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Repercussões da Reclamação ao Ministério Público
sobre fraude à Constituição

Entrevista a João Peres,
para matéria na revista "Caros Amigos"

Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
Dezembro de 2015



João Peres: 1. Após as tentativas [mal sucedidas] de supressão dos artigos fraudados na Constituição, o senhor tem esperança de que a situação ainda se reverta?

Pedro Rezende: Penso que as chances de reversão dessa fraude, de supressão do dispositivo constitucional contrabandeado para retirar do controle legislativo o comprometimento endividatório do Estado brasileiro (Art. 166°, § 3°, II, alínea b da Constituição Federal), limitam-se a momentos de rara contingência histórica. Especificamente, entendo que o próximo desses momentos só virá quando a atual ordem financeira mundial, baseada no dólar como reserva de valor, entrar em colapso.

Essa ordem financeira resulta de uma forma de guerra que o financista James Turk chama de modelo bélico dos bancos centrais, e que tem prevalecido nos últimos 500 anos: Concentradores financeiros mais centrais emitem moeda fiat sem lastro cuja demanda como meio de pagamento é forçada militarmente sobre outros, sobre mercados, agentes e estados fora de sua jurisdição. Quem emite a moeda na qual é originada sua própria dívida então colhe, em atividade econômica depreciada, por dívidas dos que não emitem a de origem da sua. Funciona enquanto a quantia emitida para cobrir dívidas superar os gastos políticos e militares necessários para sustentar essa coerção. Tempo que, historicamente, tem durado algo entre setenta e duzentos anos.

Quando o período de eficácia do modelo se esgota, entramos numa fase crítica do ciclo capitalista que o economista Joseph Schumpeter chamou, em seu livro "Capitalism, Socialism and Democracy", de "destruição criativa". Nesta fase é que surgem as grandes guerras, com os lados sempre financiados pelos mesmos concentradores alojados em bancos mais centrais, como mostra o documentário "All wars are bankers wars". O Brasil pode estar se preparando, junto com os demais países do grupo BRICS, para resgatar alguma autonomia por ocasião do reset financeiro que virá com a emergente fase crítica. Numa tal reordenação caberá também o colapso de dívidas ilegítimas, ou legalmente odiosa, nos termos que o Art. 26° da CF pode determinar, se for cumprido.

Para isso, entretanto, para que a próxima oportunidade de se reverter essa fraude seja aproveitada, falta ainda um ingrediente essencial, que é uma nova forma de consciência política. O pensamento político que atualmente domina nossa civilização vê esse ordenamento financeiro, controlado por bancos centrais que assim agem com soberania e arrogância supremas, como inerente à lógica do capitalismo. Mas isso é puro dogma da doutrina neoliberal, surgida com o mercantilismo, que renasce como ideologia na revolução industrial. Ocorre que estamos em meio à revolução seguinte, pós-industrial, navegando por inexploradas fronteiras técnicas e psicossociais, além das quais esse tipo de ordenamento financeiro pode ser rejeitado como forma semiológica de escravagismo.

JP: 2- Como o senhor avalia a postura da Procuradoria Geral da República neste caso?
PR: Dos três encontros que tive lá, um com uma vice-Procuradora Geral, encarregada de relatar um processo reclamatório a respeito, e dois com o assessor para assuntos constitucionais da Procuradoria Geral da República (PGR), restou-me a impressão de que a postura da PGR tem sido, antes de tudo, formal. É como se estivéssemos tratando de um crime perfeito, visto que a Assembleia Constituinte, poder constituído para elaborar a Constituição de 1988 em cujo âmbito a fraude foi consumada, não está no escopo do controle de constitucionalidade que cabe ao Ministério Público arguir, e ao Supremo Tribunal Federal julgar.

Se a fraude houvesse sido cometida através de Emenda Constitucional, aí sim, poder-se-ia arguir junto ao STF pela revogação do dispositivo, com base em vício de origem, argumentaram. Mas o poder constituinte originário era autônomo, e encerrou-se com o ato político -- também autônomo -- que promulgou a Constituição de 1988, a qual incluiu o tal dispositivo. Apenas por Projeto de Emenda Constitucional (PEC) ele poderá então ser revogado. E a única tentativa nesse sentido, até aqui, a PEC 62/95 proposta por um dos constituintes, Ademir Andrade, fracassou em 1997 por adesão de senadores ao relatório de Jefferson Peres, que defendia serem os argumentos pela revogação "pouco convincentes sob o ângulo da relação entre sociedade e Estado".

Mesmo apresentando, no último desses encontros, a tese de que tal dispositivo acumula efeitos que colidem com o princípio da soberania do Estado, neutralizando-o quando este é fundamental -- conforme o primeiro artigo da mesma Constituição -- para a organização do Estado brasileiro, a qual é protegida como cláusula pétrea em seu Artigo 60°(§ 4°, inciso I), recebemos qualquer alento para a demanda reclamatória em exame. Por outro lado, a prudencia expressa nessa postura pode ser também entendida pelo ângulo psicológico.

Se um caso de consequências bem menos vultosas para os interesses afetados, como o do escândalo da mandioca em 1981, ensejou morte anunciada ao Procurador encarregado de apresentar denúncia, o que pensar de casos que hoje envolvem imensas fraudes financeiras em escala global, que só nos últimos dois anos coincidiram com mais de 36 mortes misteriosas de altos executivos que sabiam demais, todas precária e precipitadamente atribuídas a suicídio? Todavia, onde há vontade política haverá jeito, como mostra nosso mais importante vizinho, cuja polícia acaba de invadir o Banco Central de lá, para investigar acusações de manipulação indevida em mercados de câmbio.

JP: 3- O senhor e o doutor Adriano Benayon chegaram a sofrer, em algum momento, ameaças ou ações judiciais por parte de Nelson Jobim?
PR: Até aqui, sofremos apenas injúria, quando Jobim foi interpelado a respeito por jornalistas. Como nossa investigação não repercutiu na mídia corporativa, por razões que acredito relacionadas à subserviência desta à indústria financeira -- subserviência necessária para instrumentar o controle social que os concentradores financeiros globais atualmente exercem em nossa civilização --, caso ele tivesse ido além da injúria isto poderia ter sido contraproducente para o objetivo da fraude em questão, que supomos ser a legitimação do ataque desses concentradores à soberania nacional, pela supressão do controle legislativo sobre o comprometimento endividatório do Estado brasileiro.

Quanto a ações judiciais contra nós, acredito que não podemos mais ser processados por injúria, por calúnia ou por difamação, tendo em vista que esses alegáveis "crimes" prescreveram três anos após a publicação da suposta ofensa, no nosso relatório, ocorrida em 2006.

JP: 4- A seu ver, quais os principais impactos negativos da manutenção dos artigos fraudados?
PR: Apesar de não repercutir na mídia corporativa, a publicação do nosso relatório em 2006 na Internet propiciou comentários na mídia alternativa que nos ajudam a avaliar tais impactos. Cito os do jornalista Sebastião Nery, que nos lembra de outras atividades do autor da manobra, concomitantes à de constituinte: Na ocasião, Jobim era também advogado de um importante escritório em Brasília, que prestava serviços ao Citibank, então o maior ou dos maiores credores de dívida pública aqui. Jobim foi definido pelo ex-embaixador dos EUA no Brasil, Clifford Sobel, em telegrama acerca de um animado café da manhã na embaixada em 2008 (via WikiLeaks), como “um dos mais confiáveis líderes do Brasil”. De fato, um preposto que frauda carta branca para credores ditarem livremente as condições de rolagem de dívidas penduradas em seu povo é confiável, para o Estado que hoje sustenta o modelo bélico dos bancos centrais e seus concentradores.

Também em 2008, um jornalista do Hora do Povo entrevistou o Dr. Adriano Benayon, que ofereceu, como coautor e economista, a seguinte avaliação sobre tais impactos: "Mais de R$ 2 trilhões, em valores atualizados, pagos, desde 1988, por um 'serviço da dívida' pública que é gerado principalmente pela fixação de taxas de juros injustificadamente altas, as mais altas do mundo. Ou seja, uma dívida formada por capitalização de juros. Uma dívida que, antes de ser exponenciada por essa capitalização, se originou do financiamento de deficits de transações correntes com o exterior, gerados por transferências de recursos sobretudo feitas por empresas transnacionais, ademais, subsidiadas para isso por governos controlados" (pelos concentradores financeiros).

Mais recentemente, em 2015, ao entrar com recurso na PGR contra arquivamento de sua demanda reclamatória de 2011, o engenheiro e empresário Luiz Cordioli apresentou em planilha uma atualização dos valores já consumidos com a fraude: hoje dez vezes maior, em torno de R$ 20 trilhões. Entretanto, o trabalho mais organizado e sistemático de expor esses impactos negativos tem sido a missão de uma ONG que todo brasileiro preocupado com seu futuro e o do país deveria conhecer, a Auditoria Cidadã da Dívida. Que continuamente promove campanhas de esclarecimento ou de mobilização, e treinamento para profissionais da área econômica e financeira, sobre o papel geopolítico nefasto do que denominam "sistema da dívida." Papel esse que entendo como forma semiológica de escravagismo, preponderante hoje.

Atualmente, para esclarecer esse entendimento, tenho aproveitado as oportunidades acadêmicas onde posso discorrer sobre temas como ciberguerra ou terrorismo econômico, este o elemento mais palpável do sistema da dívida. Em setembro, por exemplo, num evento da Associação Brasileira de Estudos de Defesa, discorri sobre "Criptomoedas em tempos de terrorismo econômico", onde analisei a necessidade dos concentradores financeiros dominarem operacionalmente a infraestrutura de comunicação digital planetária para manterem controle sobre fluxos financeiros. Controle que, para sua sobrevida, depende cada vez mais de táticas terroristas, praticadas por meio de fraudes e manipulações desleais em mercados ofuscados por pregão e contabilidade eletrônicos, como as que têm atingido a Grécia e a Ucrânia, com o Brasil a caminho.

JP: 5- Quando o senhor se deparou pela primeira vez com a denúncia, qual foi a sensação?
PR: Não me deparei propriamente com a denúncia, mas sim com uma confissão, que foi seguida por descobertas. Quando me deparei pela primeira vez com a confissão espontânea de Jobim a uma jornalista do Correio Braziliense, por ocasião do aniversário de 15 anos de promulgação da Constituição, em 2003, de que dispositivos não aprovados haviam sido nela inseridos durante a Constituinte, a sensação foi de incredulidade, ante a passividade com que a notícia foi geralmente recebida. Passada essa sensação, veio a curiosidade, sobre qual teriam sido os dispositivos contrabandeados, e os motivos, já que isso o autor da manobra não confessara; nem o objeto do contrabando, nem seu modus operandi.

Depois, em 2005, ao conhecer o Dr. Benayon e conversamos por acaso a respeito, foi que me deparei com a hipótese de um dos dispositivos contrabandeados ter sido este, que na dotação orçamentária federal privilegia a especulação financeira com títulos de dívida pública. Nessa ocasião, a sensação que tive foi de descoberta. De que tínhamos juntos uma oportunidade investigativa, já que o Dr. Benayon conhecia metade da quebra-cabeças, por ter assessorado o senador Ademir Andrade na fracassada tentativa de revogar esse dispositivo de origem misteriosa, e eu conhecia partes da outra metade, por ter tentado seguir o rastro do "nome dos bois" que não foram confessados em 2003.

Durante essa conversa com o Dr Benayon, eu me lembrei de um incidente com um transformador que fica ao lado de um dos anexos da Câmara dos Deputados. Esse transformador havia explodido, interditando a ala da Biblioteca do Congresso onde estão arquivados os originais de todas as sete constituintes que já tivemos, inclusive da Assembleia Constituinte de 1988. Ao me lembrar de ter lido notícia sobre essa explosão depois da confissão de Jobim ter sido publicada pelo Correio Braziliense em 2003, a sensação que tive foi de ter farejado coelho nesse mato onde bois ainda não tinham nome.

E finalmente, ao pesquisar e localizar essas duas notícias entre os recortes de jornais que tinha arquivado em minha biblioteca, foi que me deparei com a descoberta mais dramática. A explosão que interditou o acesso aos originais das Constituintes no Congresso Nacional aconteceu às 9:30 da manhã em que começava a circular a edição do Correio Braziliense com a matéria em que Jobim confessa ter contrabandeado dispositivos não aprovados para a Constituição em 1988. A sensação que tive então foi dupla: Náusea, e frio na barriga. Ambas nos impulsionaram a trabalhar na investigação cidadã que durou mais de um ano e produziu o relatório publicado no aniversário de maioridade desta Constituição, em 24 de agosto de 2006.



Coautor entrevistado

Pedro Antonio Dourado de Rezende é professor concursado no Departamento de Ciência da Com­putação da Universidade de Brasília. Advanced to Candidacy a PhD pela Universidade da Cali­fornia em Berkeley. Membro do Conselho do Ins­tituto Brasileiro de Política e Direito de In­formática, ex-membro do Conselho da Fundação Softwa­re Li­vre América Latina, e do Comitê Gestor da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-BR), en­tre junho de 2003 e fevereiro de 2006, como representante da Sociedade Civil. http://www.­pedro.jmrezende.com.br/sd.php

Direitos do Autor

Pedro A D Rezende, 2015: Consoante anuência do entrevistador, esta entrevista é publicada no portal do autor sob a licença disponível em http://creativecommons.org/licenses/by-nc/2.5/br