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O Brasil caiu no ranking da liberdade na Internet. E daí?

Entrevista a Márcio Rocha,
para matéria na TV Rede CNT

Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
23 de janeiro de 2017



Márcio Rocha: 1. Um relatório publicado recentemente foi tema de notícias na imprensa. Sua repercussão motiva esta nossa entrevista, para uma matéria que pretendemos gravar a respeito. Começamos observando que, conforme uma dessas notícias, o Brasil caiu no ranking de liberdade na internet. O senhor concorda com essa classificação?

Pedro Rezende: Não me cabe concordar ou discordar, apenas analisar e interpretar. Esses rankings aparecem na mídia como conclusões de relatórios anuais produzidos por uma organização chamada Freedom House (FH), e essa alegada queda do Brasil no ranking se refere aos relatórios de 2015 e 2016, este recém divulgado. Para isso, devemos começar pela metodologia. O método que a FH utiliza para produzir esses relatórios consiste em se agregar, sobre escala comum, medidas anuais aproximadas para critérios que ela escolhe como se fossem componentes significativos, uniformes e mensuráveis, de um conceito e de um fenômeno difíceis de compreender e até mesmo de definir, que são a liberdade e a internet.

Nesse tipo de escolha de critérios e medidas, as inevitáveis subjetividades e imprecisões ampliam e propagam efeitos quando as mesmas são atribuídas de forma aleatória e indiscriminada por país, para serem agregadas em tabelas e gráficos comparativos; o conceito de liberdade é invariavelmente relativo a um denominador cultural comum a cada país. E como não há liberdade sem correspondente responsabilidade -- as que pretendem não tê-las sendo outra coisa, chamada libertinagem, a qual não deve ser confundida com liberdade --, esses critérios e medidas deveriam ter um caráter técnico-jurídico local. Que os tornam incomensuráveis pelo fato das normas locais serem distintas e da internet diluir fronteiras entre países, notadamente no que diz respeito às ações restritivas disponíveis, com ou sem responsabilização, aos fornecedores globais de tecnologias e serviços de comunicação digitalmente intermediada, inclusive os de ordem financeira.

Cito um exemplo emblemático das confusões e resultante contrassenso, propositais ou não, que se infiltram nesses relatórios dando-lhes uma cara de "samba do crioulo doido" politizado, ou, em termos da cultura onde a FH tem sede virtual, de fake news. O que mais me chama atenção no relatório 2016, em termos de contrassenso, é o seguinte: os serviços digitais escolhidos para avaliar países são fornecidos por empresas que passaram, via de regra em 2016, a implementar várias dessas ações restritivas, com alcance global, efeito individual de censura e motivações políticas, quase todas sediadas no mesmo país que a FH, país esse que, contudo, não aparece nem na tabela "Internet freedom vs. Press freedom", nem como país que bloqueia conteúdos ou que censura a imprensa, certamente porque aí só foram consideradas formas mais antigas, coletivas ou "oficiais" de censura, as normalmente disponíveis a governos, que não são fornecedores.

Mas, essas velhacas confusões da FH ainda não são o pulo do gato, se tal contrassenso for proposital. E se não o for, velhacas mesmo assim, em vista de recente pesquisa sobre a má imagem dessas empresas em seu esquivo país, onde dentre as dez mais odiadas cinco são fornecedoras de tais serviços. Onde a campeã nesse ranking das odiadas controla várias subsidiárias que difundem fake news literalmente, e a sexta mais odiada é quase sinônimo de rede social, hora empenhada em censurar membros com sua bandeira terceirizada de fake news, e em financiar os relatórios da FH. O pulo do gato? Está na chance de, caso a vítima desse abusável poder de vigilantismo estiver noutro país, isso vir a contar contra o país da vítima, se esta for detida devido a bloqueio por ordem judicial por exemplo, e não contra o pais que sedia fornecedores abusivos, que podem cumprir ou não essas ordens, ou agirem em conluio, inclusive forjando razões.

Diante desta análise contextual, a interpretação que exsuda dos relatórios da FH, e das demais fake news que os tomam por evangelho do progresso cibernético-humanista, é que elas servem ao esquema de operações psicológicas destinadas a legitimar um projeto geopolítico de governo mundial, ou hegemon, cuja emergência requer a deslegitimação, e eventual desintegração, das culturas e Estados-nação que resistem a tal projeto unipolar. Servem qual mão na luva: basta ver a tabela dos países que teriam "caído" no "ranking" em 2016. Estão todos lá: os recém desintegrados, os que resistiam ou que ainda resistem, tendo gravitado em direção ao projeto multipolar alternativo. Esse esquema faz parte do teatro de ciberguerra hora em curso, cujo objetivo é o controle cada vez mais fino e centralizado dos fluxos de informação e de recursos no planeta. Os critérios da FH para avaliação parecem, assim, escolhidos numa conta de chegar.

MR: 2- CO Brasil é uma democracia, mas, segundo o ranking, está no mesmo patamar que países como Nigéria, Angola, Zambia, que são países mais instáveis. O que isso significa?
PR: Começando pelas premissas da pergunta: O Brasil é uma república federativa, organizada em um Estado pretensamente de Direito, no qual cargos de governo em dois dos três poderes são preenchidos por uma forma de democracia representativa. Porém, devido à contínua e crescente influência do poder econômico concentrador sobre ele, tanto sua atual pretensão de ser "de Direito" quanto seu caráter democrático vão se dissipando. Sinal disso está em suas mais recentes "reformas". Além disso, democracia não é nem sinal nem garantia de estabilidade; o Brasil, por exemplo, em menos de 130 anos já passou por seis constituições e duas interrupções do regime democrático, contra uma só ininterrupta de regime imperial, que durou mais da metade disso. A impressão de que o Brasil é mais estável que os citados é relativa, circunstancial, e talvez marcada pelo fato da primeira fase de descolonização ter sido mais recente nesses africanos.

Historicamente, a relação entre democracia e estabilidade política é na verdade inversa à que se imagina de impressões corriqueiras e narrativas ligeiras. As democracias mais longevas não duraram mais que três séculos, ao passo que impérios têm alcançado o dobro e até o triplo disso, como o Romano, o Otomano e o Bizantino. Isso inclui tanto as democracias diretas da Grécia antiga, quanto as representativas modernas e as atuais. A mais badalada talvez não passe de 230 anos, a julgar pelo rumo das turbulências e conflitos causados pela emergência do hegemon. Quanto à estabilidade econômica, se compararmos pela propensão à guerra, os regimes democráticos podem ser piores. Deve haver uma razão para isso, que pode estar na insustentabilidade natural dessa forma de governo. Confundi-la com rótulo para a única forma de governo hoje aceitável, é meme na operação psicológica do politicamente correto, para cooptação ao hegemon.

Portanto, a posição do Brasil no mesmo patamar que a Nigéria, Angola e Zâmbia nesse ranking da FH, a meu ver, não guarda qualquer relação com o regime político, nem com o nível de estabilidade social ou com o índice de desenvolvimento humano atuais dos países citados. Se interpretarmos o real objetivo desses relatórios da forma mais coerente e plausível, como procurei elucidar na resposta anterior, esse emparelhamento significa apenas que os quatro estão a distâncias equivalentes no projeto geopolítico para formação de um governo mundial. Em comum, estão os quatro escalados para recolonização, como zonas de recursos naturais a serem explorados sob controle de concentradores financeiros, se necessário com regime change na guerra híbrida que estamos vivendo para decidir entre o emergente hegemon ou um regime contra-hegemônico multipolar, na qual a ciberguerra e suas operações psicológicas têm seu teatro próprio.

Interpretando assim, uma queda no ranking da FH significa aumento da resistência à cooptação pelo projeto unipolar, e consequentemente, aumento também na chance do país tornar-se alvo de uma revolução colorida, onde o governo a ser reformado ou derrubado vai sendo deslegitimizado por torrentes de fake news a reboque. Noutras palavras, minado na ciberguerra pelo meme do politicamente correto, embarcado numa ideia de "liberdade na internet" moldada por contas de chegar, com critérios "medidos" em relatórios da FH. Para corroborar tal leitura, note que no relatório 2016 os critérios escolhidos para o Brasil, com queda relativa a 2015, foram "medidos" no período de agitação pela derrubada da presidente Dilma; e que no próximo, para os EUA, que estão entrando num período de agitação pela derrubada do presidente Trump, poderá aparecer o efeito orwelliano do 'ministério da verdade' recém criado por Obama para censura em massa.

MR: 3- O Canadá é o país com internet mais livre, segundo o relatório?
PR: Vamos supor que esta observação possa ser deduzida dos gráficos e tabelas desse relatório da FH. Pelo que já interpretei nesta entrevista, podemos inferir o que isto de fato representa. A meu ver, tal dedução é sinal de que, pelos critérios da FH no período analisado, o Canadá restou avaliado como país que melhor cumpriu seu roteiro de adaptação para adesão ao projeto geopolítico unipolar. Tal adesão requer dos países certas mudanças institucionais de transição, rumo a um governo mundial autoritário cuja emergência depende crucialmente da centralização do controle da infraestrutura digital planetária, à guisa de progresso tecnológico. Ao estilo da FH, onde critérios para avaliar "liberdade na internet" localmente são escolhidos aparentemente a esmo ou a dedo, vou escolher uma sequência de passos recentes do governo do Canadá que ilustram sua disposição a esse roteiro de adaptação, e que sustentam esta minha interpretação.

Na primeira semana de 2017, o governo canadense nomeou como ministra das relações exteriores uma burocrata sem experiência diplomática que, desde 2014, está proibida de entrar na Rússia devido à sua intensa e forjada histeria russofóbica. O banimento desta burocrata fez parte das contramedidas às sanções políticas, econômicas e diplomáticas impostas à Federação Russa por membros da União Europeia e da OTAN -- que inclui o Canadá --, em retaliação pela reunificação com a república da Crimeia. Após esta nomeação o governo russo, para manter a liberdade da chancelaria canadense em trabalhar normalmente com seu vizinho do norte, propôs revogar esse banimento em troca da suspensão das sanções canadenses. A proposta foi imediatamente rechaçada pelo governo que a nomeou. O que esta sequência tem a ver com liberdade na internet, e com bizarros critérios da FH para avaliar sua ocorrência localmente em diversos países?

Liberdade é um conceito que extrapola a internet. Que se expressa inclusive na Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU, anterior até mesmo aos computadores programáveis. Uma das suas expressões fundamentais, que certamente diz respeito a iniciativas de se ranquear países, é a autodeterminação dos povos: o direito natural de povos escolherem, sem interferência externa, como formar seus países e se governarem. Diante da iminente ameaça de genocídio por golpistas que tomaram o poder, em fevereiro de 2014, no país formado em 1992 e que desde então o governava, o povo da república da Crimeia escolheu por referendo um mês depois, com 83% de participação e 96% favoráveis, reintegrar-se ao país do qual fez parte de 1873 a 1953, e de onde se origina 58% da sua população. Como um caso parecido, em Kosovo, se adapta ao projeto unipolar, e o da Crimeia, ao multipolar liderado pela Rússia, cada caso é aceito onde cabe.

Entre as sanções impostas à Federação Russa desde então, algumas são especificas contra o povo da Crimeia na Internet. Entre elas, o bloqueio de serviços globais de fornecedores como Google, Apple e operadoras de cartões de crédito, por exemplo. E entre as empresas canadenses envolvidas nessas sanções, há também fornecedoras de tais serviços, como a BlackBerry por exemplo. Porém, a participação do governo canadense nesse ataque à liberdade na Internet para o povo da Crimeia não vale contra o Canadá, na avaliação da FH. Imagino que o pretexto seria um suposto legalismo, visto que os globalistas do projeto unipolar não reconhecem a legalidade dessa reunificação de março de 2014. Por outro lado, a desintegração da antiga União Soviética, que separou temporariamente a Crimeia da Rússia, e que de início parecia um passo à frente no roteiro para formação do hegemon, teve também seu blowback, efeitos adversos a esse roteiro.

Entre os efeitos adversos ao projeto unipolar, a nação russa passa por um reavivamento de suas raízes cristãs, que estiveram sufocadas pelo comunismo ateu do ex-regime desmontado. Esse reavivamento se reflete no ordenamento jurídico, agora da Federação Russa, que passa a criminalizar apologias ao homossexualismo, à pedofilia e ao aborto para menores. Proteção lógica para um país que também sofreu aguda crise demográfica com o colapso do ex-regime, já que LGBTIs tendem a não se reproduzir. Mas aí a utilidade do legalismo para a FH se inverte: o que protege valores morais da maioria, em país que adere o multipolarismo vale contra o próprio: a Rússia "cai" no ranking da FH porque passou a "violar direitos" de LGBTIs na internet. E cai junto na Crimeia para quem se considera russo, mesmo ali vitimado por países que "sobem". A pergunta então se refaz: O Canadá, que prefere as duas liberdades suprimidas, seria o mais livre em que sentido?

MR: 4- Como o Brasil pode chegar a esse patamar?
PR: Cabe saber que patamar é esse, antes de pressupor que seria possível ou desejável ao Brasil alcançá-lo. Cabe aqui, portanto, antes uma leitura crítica do relatório da FH e de seu valor no contexto geopolítico em que vivemos hoje. Assim, considerando a análise oferecida até aqui, convém examinar em mais detalhes os critérios de liberdade na internet praticáveis no Canadá, com uma latitude que contextualize o maniqueísmo desse ranking. Nesses detalhes, entre critérios desprezados pela FH, vemos por exemplo a previsão de prisão e multa para cidadãos que não desbloqueiam seus celulares para a polícia; e vemos o regime de exceção permanente operado com um aparelho de vigilantismo totalitário que se integra, através do programa "cinco olhos", ao núcleo duro da centralização do controle da infraestrutura digital para o projeto unipolar, sob um verniz de legalidade que arremeda o PATRIOT ACT e o tribunal secreto FISA do seu vizinho ao sul.

Nesse tipo de regime orwelliano, replicado também no "olho inicial" em versão turbinada que ganhou o nome de "Snooper's charter", qualquer liberdade na internet se torna seletiva, e seu cerceamento ou bloqueio, socialmente opaco, uma vez que os atingidos ficam virtualmente amordaçados, legalmente impedidos de dizerem sequer do fato de estarem sendo secretamente investigados. Em fase de instabilidade pré-golpista, a versão central desse regime tem mostrado sua utilidade tirânica e subversiva. Então, se considerarmos que esses relatórios da FH tem o sancionado condão de propaganda ideológica em favor do projeto unipolar, sofisticadamente travestida de avaliação tecno-jurídica, a pergunta ganha duas leituras possíveis: uma literal, e outra política. A literal, é como o Brasil pode chegar ao topo em futuros rankings da FH; e a política, é como o Brasil pode ganhar importância geopolítica equivalente à do Canadá no projeto unipolar.

Literalmente: para subirmos ano a ano até o topo no ranking da FH seria necessário, tomando emprestado uma metáfora agrícola para melhor compreensão, a cada ano plantarmos em horta que vai ser regada. A metáfora se explica com o exemplo dos EUA, que "subiu" no ranking em 2016. Para o país onde a FH tem sede, foram desconsideradas as novas formas individuais e "não-oficiais" de censura, e as leis e regulamentos draconianos promulgadas ou emendados durante o período, exceto uma: nesse caso o critério da FH foi considerar apenas um alegado efeito local favorável à liberdade numa dessas normas (FREEDOM ACT), deixando os efeitos desfavoráveis para débito em contas dos demais países. Assim, de todas as novas normas, regulamentos e ações que o Brasil vier a praticar nos próximos anos, teríamos que ver contados apenas aspectos favoráveis. Ou seja, teremos que plantar em horta que vai ser regada pela FH.

Politicamente: se a interpretação que me parece mais coerente e plausível do real objetivo desses relatórios estiver correta, para alcançarmos importância geopolítica que cause nossa horta digitalmente libertária a ser regada ano a ano pela FH, teríamos que estar em posição geopolítica semelhante à do Canadá: Bem alinhado com o projeto unipolar; No núcleo duro da aliança dos cinco olhos; E ainda, situado entre os territórios dos países que lideram os dois projetos geopolíticos em conflito na atual guerra híbrida. A meu ver não basta a primeira condição, para tanto favor nos critérios da FH, o que tornaria impossível a missão de galgar esse patamar. De qualquer forma, poderemos testar esse hipótese no fim do ano, com o relatório 2017, pois a situação política atual do nosso país o alinhou cabalmente ao projeto unipolar, furando a fila do desmonte dos Estados-nação, com a rendição completa aos banqueiros globalistas que a gerenciam.

Mas há outras formas de se medir liberdade na internet. E no mais, só vejo chance de o Brasil galgar significativa importância geopolítica no projeto alternativo. Ou seja, no projeto multipolar, onde a soberania dos Estados-nação não está sendo atacada, e não deve sê-lo ao menos durante sua fase de consolidação, logicamente. Estratégia, significa maximização das opções. A do Brasil vinha considerando manter tal opção aberta, através da aliança dos BRICS. Cujas perspectivas de sucesso, com a atual conjuntura turbulenta, tornaram seus países alvos prioritários para a fila de desmonte no projeto unipolar. Todavia, devo encerrar com uma opinião otimista a longo prazo. Seguindo a escatologia cristã, pelo viés literalista, os globalistas-progressistas prevalecerão só temporariamente contra patriotas-conservadores; até a Segunda Vinda, quando o julgamento das nações inverterá a equação, implementando o Reino do Milênio de Jesus Cristo na Terra.




Coautor entrevistado

Pedro Antonio Dourado de Rezende é professor concursado no Departamento de Ciência da Com­putação da Universidade de Brasília. Advanced to Candidacy a PhD pela Universidade da Cali­fornia em Berkeley. Membro do Conselho do Ins­tituto Brasileiro de Política e Direito de In­formática, ex-membro do Conselho da Fundação Softwa­re Li­vre América Latina, e do Comitê Gestor da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-BR), en­tre junho de 2003 e fevereiro de 2006, como representante da Sociedade Civil. http://www.­pedro.jmrezende.com.br/sd.php

Direitos do Autor

Pedro A D Rezende, 2017: Consoante anuência do entrevistador, esta entrevista é publicada no portal do autor sob a licença disponível em http://creativecommons.org/licenses/by-nc/2.5/br