fiscais de
partido. Isto nunca foi permitido, e não sabemos se será
nesta eleição.
Mesmo longe de ser efetiva a fiscalização que tem sido
permitida, uma das críticas que se pode fazer, no sentido de poder
torná-la efeitiva, diz respeito à escolha dos sistemas operacionais,
principalmente o das novas urnas. Uma urna eletrônica é um
hardware dedicado que executa apenas um aplicativo e trabalha com poucos
periféricos e arquivos que são pequenos. Não necessita,
portanto, de um sistema operacional do tipo faz-tudo. Os primeiros protótipos,
apresentados nos primeiros concursos promovidos pelo TSE para escolha de
modelo da "máquina de colher voto", tinham sistemas operacionais
bem simples. Só depois é que a justiça eleitoral veio
a encomendar urnas com sistemas complexos, o último com o Windows
CE.
Em relação à estrutura, há notícias
de que a cerimônia de compilação foi tão tumultuada
que os fiscais de partido não tiveram como acompanhar adequadamente
o processo. Mesmo que o tempo não permitisse aos fiscais examinarem
tudo, esta apresentação era considerada como uma etapa de
fiscalização por se basear na presunção de
que todo o software estaria disponível para análise, antes
da compilação. Porém, na hora da compilação
descobriu-se que algumas medidas de segurança necessárias
para manter o ambiente de compilação controlado impediam
a compilação conforme planejada, e que o Windows CE não
caberia no tal CD ceremonial. Aboliram-se medidas e, por tentativa e erro,
produziu-se uma compilação cujo caráter público
perdeu o sentido de validação pela transparência, pois
os fiscais não podiam mais saber o quê exatamente estava sendo
compilado.
Não houve planejamento prévio adequado. Não havia
roteiro e, pela natureza dos incidentes, pode-se deduzir que não
houve nenhum ensaio ou teste prévio para a cerimônia de compilação,
por parte dos organizadores. Houve, entretanto, a permissão para
que um fiscal bem relacionado com os fiscalizados organizasse uma sessão
de cinema, improvisada no ambiente onde a cerimônia estava sendo
conduzida, para entreter os fiscais que estavam ali para bater palma, dizer
amém e assinar em baixo da ata, já que a conclusão
dos trabalhos se arrastava indefinidamente, emperrada por imprevistos que
vieram a anular qualquer tentativa de se manter controlado o ambiente de
compilação.
Conforme testemunhos, a festinha paralela foi organizada por um fiscal
do PT e seu laptop carregado de DVDs, um fiscal que se vangloria dos privilégios
que goza com os fiscalizados, confirmados pelo telão e amplificador
de som cedidos pelo TSE. Seu gozo de privilégios resultou, nesta
fiscalização, em graves constrangimentos e dificuldades aos
que levam a sério a responsabilidade a eles incumbida pela parcela
do eleitorado que representam, devido à algazarra promovida no ambiente
de compilação. Embora me tenha sido relatado a natureza dos
filmes exibidos, creio que não deva comentá-los, já
que os filmes foram exibidos por software, e qualquer conhecimento acerca
de softwares dali emanado está coberto pelo termo de sigilo exigido
pelo TSE aos fiscais desta apresentação.
RE: O sr. acredita que, se
esse código fonte fosse submetido aberto não só aos
fiscais mas à opinião pública geral, a segurança
da urna poderia ser melhorada? O software de código aberto pode
ser mais seguro?
PR: Se os critérios para escolha do software da urna incluíssem
as exigências da lei eleitoral quanto ao direito de ampla fiscalização,
ou mesmo critérios de mínimo bom senso que viabilizassem
à justiça eleitoral a validação do software
licenciado, o Windows CE certamente não seria escolhido. O Windows
CE é um sistema praticamente inauditável, devido ao seu tamanho
e aos truques que sua proprietária usa para dificultar a compreensão
da versão do código fonte dos seus produtos que aceita divulgar.
Por sinal, uma empresa já condenada em última instância
onde tem sede, por práticas monopolistas predatórias, aguardando
apenação. O Goveno Francês é testemunho dessas
dificuldades, e possível vítima de espionagem industrial
intermediada por esses produtos, como suspeita.
Aliás, o contrato entre o TSE e a Unisys para fornecimento dessas
novas urnas, que teria incluído como parte do negócio o Windows
CE, nunca veio a público, apesar de várias petições
de partidos à justiça solicitando cópia do mesmo.
Em relação a essas petições estamos no limiar
da prevaricação, já que elas tiveram despacho favorável
do presidente do TSE.
Na recusa do TSE em divulgar o contrato para fornecimento das novas
urnas, e nas inconsistências do contrato anterior, temos problemas
que esclarecem sua pergunta. A sociedade precisa conhecer os motivos da
escolha dos softwares para o sistema. Os critérios precisam ser
conhecidos e justificados. Como disse antes, um sistema operacional superdimensionado
e opaco na urna inviabiliza tanto a validação do software
pelo contratante, quanto a fiscalização pelos interessados
nos efeitos do contrato. Certamente a justiça eleitoral não
é a única interessada nesses efeitos. Quanto mais difícil
de ser auditado o software, mais fácil a inserção
furtiva nele de trechos de código que promovem a fraude, por agentes
internos ao sistema. A fiscalização falha funciona neste
caso como uma tentação, pois resulta em impunidade à
tentação.
A escolha de software livre para a base do sistema, como por exemplo,
para os sistemas operacionais tanto da urna como das redes de apuração,
resolve vários problemas, do ponto de vista da segurança
do eleitor, contra fraudes de origem interna. Permite o correto dimensionamento
dos mesmos por quem for adaptá-los ao sistema e facilita a fiscalização,
pois software que nasce livre precisa ser bem legível e bem documentado
em seu código fonte, para que tenha chances de evoluir através
da cooperação dos progromadores interessados. Precisa seduzir
os cooperantes pela clareza e objetividade de seu código.
Os argumentos que vêm sendo usados em público para justificar
as escolhas até aqui tomadas, não só em relação
ao software mas também em relação aos procedimentos
de fiscalização, são falaciosos, pois tratam o sistema
eleitoral como um sistema cuja segurança coletiva seria medida pelo
sigilo, quando, ao contrário, a sua natureza determina que esta
medida seja pela transparência. O sigilo eleitoral deve se restringir
apenas à identificação de autoria do voto. Resta conhecer
a materialização dessas escolhas nos contratos de fornecimento,
para que seu questionamento tenha chance de produzir efeitos benéficos.