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Software Livre como política pública

Entrevista à Jornalista Lúcia Reggiani,
para matéria publicada na revista INFO

Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
12 de Dezembro de 2005


Lúcia Reggiani: 1- Qual a importância do software livre como instrumento de pesquisa nas universidades brasileiras?

Pedro Rezende: No processo de evolução das tecnologias da informação e comunicação, regimes produtivos têm exibido ciclos de eficácia ou de predominância bastante regulares. Atualmente, o crescimento da conectividade e da informatização marca a fronteira de eficiência socio-econômica entre os regimes livre / open source, e o proprietário.

O regime proprietário é assim chamado por tratar cada cópia de um bem simbólico, como por exemplo software, como propriedade do fornecedor, e, nos seus modelos de desenvolvimento e licenciamento, sua matriz geradora, que no caso do software é o código fonte, como segredo de negócio ou sob rígido controle do conhecimento de sua composição ou funcionamento interno.

O regime livre ou de código aberto é assim chamado por tratar o licenciamento de cada cópia como ato benéfico, e sua matriz geradora como linguagem técnica, acessível à competência de potenciais interessados, concentrando seus modelos negociais em serviços. Embora o conhecimento seja vantagem competitiva em ambos os regimes, no segundo ele é livre, e esta liberdade, fundamental.

Software livre é, portanto, o resultado de modelos de desenvolvimento e licenciamento que tratam o código-fonte antes como linguagem técnica disponível a interessados. Sendo assim, permite a pesquisadores o acesso irrestrito ao conhecimento de como funcionam os programas que constituem a base sobre a qual inovações podem ser experimentadas.

A relevância dessa liberdade é ilustrada em meu caso. Sou professor de ciência da computação numa universidade pública, e foi o software livre que me permitiu trabalhar, com o hardware disponível e sem necessidade de nenhuma verba de pesquisa específica, durante anos a fio na orientação de projetos de gradução pioneiros.

Em 1995, quando o uso comercial da Internet ainda engatinhava, a idéia de filtragem de pacotes TCP/IP, hoje materializada na necessidade de firewalls como ferramenta de proteção digital, era apenas uma proposta acadêmica, dois alunos se dispuseram a desbravá-la experimentalmente, em um projeto final de graduação.

Esta exploração só era possível, com o hardware da época, através do código fonte de um sistema operacional livremente disponível. Os alunos trabalharam com o sistema BSD e implementaram o que veio a ser o primeiro firewall desenvolvido no Brasil. A partir daí constituiram a empresa Aker, que hoje tem negócios em dezenas de países.

Depois, em 1997, interesse e processo semelhantes ocorreram, pelo robustecimento da criptogria dos navegadores web, então exportados com restrições impostas pela legislação norte-americana. Depois outros projetos, eventualmente premiados, como por exemplo, o de um sistema de editoração personalizada com identificação de exemplar por marca d'água digital, em 1999. A idéia era permitir ao autor identificar a origem de cópias impressas de sua obra distribuída em mídia eletrônica.

Na ocasião, as tecnologias DRM (digital rights management) ainda engatinhavam, enquanto a idéia do projeto demandava um alto grau de interoperabilidade entre aplicações editoriais e impressoras gráficas, além de indepedência de padrões e plataformas para o establecimento de canais criptográficos.

Atualmente, estou interessado em sistemas de controle de acesso baseado em atributos (role-based). Gostaria de contribuir para extender um sistema livre chamado MACA, desenvolvido como tese de doutorado na USP para controle de prontuários médicos, adaptando-o, por exemplo, para o controle de processos na informatização do judiciário. Mas não sei se terei tempo e alunos com competencia e interesse suficientes.

LR: 2- Quais os projetos envolvendo SL gerados no ambiente acadêmico (prontos e em andamento) que o sr. considera mais criativos e relevantes?

PR: Certamente a Internet, a grande prova de que o regime livre e de código aberto é viável e sustentável.

A Internet nada mais é do que o uso de um conjunto de protocolos abertos de comunicação entre redes de computadores, estabelecidos colaborativamente e sem restrições de propriedade intelectual, guiados por critérios de mérito e de eficiência técnica e implementados inicialmente através de softwares livres. Servidores web, servidores de nomes de domínio e servidores de email livres, por exemplo, ainda predominam.

LR: 3- Como o sr. vê as parcerias de empresas como IBM e HP em projetosde SL nas universidades? todas as partes ganham?

PR: Vejo com bons olhos, pois todas as partes podem ganhar. O financiador pode direcionar o desenvolvimento para atender seus interesses estratégicos, quem participa como desenvolvedor se apropria do conhecimento dos padrões e técnicas envolvidos, e qualquer interessado pode se beneficiar dos códigos resultantes. Dentre os beneficiados os desenvolvedores se destacam, pela vantagem competitiva na prestação de serviços em torno dos softwares produzidos, já que são os que melhor dominam o conhecimento de sua funcionalidade.

LR: 4- A formação de mão-de-obra especializada em SL no país é suficiente e adequada à demanda?

PR: É insuficiente, por incipiente. O estudo recentemente concluido pelo Softex para o Ministério da Ciência e Tecnologia detectou esta carência.  Há duas maneiras de ver esta situação. Ou como carência em si, ou como sinal de que o mercado está aquecido nesta área. Enquanto, por um lado, esta carência hora encarece serviços e suporte em softwares livres relativo aos proprietários, por outro lado representa vantagens aos que se especializam.

LR: 5- Em que medida o projeto de SL do governo federal impacta o mercado e a comunidade open source?

PR: Nem todo segmento no mercado de softwares é adequado a projetos open source, principalmente por questões de escala. Alguns tipos de aplicação, devido a sua especificidade, são melhor atendidos pelo desenvolvimento privado, também chamado in-house, onde o software produzido não é livre nem proprietário, pois o empreendedor é o própŕio usuário.

Para que um projeto no modelo open source tenha sucesso sustentável, é preciso massa crítica de desenvolvedores e usuários interessados. Mas há dois pontos a se destacar: quanto mais código livre disponível existir, maior a gama de aplicações que, em tese, podem sustentar projetos open source, e menor a eficácia do controle de acesso ao conhecimento, necessária ao sucesso negocial de softwares proprietários, de funcionalidade equivalente.

LR: 6- O país enfrenta algum tipo de problema diplomático por conta da opção oficial pelo SL?

PR: Nos vinte anos em que predominou, o modelo proprietário amealhou bastante poder, através da tendência monopolizante, que o efeito-rede induz nos mercados de TI, e da dependência a padrões proprietários, que sua lógica negocial gera para os consumidores. É natural que os agentes em posições monopolistas no mercado, e seus próceres na esfera política, resistam à evolução natural dos regimes produtivos nas TIC, rumo à eficiência sócio-econômica, pela erosão que esse rumo causa no poder que amealharam durante o ciclo de eficácia do regime proprietário.

LR: 7- Como a questão internacional está sendo encaminhada? qual é a grande discussão?

PR: A questão internacional está sendo encaminhada com muita censura, onde os interesses monopolistas tentam a todo custo suprimir a verdadeira discussão sobre o que está em jogo. Isso ficou evidente na forma em que foram encaminhadas as negociações da cúpula mundial da sociedade da informação.

LR: 8- Quais as perspectivas de utilização do SL no país? quais as limitações à expansão do uso?

PR: Na minha opinião, a questão do uso de software livre pode ser vista como tendencia evolutiva das TIC rumo à eficácia técnica, que, dentre outros benefícios, evita ter de se reiventar várias vezes a roda. Mas um rumo obstruído por conflitos de interesse, de agentes monopolistas que promovem a grilagem no mundo das idéias para tentar dar sobrevida aos modelos negociais que lhe amealharam poder. Modelos esses que se tornam cada vez menos eficientes na medida em que a sociedade se torna cada vez mais conectada e informatizada.

Nesse processo, modelos negociais que tratam bens simbólicos como bens materiais tendem a se tornar cada vez mais tirânicos em busca da sobrevivência.