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As trapalhadas da apuração no DF

Entrevista ao Jornalista Rafael Paixão,
sobre o sistema eleitoral brasileiro em 2002.
Publicada no Jornal "Hoje em Dia" em 27/10/02

Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
24 de Outubro de 2002


Rafael Paixão 1) Quais foram os maiores problemas verificados na votação eletrônica?
Pedro Rezende: Ao eleitor parece que as longas filas, a demora da votação e os enguiços da urna eletrônica foram os maiores problemas. Entretanto, do meu ponto de vista o maior problema foi o boicote sistemático da justiça eleitoral ao direito de fiscalização dos partidos. Veja, por exemplo, o que aconteceu no primeiro turno na apuração presidencial. Após quatro horas de totalização aparece no telão do TSE uma votação de 41 mil votos negativos para Lula. Não havia nenhum fiscal de partido lá dentro, porque foram impedidos de entrar. Antes não havia sido permitido aos fiscais de partido verificarem a integridade do programa sendo usado para totalizar votos, ao arrepio do artigo 66 da lei 9504/97. Desliga-se tudo, dez minutos depois religa-se, com explicações incompreensíveis para mim. O sinal negativo não apareceu lá boiando, pois os votos de Lula já passavam, em muito, dos 41 mil. Isto só poderia acontecer por uma subtração que "errou a mão" ou por estouro de campo. Mas um estouro de campo teria acontecido antes, tanto na apuração como em testes, como explico em meu site. E subtração de votos, até onde sei, é fraude, não importa se através de cédulas de papel ou de bits. O que fazer? Se recorremos à justiça eleitoral para impugnar seus próprios atos, qual será a chance de sermos levados a sério?
RP: 2) O senhor diz que o processo eleitoral é um tripé: votação, apuração e fiscalização. A seu ver, a fiscalização é prejudicada pela urna eletrônica. Por quê? Os partidos estão preparados para fiscalizar o sistema?
PR:Primeiro, porque é muito mais difícil vigiar bits do que papel e lona. Segundo, porque o fascínio atual com a tecnologia tem dado a alguns poderes constituidos a oportunidade de ir eliminando os processos fiscalizatórios que a sociedade deveria manter sobre eles. A crença de que um sistema eleitoral informatizado só pode ser fiscalizado por especialistas é equivocada e altamente perniciosa. E o mais perigoso nisso tudo é a aliança entre esses poderes e a mídia com eles comprometida, para reforçarem esta lenda urbana. O eleitor não deveria nunca aceitar um mecanismo eleitoral que não pudesse ser fiscalizado por um cidadão comum. Por isso o poder legislativo instituiu o voto impresso como mecanismo fiscalizatório.
RP: 3) O governador Joaquim Roriz pediu ao TSE para acabar com o voto impresso no 2º turno, porque ele estaria prejudicando a votação. O senhor concorda? As letras do voto impresso não eram muito pequenas?
PR:O que dificultou a votação em Brasília não foi o voto impresso, foi o descaso dos organizadores com poucas urnas para a quantidade de votantes, treinamento enganoso, e insuficiências no desenvolvimento dos programas e dos testes do equipamento. Seria proposital este descaso, para se fazer do voto impresso o bode expiatório?

Todas as formas de fiscalização eletrônica são estremamente frágeis, facilmente fraudáveis por quem as manipula. Este fato torna qualquer sistema eleitoral totalmente informatizado completamente inseguro, pois na prática será infiscalizável. Crimes digitais são muito difíceis de serem comprovados em juízo. Não importa o que diga a propaganda oficial, estes são fatos irrefutáveis do mundo dos bits, fartamente amparados em estatísticas da forênsica. Imagine-se agora um sistema totalmente informatizado, no qual o réu em potencial -- o operador do sistema -- seja sempre o juiz de sua própria causa. Num contexto assim, só consigo entender uma lógica possível por trás das tentativas de desmoralização da decisão soberana do poder legislativo, que instituiu esta única medida fiscalizatória que não depende de tecnologia digital. Obter aval da sociedade para proteção aos mecanismos internos de fraude.

RP: 4) O fato de a apuração não ser feita por técnicos em informática prejudica o processo?
PR:Quem faz a apuração são programas. O nível de conhecimento técnico de quem opera os programas não deveria fazer diferença em um sistema bem projetado e seguro. Por outro lado, em um sistema bem arquitetado e seguro, a fiscalização da apuração deveria poder ser feita por qualquer cidadão interessado. Mas nesta eleição não pode ser feita por ninguém.

Para conferir uma totalização secreta e marcada por incidentes estranhos, um fiscal de partido ou um eleitor qualquer precisa conhecer a planilha de totalização. Com as parcelas correspondentes à versão eletronica dos boletins de urna nas linhas da planilha, e a soma de votos dos candidatos por urna ao final de cada coluna. Verifica-se se a soma das colunas está correta, e se as linhas correspondem aos boletins de urna impressos pela urna das sessões correspondentes. Pela lei, um partido ou eleitor tem prazo de 72 horas para fazer impugnar o resultado, contados a partir da sua proclamação, caso encontre algum erro nesta conferência. Teria também que convencer um juiz que o erro está na planilha, e não na sua verificação.

Mas se os TREs só divulgam esta planilha via CD-ROM três dias depois de anunciado o resultado, como aconteceu este ano no Rio e em São Paulo, está assim bloqueando o direito dos partidos fiscalizarem a totalização. O bloqueio é proposital, pois estes dados já estão nos computadores onde os tribunais calculam os totais -- que são as somas das colunas da planilha completa -- e de onde divulgam pela internet apenas esses totais. Por que não divulgam de lá também a planilha completa aos partidos, para que a sociedade possa fiscalizar a eleição? Dizer que não o fazem "por motivo de segurança" é sofismar, pois a segurança do eleitor está na fiscalização, e não num painel de totalização secreta que mostra votos negativos.

RP: 5) O senhor considera que a população brasileira está preparada para a urna eletrônica, levando em conta que muitos eleitores não têm contato com a tecnologia (várias pessoas, por exemplo, nunca operaram caixa eletrônico de banco)?
PR:O despreparo do eleitor pode ser vencido com mais empenho dos organizadores no treinamento prévio. A mentalidade, entretanto, de que se trata de um bicho de sete cabeças, que só os técnicos entendem, é uma barreira muito mais séria. Veja, por exemplo, a indiferença com que o cidadão aceita o cerceamento do seu direito de fiscalizar o processo.

Achar, por exemplo, que os partidos podem conferir os dados da apuração fornecidos pelo TSE, parece brincadeira de mágico. Mesmo não tendo mais prazo para impugnar o resultado quando são divulgadas as planilhas de totalização, se um partido ou eleitor quiser verificar a correção desta totalização, só para poder denunciar caso encontre erros, ele terá que buscar boletins de urna impressos pela urna no momento de encerramento da votação.

É mesmo acreditando, é difícil fazer este levantamento porque os partidos ficam desmobilizados por não terem como impugnar ou recorrer do resultado. E mesmo que todos os mesários entreguem boletins de urna aos fiscais, não se tem notícia de que eles autenticam essas cópias, assinando-as. Se um partido quiser denunciar a diferença entre um boletim impresso e a correspondente parcela da planilha eletrônica, e se o cartório eleitoral apresentar uma outra cópia impressa de boletim coincidindo com a planilha totalizada, fica-se, novamente, com a palavra de um contra a do outro, e a justiça obviamente irá acreditar na sua. Como saber, então, qual versão impressa do boletim seria a verdadeira, se são apenas tiras de papel impresso, facilmente forjáveis? Será impossível sem a garantia do voto individual impresso, medida fiscalizatória adotada pelo poder legislativo mas que a justiça eleitoral, pelo menos no TSE e no TRE-DF, vem tentando desmoralizar.

RP: 6) Como o senhor analisa o fato de que foram descobertos 12.381 votos no DF > que não haviam sido contados até sexta-feira passada?
PR: Parte devido à fiscalização deficiente, exemplificado pela resposta anterior, parte devido a falhas e vulnerabilidades na organização do processo. E ainda temos que aturar o discurso vazio de oficiais da justiça eleitoral, de que o sistema foi provado ser 100% seguro robusto e confiável, pois nenhuma fraude foi comprovada. Como diz o professor Stolfi, dizer que uma porta da cadeia dando para uma viela sem trancas constitui uma vulnerabilidade, não obriga quem diz a provar isso com uma foto de um preso fugindo por ela. Ter que produzir prova contra quem julga é um jogo de cartas marcadas. Nosso tribunal eleitoral pode ser eficaz para reintroduzir a censura, mas não para julgar a si mesmo. Acho este tipo de discurso uma verdadeira afronta à cidadania, e que foi por este tipo de coisa que aconteceu a revolução de 30.
RP: 7) Quais suas sugestões para aperfeiçoar o sistema?
PR: Bom senso e respeito à lei. O mais importante, a meu ver, é o eleitor exigir do Estado que a medida fiscalizatória do voto impresso seja levada a sério. Por que a bancada governista do Senado aprovou emenda na lei eleitoral, sugerida pelo presidente do TSE, antecipando para a véspera da eleição o sorteio das urnas que serão fiscalizadas através da conferência dos votos impressos? Sem nunca ter dado uma explicação séria para sua adoção? Os partidos deveriam ter o direito de escolher, depois da votação, quais urnas devam ser conferidas através de contagem manual dos votos impressos. Mas a justiça eleitoral deturpou completamente a capacidade fiscalizatória da sociedade pretendida pelo projeto original através da medida do voto impresso.

Outra medida que sugeri foi um protocolo de verificação cruzada de integridade dos programas, para permitir que os partidos possam detectar programas adulterados nas urnas antes que a eleição se inicie, com risco de falsas incriminações controlado pela Justiça Eleitoral. Esta sugestão foi submetida ao TSE, enquanto participei, como voluntário, da equipe de técnicos que iria fiscalizar a eleição de 2002 para um dos partidos. Mas não houve resposta alguma à sugestão.

RP: 8) O Brasil está certo em usar a votação eletrônica em 100% das seções, já que é o único país do mundo a fazer isso?
PR: Por que é o único? Acho que porque os outros países não caíram no canto da sereia da tecnologia-enquanto-panacéia. Pelo menos por enquanto, preferem não amputar a terceira perna do tripé da democracia, qual seja, a capacidade da sociedade fiscalizar seus processos reprentativos. Acho que o Brasil foi vítima da ousadia de uns conbinada à ingenuidade e passividade de outros. Como não posso me livrar da pecha de paranóico,  vou fazer uso dela em sua pergunta. Acho que estamos diante de sinais condizentes com a hipótese do Brasil estar servindo de boi-de-piranha para o teste piloto de um sistema de representação política que pode ser controlado de dentro, por quem detem as chaves dos grandes cofres, com o qual o processo eleitoral pode sofrer alguns "ajustes" de resultados, quando se fizer necessário. Tudo muito bem negociado.

     Quem sabe, se colar, o sistema será exportado para o resto do terceiro mundo. É intrigante o fato de que todas as empresas atualmente envolvidas no sistema eleitoral brasileiro, como a Módulo, a TEGRA, etc, são controladas por grandes bancos americanos. E que, em nenhum outro país democrático moderno de que se tem notícia, uma mesma instituição normatiza, executa e julga o processo eleitoral. Nos momentos em que um outro poder constituído deveria intervir, como o legislativo na tramitação da lei 10408/02, este poder sofreu a interferência política daquele poder absolutista, para que se esvaziassem as tentativas de reequilíbrio do tripé da democracia.