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O Voto Eletrônico Vale a Pena?

Entrevista à Jornalista Sônia Zaghetto,
Para publicação no Jornal O LIBERAL - PA
publicada em parte em 13/10/02

Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
6 de Outubro de 2002



Sônia Zaghetto: 1. O Brasil é o primeiro país do mundo a ter a eleição inteiramente informatizada. A urna eletrônica é segura, de fato?

Pedro Rezende: A urna, em si, ou os demais computadores envolvidos na informatização do sistema eleitoral, são seguros. Ponha-se neles programas honestos, ter-se-á eleição limpa. No caso da urna, programas que somam votos, e que os deixam ser somados, de acordo com a aritmética escolar. Ponha-se neles programas desonestos, ter-se-á eleição fraudada. O computador agirá, seguramente, conforme é comandado.

Qual das duas situações ocorre, nada tem a ver com a urna ou com o sistema em si, mas muito a ver com os procedimentos e normas que regulamentam seu uso. Quanto mais esta regulamentação dificultar a fiscalização ou admitir privilégios indevidos, mais estimulada estará o lado escuro da natureza humana dos que operam o sistema, a abusar do manto de impunidade para a desonestidade..

SZ: 2. Por que o senhor costuma dizer que o problema da urna eletrônica não é falta de segurança, e sim o excesso?
PR: O processo eleitoral é um tripé: votação, apuração e fiscalização. Sobre este tripé se equilibra a democracia. Sob o pretexto de se agilizar e facilitar duas dessas pernas, não se deveria amputar a terceira. Durante sua informatização foi sendo tirado da sociedade, a pretexto de se proteger o novo sistema contra burla por parte de quem está de fora dele, o direito de fiscalizá-lo. O artigo 66 da lei 9504/97, por exemplo, que dá aos partidos o direito de ampla fiscalização nos sofwares do sistema, tem sido sistematicamente violado pela Justiça Eleitoral, sob tais pretextos.

A regulamentação de sua fiscalização, como é hoje permitida e praticada, protege o sistema de duas maneiras. Protege quem o opera de falhas não intencionais ou fraudes de origem externa, e protege possíveis fraudes de origem interna contra detecção externa. Ao eleitor, deveria interessar a primeira proteção conjugada ao inverso da segunda. Para se inverter o sentido da segunda proteção, a regulamentação do uso do sistema e sua prática precisam permitir a fiscalização eficaz no processo, por parte de quem poderia ser vítima de conluios facilitados pela sua informatização.

SZ: 3. A própria estrutura do sistema eletrônico não permite que usuário tipo hacker possa usar a Internet para interferir nos resultados da votação. De que forma, então, o sistema está ameaçado?
PR: Sempre me perguntam isso, e quase sempre ignoram a resposta, que é óbvia, por estar embutida na própria pergunta. As estatísticas em todo o mundo mostram que quatro em cada cinco crimes de informática são cometidos por funcionários que tem acesso legítimo ao sistema, necessário para fazê-lo operar. Isto é, 80% dos crimes de informática são ataques e fraudes de origem interna. Não devemos perder tempo falando de hackers de fora, pois é óbvio que eles não podem invadir o nosso sistema eleitoral. Temos que nos preocupar com os hackers de dentro. Assusta-me ver quem defende a lisura do sistema se fazer de louco, desdenhando ou fingindo que este fato real da vida atual não existe. E, mais ainda, ver a mídia acobertando este "esquecimento".

Se todo profissional da informática sabe que os hackers de dentro são os que representam os maiores riscos, por que não se informa isso ao leigo, no caso do sistema eleitoral? Já que o TSE se negou a divulgar a tempo a lista dos técnicos terceirizados para executar o processo, aqueles que instalaram os programas nas urnas e nas redes de apuração, para que os partidos pudessem fiscalizar sua ação em condições de identificar possíveis alvos de impugnação, por que a mídia não comenta este obscurantismo? O argumento de que não se deve causar pânico é apenas um sofisma cúmplice. Persistir tanto tempo neste discurso monótono, de que o sistema não pode sofrer ataques de hackers de fora e portanto é seguro, ou que não se pode permitir esta ou aquela ficalização por causa dos hackers de fora, deixa de indicar ingenuidade e passa a indicar conluio ou má-fé.

SZ: 4. O senhor afirma que o fato dos partidos só poderem verificar a integridade dos programas 60 dias antes da eleições é uma atitude que se parece com uma "estratégia de camuflagem de riscos". Por quê?
Basta a introdução de umas quatro linhas de código num programa para se desviar votos de um candidato a outro. E quanto antes entrar num programa destinado à urna, ao longo do processo de replicação a que será submetido após a apresentação aos partidos, ou quanto depois, se se seu alvo for um programa de totalização, mais abrangente será a fraude. Por que se deve acreditar que nenhuma das pessoas com acesso legítimo para manipular o sistema faria isso, quer por iniciativa própria, quer a mando superior? Se a fiscalização deficitária representa impunidade, o que os deteria, caso se sintam tentados à desonestidade? A camuflagem do risco está em se abusar da boa fé ou da pouca cultura do cidadão, ao se anunciar que a inspeção que os partidos fazem em alguns desses programas, com antecedência de 60 dias, seria medida fiscalizatória suficiente. Tais declarações de suficiência são argumentos de autoridade, e não argumentos técnicos, independente da linguagem em que são expressos.

Quem aceita argumento de autoridade onde só caberia argumento técnico demonstra pouca inteligência e pouca cultura. Ligadas ao estopim da ingenuidade, esta mistura se torna explosiva nos dias de hoje. Qualquer um tem direito de ser ingênuo, crédulo ou boçal. Porém, não tem o direito de induzir os outros a sê-lo em situções onde terceiros podem se beneficiar desonestamente destas qualidades. Tais induções podem caracterizar co-responsabilidade em crime de estelionato ou formação de quadrilha. A despeito do fascínio coletivo com a tecnologia, a era da informática não é uma era onde se amarra cachorro com linguiça, não devendo a mídia estar amplificando esta impressão falsa.

SZ:  5. Na sua opinião o cadastro eleitoral pode ser fraudado? Há como cadastrar, por exemplo, eleitores fantasmas?
A minha opinião coincide com a da justiça eleitoral. Não só pode, como tem ocorrido. O caso de impugnação da última eleição municipal de Camaçari, na Bahia, comprova fartamente isto, como está descrito nos autos do processo e no livro "Burla Eletrônica", Editado pelo Instituto Alberto Pasqualini, do Rio de Janeiro. 30% do cadastro de Camaçari é composto de eleitores fantasmas, e três tentativas seguidas de limpá-lo só fizeram aumentar o número de fantasmas. Trata-se de um defeito na natureza humana, agravado pela tecnologia.
SZ:  6. O senhor acha possível mesários fraudarem as urnas?
Eles podem ser cooptados para participar em fraudes, como no caso do voto de eleitor fantasma. O eleitor finge que está cancelando seu voto e reclama que a votação não deu certo, e finge várias vezes para que o mesário libere, a cada nova tentativa, o voto de um outro eleitor, que ambos sabem ser fantasma. Este tipo de fraude não existia no voto em cédula de papel, embora existisse em forma semelhante, porém mais arriscada. Este novo tipo de fraude está sendo estimulado pelo sistema informatizado, razão da dificuldade encontrada pela Justiça Eleitoral para limpar o cadastro de Camaçari. Nesta eleição os eleitores fantasmas não ganharam destaque, pois eles são mais importantes para fraudes em eleições municipais.
SZ: 7. O TSE afirma que o relatório da Unicamp atesta a segurança das urnas eletrônicas. O senhor já comentou o relatório?
Comentei para a Folha de São Paulo, logo que saiu, e depois fiz uma análise mais detalhada no livro "Burla Eletrônica", que já citei. Esta análise está também no meu site, em http://www.pedro.jmrezende.com.br/segdadtop.htm. Infelizemente, o relatório tem mais ambiguidade do que seria prudente num documento do sua natureza e importância. Além da frases bombásticas e categórica envolvendo julgamentos subjetivos, a que os defensores do status quo e voce se referem, o relatório apresenta recomendações de oito medidas de proteção contra fraudes de origem interna, muitas não adotadas, apesar de prometidas pelo presidente do TSE para esta eleição, em sessão pública na comissão de consituição e justiça da Câmara dos Deputados, em 19 de junho.
SZ: 8. Alguns técnicos até admitem que a fraude das urnas eletrônicas é possível, já que o conceito de sistema seguro é praticamente utópico nos dias atuais. Mas esses mesmos técnicos asseguram que. para levar a cabo uma fraude com impacto importante no resultado do pleito seria necessário um gasto descomunal de recursos financeiros e uma massa humana passível de ser subornada. A partir dessas premissas, não se torna execessivamente dispendiosa a fraude para resultados possivelmente pífios?
É óbvio que existem formas ineficientes e pouco inteligentes de se tentar fraudar o sistema. Mas essas, que os tais técnicos admitem, não são necessariamente as únicas. Todo ladrão vai procurar o caminho de menor risco para sua ação, o que faz do exercício intelectual de quem só admite formas burras de ataque, uma curiosidade retórica, sem qualquer valor para a análise de risco do sistema. O exercício deles serve, entretanto, a outro propósito. O de disfarçar as vulnerabilidades do sistema, por quem quer ou precisa defender, com linguagem técnica, o status quo do sistema eleitoral. Trata-se de uma forma sutil de sofisma.

Tais exercícios partem sempre do pressuposto de que todas as medidas de fiscalização implementadas são eficazes, o que, absolutamente, não é o caso, pois as que estão em vigor são todas inócuas. Nesta discussão não devemos nos ater a promessas, mas às atitudes dos juízes e oficiais da justiça eleitoral, ao interpretarem as normas fiscalizatórias em vigor, ou seus vazios. Comento várias dessas atitudes, normas e vazios em diversos artigos que já escrevi a respeito. A partir da falácia inicial, que supõe serem os mecanismos de fiscalização eficazes, esse tipo de exercício entre logo em outra, a de que o fraudador é extremamente burro, focando apenas o risco de que alguém vá bolir na urna mesma. Não será por aí que o fraudador vai agir, pois, como já disse, quanto mais cedo na cadeia de produção e replicação dos softwares for introduzida a burla, mais abrangente será a fraude e mais difícil de ser detectada. Também a fraude na totalização poderá ser simples e indemonstrável, se a justiça eleitoral não permitir a adequada fiscalização da totalização, como fez em eleições passadas e está fazendo nesta. No caso da totalização, independente do que diz a lei, o que temos de fato são apenas promessas de que a lei será cumprida, proibições verbais para o seu cumprimento no momento em que se fazem necessárias, e posteriores desmentidos. Em outras palavras, o que temos é abuso de poder.

Nsses exercícios, as falácias não param por aí. Eles pressupõem que os partidos examinaram, conheceram e aprovaram todos os programas do sistema, durante os cinco dias em que tiveram acesso ao código fonte de alguns deles. Entretanto, se eu lhe colocar numa biblioteca com 25 mil livros durante cinco dias, seria correto dizer que voce conheceu todo o conteúdo de minha biblioteca, atestando assim que a biblioteca não contém nenhuma heresia? Este número de livros corresponde à quantidade de programas no sistema operacional da urna com impressora, o Windows CE, sendo que qualquer um deles pode ser modificado para esconder umas poucas linhas de código que burlam o sistema, para que desvie votos no boletim de urna, à moda de um vírus digital. Certamente que os técnicos não comprometidos com a defesa do status quo se negam a admitir que este tempo seja suficiente para validar o sistema. Não bastasse isto, o sistema operacional da urna sem impressora, o VirtuOS, não foi mostrado aos fiscais de partido.

E mesmo que os programas estejam todos íntegros quando da apresentação do TSE, lacrados em CDs para serem posteriormente transmitidos aos TREs, as regras atuais não permitem a auditagem da transmissão dos programas. Nem a auditagem da preparação dos mesmos com os dados do TRE, sendo que a validação de sua integridade durante a carga nas urnas, para esta eleição, não pode ter, absolutamente, nenhum efeito de prova, pois quem atesta esta integridade é justamente um dos programas que estão entrando na urna, o vaudit.exe. Se alguém de dentro, um dos técnicos anônimos por exemplo, quiser fraudar, pode muito bem modificar também o vaudit.exe para que diga que está tudo bem por ali.

O que se tornaria execessivamente dispendiosa seria, portanto, não a fraude em si, mas a produção de provas de que houve fraude. Provas que, além de dispendiosas e dificeis, teriam sua admissibilidade sujeita à concordância de quem estará, ao mesmo tempo, sendo acusado e julgando. Esse tipo de argumento é apenas retórico, e não técnico como sugere sua linguagem. Trata-se de mero exercício de sofisma.

SZ: 9. A fraude também precisa ser detectável. O sistema de fiscalização tem falhas?
O sistema parece permitir a detecção de fraude, à primeira vista. Porem, à medida que se conhecem os detalhes, perecebe-se que todas as medidas fiscalizatórias permitidas apresentam falhas que anulam a suposta capacidade de detectar fraudes, tornando-as mais parecidas a truques ilusionistas do que a técnicas de auditagem. Algumas falhas foram propositadamente introduzidas, sob os mais disparatados pretextos, como a antecipação da data do sorteio da amostragem, introduzida de última hora na lei que obriga as urnas a imprimirem o voto, para possível recontagem por amostragem. Porém, a pior delas é a mais recente novidade, o chamado "teste de votação simulada".

Trata-se de uma votação aberta, onde os votos são digitados às vistas dos fiscais de partido, a ser feita no dia da eleição, com urnas escolhidas dentre as que seriam usadas na votação real. Na forma regulamentada pelo TSE, tal simulação não dá conta de mais do que cento e cinquenta votantes por urna em tempo normal de votação, segundo ensaios previamente divulgados, confirmados pela cronometragem das simulações conduzidas durante o primeiro turno, feita por fiscais que as reportaram de vários estados. Esta lentidão desproporcional à votação real se deve ao excesso de burocracia na regulamentação desta tal "medida de fiscalização".

Bastaria uma ou duas linhas de código adicional na burla oculta no software para neutralizar a fiscalização: um comando que desliga a fraude mediante aviso de simulação. Este aviso poderia ser, no caso, abstenção na sessão eleitoral superior a, digamos, 50%, ou horário distinto do da votação verdadeira.

Durante a apresentação preliminar do sistema, em 5 de Junho, o TSE foi alertado, pela equipe que integrei, sobre a ineficácia da simulação regulamentada, e a resposta dada por um dos diretores de informática do tribunal foi: O prazo para sugestões já se esgotou. Entretanto, o TSE já havia sido alertado, dentro do tal prazo e por escrito, em abril, que qualquer discrepância entre as taxas de abstenção da simulação e da votação real invalidaria a capacidade fiscalizatória da simulação. E o ministro do TSE, que presidia na ocasião a audiência de apresentação de propostas para o sistema, descartou a sugestão de que a regulamentação da simulação levasse em conta este fato. Simplesmente desdenhou-a.

Agora, durante a primeira audiência pública após o primeiro turno da eleição de 2002, vimos o presidente do TSE afirmar, em rede nacional, que as votações simuladas comprovaram de forma absoluta a total lisura do pleito, em afronta à inteligência do eleitor que queira se informar a respeito e que descarta a credulidade ingênua e o argumento de autoridade em lugares descabidos. Pelo andar da carruagem, esta nova medida pode ser um mero novo truque de mágica para substituir outro, o da apuração paralela dos votos impressos em urnas sorteadas na véspera, para seguir iludindo incautos que ignoram a natureza do espetáculo.

A fritura da medida que instituiu a impressão do voto já começou, com o descaso que reservou o TSE para sua estréia em Brasília e Sergipe: Poucas urnas, programas e urnas mal testadas, treinamento enganoso à população. E o candidato governista ao executivo do distrito federal já pegou o bonde, pedindo ao TSE a eliminação do voto impresso, sob o pretexto de que "dificulta" a votação. Só consigo entender a lógica desta justificativa a partir de uma posição de defesa da ocultação dos mecanismos de fruade. A impressão de voto é perigosa para as fraudes pois, mesmo que os 3% das urnas sorteadas para fiscalização sejam avisadas para não fraudarem, até mesmo por controle remoto, as outras estarão deixando vestígios do crime nos sacos de plástico acoplados à impressora, mesmo tendo sido escolhida uma tinta que se apaga em seis meses para imprimir os votos.

SZ: 10. Quais as suas sugestões para aperfeiçoar o sistema?
A principal é a de que se leve a sério o voto impresso como medida fiscalizatória. Os partidos deveriam poder escolher a amostra das sessões eleitorais que terão apuração paralela através dos votos impressos, após a eleição, e com os votos impressos tabulados em planilhas manuais conferindo os boletins eletronicos totalizados. Esta seriedade foi descartada pelo presidente do TSE, quem pediu aos congressistas que antecipassem o sorteio das urnas a serem submetidas a tal processo fiscalizatório, na lei que introduziu a medida, na véspera da votação desta lei no final do ano passado, no que foi atendido, e quem determinou que a tabulação desta recontagem sorteada na vespera fosse feita por uma outra urna eletrônica.

Outra medida sugerida foi um protocolo de verificação cruzada de integridade dos programas, para permitir que os partidos possam detectar programas adulterados nas urnas antes que a eleição se inicie, com risco de falsas incriminações controlado pela Justiça Eleitoral. Esta sugestão foi submetida ao TSE, enquanto participei, como voluntário, da equipe de técnicos que iria fiscalizar a eleição de 2002 para um dos partidos. Mas não houve resposta alguma à sugestão.

SZ: 11. A partir desse quadro preocupante, valeu  a pena a instituição do voto eletrônico?
A informatica, como toda tecnologia, é uma arma. Atira para onde é apontada. Acho que a sociedade não estava preparada para esta informatização, pois não consegue perceber a dramática importância que nela passa a ter a terceira perna do tripé, a da fiscalização. É a perna naturalmente prejudicada, pois é mais difícil vigiar bits do que papel e lona. A sociedade parece também ignorar as consequências de sua própria ignorância, ofuscada que está pelo deslumbramento com a teconologia-enquanto-panacéia.

Vivemos no mundo da gratificação instantânea. Parece que a grande maioria prefere um sistema eleitoral que ofereça resultados instantâneos, qualquer que seja o preço a ser pago em termos de perda de capacidade fiscalizatória. Como dizem os americanos, o gato já saiu do saco e não dá mais para pô-lo de volta. As conquistas da cidadania foram dilapidadas, os que prezam essas conquistas precisam reconstruí-las, mas ninguém parece saber como. Ninguém que concentra poder irá cedê-lo voluntariamente. É mais cômodo descartar os alertas de especialistas que prezam a cidadania como sendo elocubração paranóica ou pavonice, do que analisar friamente sua linha de raciocínio. Acho que estamos apenas começando a perceber as consequências disto tudo, apesar da pedra já ter sido cantada em várias obras de ficção futurista, desde Kafka até George Lucas e Steven Spielberg, passando por George Orwell. Além dos -- por que não dizer -- escatólogos e profetas.

SZ: 12. Por que em outros países (com capacidade tecnológica instalada superior ao Brasil) a eleição ainda se faz em processos antigos? Foi pura ousadia brasileira ou nesse aspecto o Brasil foi favorecido por ter uma legislação única para todo o País e dispor de um órgão centralizador da justiça eleitoral (o TSE)?
Porque os outros países não caíram no canto da sereia da tecnologia-enquanto-panacéia. Pelo menos por enquanto, preferem não amputar a terceira perna do tripé da democracia, qual seja, a capacidade da sociedade fiscalizar seus processos reprentativos. Acho que o Brasil foi vítima da ousadia de uns conbinada à ingenuidade e passividade de outros. Como não posso me livrar da pecha de paranóico, vou fazer uso dela em sua pergunta. Acho que estamos diante de sinais condizentes com a hipótese do Brasil estar servindo de boi-de-piranha para o teste piloto de um sistema de representação política que pode ser controlado de dentro, por quem detem as chaves dos grandes cofres, com o qual o processo eleitoral pode sofrer alguns "ajustes" de resultados, quando se fizer necessário. Tudo muito bem negociado.

Quem sabe, se colar, o sistema será exportado para o resto do terceiro mundo. É intrigante o fato de que todas as empresas atualmente envolvidas no sistema eleitoral brasileiro, como a Módulo, a Unisys, a TEGRA, etc, são controladas por grandes bancos americanos. E que, em nenhum outro país democrático moderno de que se tem notícia, uma mesma instituição normatiza, executa e julga o processo eleitoral. Nos momentos em que um outro poder constituído deveria intervir, como o legislativo na tramitação da lei 10408/02, este poder sofreu a interferência política daquele poder absolutista, para que se esvaziassem as tentativas de reequilíbrio do tripé da democracia.

SZ: 13. Há quem diga que o senhor tem motivações políticas ao fazer essas denúncias. Como o senhor responde a isso?
Não sou nem nunca fui filiado a qualquer instituição política. Nunca recebi um centavo sequer de qualquer delas. Meus alertas se inserem no âmbito da missão do cargo público que exerço, que é a docência no ensino superior, missão esta que é a de disseminar o conhecimento científico e cultural na comunidade a que servimos, inclusive fora da sala de aula. A cidadania é um conceito que abarca os valores humanistas justificadores desta missão. Nossa sociedade está sendo forçada a aceitar a informática como arma de controle do poder, de uma forma que leva à desintegração da cidadania e desses valores humanistas. Se a luta pela cidadania for uma espécie de motivação política, aceito com orgulho esta imputação. Este tipo de ação é que deveria constituir a verdadeira política, e creio ser este o motivo de vermos surgirem, na sociedade contemporânea, as ONGs. Se houvesse uma ONG para denunciar tentativas de falsificação da democracia, eu me filiaria. Aos partidos que aceitam o jogo atual, nunca.