Radicalização com Patentes "de software"
Entrevista ao acadêmico Pedro Paranaguá,
sobre conceitos de programação, pelo ângulo da proteção autoral
Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
14 de Fevereiro de 2005
Pedro Paranguá: 1- Um artigo que publiquei recentemente afirma: "O direito de autor torna possível o desenvolvimento de programas similares entre si, desde que tenham sido elaborados independentemente. No caso de patentes de softwares, estas protegem o processo, ou seja, não é possível a produção de programas similares."?Pedro Rezende: Primeiro, à sua frase eu acrescentaria, "sem risco de litígio proporcional ao grau de similaridade".
PP: 2- Veja o que pensa do meu entendimento: na verdade, normalmente quando se pede uma patente de software, descreve-se um processo (para se livrar da exclusão software em si). Todavia, o que na realidade acaba sendo protegido não é o processo, mas sim a funcionalidade do produto final. Ou seja, usa-se o termo PROCESSO, mas na realidade quer-se a proteção do PRODUTO. O esclarecimento que gostaria é sobre a diferença sobre os dois conceitos.PR: Processo executável por software nada mais é do que algoritmo. Software só faz manipular símbolos segundo regras lógicas. Um conjunto estruturado, ou sequência, de tais regras visando obter resultado a partir de um contexto de valores iniciais admissíveis se chama, na ciencia da computação, algoritmo. Um algoritmo é uma idéia de como se implementar um tal conjunto de regras; Falar de patente de software, de processo ou de produto, são truques para se desviar das restrições ao patenteamento de idéias, fórmulas ou leis matemáticas.
O que se quer, no frigir dos ovos, é uma reserva de direito para exploração econômica o mais abrangente possível, o conceito pouco importa. Este fato está ilustrado em vários casos de litígio envolvendo interpretações obscuras e questionáveis. Podemos citar, como exemplos.
http://www.chillingeffects.org/ patent/notice.cgi?NoticeID=1070#QID352
http://economist.com/agenda/ displayStory.cfm?story_id=3554542
http://business.bostonherald.com/ technologyNews/view.bg?articleid=63440
http://repositories.cdlib.org/iber/cpc/CPC04-43/
http://www.groklaw.net/article.php ?story=2005010406110017
http://www.groklaw.net/article.php ?story=20041230173714712
Do ponto de vista hermenêutico, o problema é que é praticamente impossivel disitinguir se dois processos são ou não disitintos, no sentido de serem ou não funcionalmente equivalentes. Patentes são escritas por advogados em legalês, e programas por programadores em lingagens de programação. Traduzir legalês de carta de patente para UML (linguagem de especificação de programas) e de UML para código fonte, e deste para código de máquina, e de todo o processo para uma heurística capaz de comparar funcionalidades, é como traduzir poesia. Acaba a patente funcionando, na verdade, como uma arma de ataque e defesa em estratégias de negócio, o que é abertamente admitido até por quem opera no ramo (veja, por exemplo, http://www.m-cam.com/index.cgi ?file=newsevents/20040419_new_tech_week.html)
Tudo isto porque o conceito de propriedade intelectual é um oxímoro, pois identificar duas idéias provenientes de cabeças distintas como sendo idênticas, de forma convincente a terceiros, é um problema semiológico que wittgenstein provavelmente classificaria de irresolvível. Ao final, o convencimento se assenta quase totalmente sobre crença.
PP: 3- Mas se na prática a proteção que se busca é ao produto final, não importa se há outro pedido de outra patente baseado em processo completamente distinto e independente, se o produto final das duas patentes é o mesmo. O pedido seria indeferido. Isso, no meu modo de ver, é pior do que o mencionado na pergunta anterior. E é o que tem acontecido, de certa forma, não?.
PR: Acredito que as duas interpretações que voce menciona sejam incomparáveis, da mesma forma que o seria perguntar se é mais fácil para um alemão traduzir poesia do chines para o basco, do que seria para um húngaro traduzir poemas do japones para o quechua. O problema começa com a definição de produto ou de processo (Na verdade, programa de computador tem a natureza dual, sendo ao mesmo tempo as duas coisas, como na linguagem, um símbolo é ao mesmo tempo referente e referência). Produto ou processo, afinal, tratar-se-ia, de
1) Ccódigo binário de um programa, em formato executável para uma determinada plataforma e arquitetura, tipo Windows XP + Intel X86?Agora, veja o seguinte:
1.5)- Código fonte de uma implementação do programa, para um determinado compilador de uma linguagem e configuração do ambiente deste?
2) Código-fonte de uma implementação, em uma determinada linguagem de programação de implementação padronizada, ex: ANSI C?
3) Especificação do programa em uma linguagem formal de modelagem, tipo UML?,
3.5) Especificação do programa em uma linguagem informal de modelagem
4) Funcionalidade de qualquer um dos refentes acima, como relação à entrada/saída de simbólos abstratos (que os dados representam), combinatoriamente "infinitos"?
A definição de "produto" parece mais adequada ao nível 1, mas um bom advogado pode fazê-la assentar em qualquer dos níveis acima.
A definição de "processo" parece mais adequada ao nível 4, mas um bom advogado pode fazê-la assentar em qualquer dos níveis acima.
Além disso, um bom advogado pode também fazer a definição de "equivalência" subir de nível, em relação àquilo que se compara (produto ou processo, em qualquer nível).
Se definirmos o objeto de proteção patentária, seja ele chamado pelo nome de "processo" ou de "produto", da forma mais restrita possivel, a saber, no nível 1 com o critério de "equivalência" também operando no nível 1 a proteção patentária equivaleria à do direito autoral para executáveis proprietários (onde o codigo fonte está fora do radar), ou seja, proteção contra cópia (fiel) não autorizada de programa em código binário. Acho que ninguem hoje, além dos leigos que não sabem distinguir as duas coisas, se refere a patentes de software nesse sentido mais restrito, equivalente em efeito ao direito autoral para binários proprietários.
Qualquer outra possibilidade introduz aquilo que estou chamando de imponderáveis na aplicação do critério de equivalência. Mas esse é só o começo dos problemas. Qualquer pedido de patente estará escrito em legalês, portanto, em um nível acima do 4), no quatro anteorior.
Qualquer que sejam as escolhas de definição de objeto de proteção patentária e critério de equivalência (nome produto/precesso e nível entre 1 e 4), haverá, necessariamente, indeterminismos em qualquer tentativa de se estabelecer se uma determinada carta de patente se aplica ou não a um produto/processo, por se tratar esta tentativa de uma tradução a partir de uma linguagem humana (nivel acima de 4), para um nível semiológico mais baixo. E aqui está o prego no caixão: INCLUSIVE para um produto/processo modelo que acompanhe o pedido de patente, a título de "prova de conceito".
Trata-se, portanto, de uma festança para um operador do direito que cobra por hora. Não é a toa que alguns defendem a radicalização esotérica da propriedade intelectual com tanto fervor, dourando a pílula com o nome de "harmonização".
PP: 3- Pela afirmação que citei na abertura da entrevista, se patentes protegem processos, então seria possível SIM a produção de programas similares, por outros processos (ainda que o produto final fosse o mesmo).
PR: Para qualquer definição de objeto de proteção patentária distinta da mais restrita possivel (onde a proteção patentária equivaleria à do direito autoral para binários proprietários), a resposta é DEPENDE, ou SIM e NÃO. Para mim, o melhor argumento para que idéias não sejam patenteáveis é prática. A da eficácia jurídica. Não é a por acaso que mais da metade das patentes de software testadas em tribunais não resistem ao crivo do litígio.
PP: 4- Então, a afimação citada estaria incorreta ou mal explicada?
PR: Concordo que esteja mal explicada, mas não é só esse o problema que vejo. Gostaria de dizer, também, que QUALQUER frase através da qual se tente explicar patentes de software, pelo fato do conceito em si formar um oxímoro, estará desde antes necessariamente mal explicada.
Quando se compara a proteção patentária com a do direito autoral, deve-se ter em mente que a proteção patentária expõe todo desenvolvedor de software ao risco do processo presumido por seu produto vir a ser considerado patenteado, em situaçõe que, doutra forma, se caracterizaria como livre concorrência. Além disso, com agravantes que incluem :
1) Possíveis ônus de prova em contrário,
2) Possibilidade do desenvolvimento ter ocorrido enquanto os detalhes do objeto da patente contra a qual se vê confrontado estavam resguardados por sigilo, durante o trâmite do pedido de concessão de patente,
3) Desse trâmite permitir alterações em tais detalhes, possibilitando ao solicitante da patente antecipar contencioso com o desenvolvedor (submarine patents), forjando a seu favor uma reversão no princípio da anterioriedade enquanto se benficia abusivamente da retroatividade do efeito da proteção patentária (ao início do trâmite), na mais importante dessas jurisdições (a dos EUA), justamente a que os lobbistas da radicalização da propriedade intelectual querem forçosamente universalizar, por meio de tratados de "livre comércio".