Como anda o AI-5 Digital?
Entrevista à Jornalista Aline Toledo
Causa Operária
Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
13 de agosto de 2010
Aline Toledo: 1 - O que é o Conselho da Free Software Foundation Latin America e o que é realizado por ele?
Pedro Rezende: A Free Software Foundation Latin America (FSFLA) é uma organização formada por pessoas que se uniram para promover e defender o uso e desenvolvimento de software livre, e o direito das pessoas de usar, estudar, copiar, modificar e redistribuir software cujos autores querem-no livre.
Seus membros formam um Conselho que é responsável pelas ações e posições da FSFLA, baseadas na missão e objetivos expressos em sua constituição. Para isso, o Conselho mantém contato com comunidades afins, dentre as quais a de seus observadores.
AT: 2 - Pode falar sobre a situação do projeto de Lei de censura na internet do senador Azeredo?
PR: Trata-se do Projeto de Lei 84/99, o qual ganhou esse apelido que os autores não gostam. Outro apelido que eles gostam ainda menos é "AI-5 Digital". Isso pode ser um sinal das possíveis razões para o projeto estar tramitando por tanto tempo, há mais de dez anos. Noutras palavras, o projeto é muito amplo e vago em suas definições de novas modalidades de crime, o que significa perigo: mais margem para a politização da justiça, e portanto, de mais politicagem jurídica.
O projeto foi modificado pelo Senado, e lá aprovado em 2008 de maneira muito estranha para algo de sua envergadura, razão pela qual, creio eu, ele estancou quando voltou â Câmara para aprovação final, apesar do regime de urgência. O projeto tramita atualmente em tres comissões da Câmara, aguardando parecer em duas delas. Na outra, na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado (CSPCCO), ele acaba de receber parecer favorável.
Para virar lei ele precisa ser aprovado nessas tres comissões e depois no plenário. A tramitação desse projeto pode ser acompanhada em http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=15028
AT: 3 - Em artigo sobre o tema, o senhor afirma “Eu transito pelo Congresso como cidadão e ativista, tampouco tenho filiação partidária, e em mais de dez anos lá defendendo o software livre e causas correlatas nunca vi tanta baixaria na tramitação de um projeto de lei quanto vi nesta legislatura do senado, após a aglutinação dos três PLs em substitutivo sob relatoria do senador Azeredo”. Pode citar alguns fatos que presenciou?
PR: Alguns dos fatos que narro em seguida eu presenciei, outros eu acompanhei, na ocasião, em veículos da mídia especializada.
Quando o citado projeto foi aprovado na Câmara em 2003, passou a tramitar no senado. No senado ele foi juntado a outros dois projetos lá originados, sob o número PLS 89/2003. Desta tramitação surgiu em 2006 um substitutivo, cujo relator foi o senador Azeredo. No início de 2006 o relator havia submetido, como é de praxe, sua proposta de substitutivo à Consultoria especializada do Senado. A Consultoria do Senado emitiu parecer que revisava tal proposta, visando adequa-la à Constituição. Esse parecer foi encaminhado para a primeira votação destinada a avaliar o mérito da proposta, na Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia, em pauta da reunião de 23 de maio de 2006.
Quando a matéria entrou em deliberação nesta Comissão, o relator anunciou que poria em votação a versão do substitutivo que ele havia enviado à Consultoria, e não a versão revisada pelo parecer que estava em pauta, da qual os votantes teriam tomado conhecimento. Diante disso um dos senadores pediu vistas e a votação foi adiada, mas a versão original do relator acabou depois lá aprovada, em 20/06/06, desprezado o parecer elaborado pela Consultoria do Senado.
Depois, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), houve duas tentativas de se colocar em votação alguma versão deste substitutivo sem nenhuma audiência pública para debatê-la. A primeira, em novembro de 2006, frustrou-se devido a um grande clamor na mídia. Esse clamor talvez tenha ocorrido devido ao fato dos autores do substitutivo não terem dado a devida atenção aos provedores de acesso e conteúdo na Internet, dos quais os maiores são controlados por impérios midiáticos, em face dos novos papéis a eles reservados na proposta.
A segunda tentativa, em maio de 2007, foi com uma versão do substitutivo até então desconhecida do público e da quase totalidade dos votantes da CCJ. E ainda, com entidades civis interessadas em debater publicamente a proposta, tais como o Centro de Tecnologia e Sociedade da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas e o Instituto Brasileiro de Direito e Política de Informática, alijadas de maneira desdenhosa da versão pautada e do debate legislativo.
Na hora da votação houve um pedido relâmpago de vistas, que resultou em audiência pública, cuja lista de convidados para debatê-lo se tornou então objeto de disputa política. Houve veto aos interessados que já haviam criticado a proposta em seminário organizado pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara, até que se chegou a um acordo permitindo que a lista incluísse um só daqueles críticos, que é autoridade judicial. A audiência foi então realizada, mas de forma curiosa.
Essa audiência na CCJ aguardou cerca de dois meses por uma definição de data, e foi marcada com menos de 24 horas de antecedência. Pessoas na lista foram convidadas por telefone, em 3/7/07, para comparecerem à audiência no dia seguinte às 11 horas. Foram assim contactadas logo que uma delas, a Subprocuradora-Geral da República e Coordenadora de Defesa dos Direitos Humanos e do Cidadão, que havia opinado sobre a inconstitucionalidade de vários dispositivos da proposta no seminário na Câmara, saiu de férias.
Mesmo assim, graças à intervenção de uma senadora, a preponderância de interesses de instituições financeiras na proposta, e a "carona" que a proposta buscava pegar em temas de forte apelo popular, como o combate à pedofilia, puderam ali finalmente ser expostas nos anais do Senado, por um crítico improvisado fora do script. O que causou alguns senadores a se aproveitarem da oportunidade para conduzir "o debate" para suas comissões.
Ao chegar à Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) a proposta de substitutivo já haviam passado por oito versões, algumas só vindo a público na CCJ, onde entravam e saiam de pauta sorrateiramente, depois de desatualizadas. Na CAE a proposta sofreu cerca de vinte e três alterações, sugeridas pelo Ministério da Justiça, em tramitação também sorrateira: aprovadas numa votação que entrou em pauta no último minuto, com os pertinazes críticos antes aplacados em pseudo-negociações indiretas.
Da CAE a nova proposta voltou à CCJ, onde foi aprovada em tempo recorde (oito dias), extra-pauta, sem leitura e sem discussão. Depois, no plenário do Senado, na madrugada de 10 de julho ela foi aprovada também extra-pauta, também sem discussão, com leitura apenas de pareceres. Ato contínuo, em votação suplementar, a nova proposta recebeu dez emendas de plenário, também aprovadas sem discussão. Mas com a presença teatral no plenário de dois convidados inusitados, os pais de uma jovem que havia sido estrupada e esquartejada e tido as fotos da cena pericial vazadas na Internet.
AT: 4 - Em sua opinião, em que implica este projeto?
PR: Observando como evolui a iniciativa para negociação de um novo tratado internacional, chamado ACTA, esse projeto me parece apenas uma mera peça local no tabuleiro de uma nova ordem geopolítica global em gestação.
A iniciativa do ACTA é sucedânea da convenção de Budapeste sobre cibercrimes, da qual o AI-5 Digital é cria. Ela revela como os maiores concentradores da velha economia estão buscando novas formas de controle eficaz dos meios de produção, a pretexto de se proteger o que é efêmero e fugaz. Na nova economia, onde os bens que agregam maior valor de uso são imateriais e muitos vezes não-rivais, as velhas formas de controle perdem eficácia, e o controle dos fluxos informacionais se torna estratégico.
AT: 5 - O PL Azeredo pretende mudar, os Códigos Civil, Penal e Militar junto com os correspondentes Códigos de Processo? Pode explicar?
PR: É o que se pode ler na introdução da proposta que está para ser votada na Câmara dos Deṕutados. O projeto pretende mudar o ordenamento jurídico Brasileiro acrescentando alguns artigos e modificando outros nos códigos citados.
AT: 6 - Qual a relação com os software livres? Em que implica?
PR: O PL 84/99 altera o Código Penal especificando “crimes contra a segurnça dos sistemas informatizados”. Sob esse título o artigo 285-A, por exemplo, tipifica o “crime de acesso não autorizado à rede de computadores”, e o 285-B, “crime de obtenção, transferência ou fornecimento não autorizado de dado ou informação”.
Na prática, como os crimes que se quer combater com essa lei já estão quase todos tipificados no ordenamento vigente, o único efeito prático que vejo nessa forma de criminalização atacadista é a banalização dos critérios de admissibilidade de prova onde a ação questionável esteja sendo intermediada por TICs.
O licenciamento permissivo que caracteriza Software Livre pressupõe autorização tácita do autor, a quem tenha uma cópia do software, para poder processar dados ou informações livremente. Porém, no contexto de ampla criminalizção que o 285-A e B instituem, este direito pode ser legalmente sequestrado por praticamente qualquer prestador de serviço agregado, com os quais softwares normalmente operam. Como por exemplo, por um fornecedor de hardware ou sistema operacional ou provedor de acesso à internet. No contexto de outros dispositivos da mesma proposta, esses últimos também ganham poder de polícia privada.
Essa legitimação de sequestros em massa de direitos individuais transforma as vantagens sociais do software livre em novos riscos para quem os utiliza, deixando o cidadão ainda mais exposto ao poder e aos abusos de fornecedores monopolistas de TI. O irônico, ou tragico, nisso tudo é que a internet só veio a acontecer, e a funcionar, com base em padrões e formatos abertos implementados por softwares livres.
Sobre o que isso implica, posso apenas especular. Isso parece convergir para uma nova ordem socio-política, totalitarista e global, de há muito profetizada. Posso também imaginar o porquê disso, do ângulo técnico. Numa sociedade informatizada, TICs em geral, e software em particular, são instrumentos essenciais ao exercício do poder, no sentido de poder fazer ou de poder controlar. Nelas, softwares atuam como próteses do pensamento. No virtual, portanto, quem faz o software legisla e executa na esfera do seu uso.
AT: 7 - Quais os interesses que estão por trás deste projeto do Azeredo?
PR: Quais estão, eu não saberia afirmar. Quais podem estar, em minha opinião, escrevi a respeito em várias ocasiões, em artigos coletados em http://www.pedro.jmrezende.com.br/trabs/crimesdigitais.html
AT: 8 - Em quais projetos o senhor está envolvido hoje e o que poderia mudar no Brasil?
PR: Não estou envolvido diretamente em nenhum, apenas procuro acompanhar, com um olhar crítico da cristandade, as interfaces humanas entre as TIC e os processos sociais e políticos.