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O ACTA e a Ciberguerra

Entrevista a Bruno Buys,
Para reportagem na Revista Ciência e Cultura da SBPC

Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
Junho de 2011



Bruno Buys:
1. O que é o ACTA e o que ele representa para a sociedade brasileira??

Pedro Rezende:
Literalmente, o ACTA é uma proposta de tratado internacional para comércio que busca combater a contrafação ou falsificação. Na prática, abaixo desse verniz, é uma iniciativa de grandes cartéis do capitalismo pós-industrial, em aliança com o Departamento de Comércio dos EUA e com o braço executivo de mais doze governos nacionais ideologicamente próximos, para demarcar, no teatro político global, por meio de uma progressiva radicalização normativa, fronteiras institucionais para a nova forma de colonialismo, que é baseada em controle utilitário do conhecimento pelo capital. Principalmente do fluxo de bens simbólicos, potencialmente ilimitado com a convergência digital das TIC e a Internet.

Geopoliticamente, é uma armadilha jurídica para esvaziar a eficácia do braço legislativo de estados nacionais democráticos que atuam nesse teatro, no que se refere às ações e interesses neocoloniais, construída por ambiguidades sobre as divisões entre os três poderes do Estado. E que serve também para estabelecer, a partir desse espaço político evacuado, e em conjunto com iniciativas similares noutros fronts da ciberguerra, bases funcionais para o braço armado de um governo supranacional, inicialmente subterrâneo mas totalitário e global, que emerge da convergência de interesses entre esses cartéis e a inclinação natural dos Estados à tirania, impulsionadas pela hiperconectividade propiciada pelas TIC.

A sociedade brasileira pode encontrar dificuldades em entender este cenário, pela forma como nosso legado cultural acolhe os conceitos de soberania e de nação. Minha opinião pessoal, nele pareceria devaneio (ver www.pedro.jmrezende.com.br/trabs/anonimato.html). Mas como o Brasil está, com a iniciativa do ACTA, encurralado junto com os demais países do chamado BRIC, convém observar como o governo talvez menos fraco, hoje entre esses, encara publicamente a questão. Remeto então o leitor a um artigo escrito por um colega da área nos EUA, em taosecurity.blogspot.com/2011/06/chinas-view-is-more-important-than.html, do qual destaco trechos da opinião publicada por dois professores da Academia Militar do Exército Chinês.

"...Assim como a guerra nuclear era a guerra estratégica da era industrial, a ciberguerra é a guerra estratégica da era da informação, e esta se tornou uma forma de batalha massivamente destrutiva, que diz respeito à vida e morte de nações... A ciberguerra é uma forma inteiramente nova que é invisível e silenciosa, e está ativa não apenas em conflitos e guerras convencionais, como também se deflagra em atividades diárias de natureza política, econômica, militar, cultural e científica... Recentemente, um furacão varreu a Internet pelo mundo ... Os alvos da guerra psicológica na Internet se expandiram da esfera militar para a esfera pública... Confrontadas com esse aquecimento para a ciberguerra na Internet, nenhuma nação ou força armada pode ficar passiva e está se preparando para lutar a guerra da Internet."
 
2. BB: O ACTA está em que ponto de sua consolidação? Já é uma realidade?
PR: A proposta, que levou três anos e meio para ser negociada, formalmente entre representantes de governo de treze países, sempre em segredo por insistência dos EUA, só foi divulgada em dezembro de 2010, como já consolidada. O texto está disponível na rede. No momento ela está em processo de aprovação e sanção, na sua íntegra, no âmbito dos países que a negociaram. Daquilo que se observa pelo agir dos mais influentes atores visíveis na consolidação, que são o executivo do governo dos EUA e seu correspondente na União Européia (o conselho de ministros), seus rolos compressores estão em vias de cooptar ou coagir os respectivos parlamentos, para adição de um verniz de legitimidade em forma de aprovação legislativa, antes da sanção pelo executivo no prazo.

Assim, o ACTA parece estar a caminho da realidade, cujo contorno estratégico mais próximo parece ser o da ciberguerra. Sobre essa realidade, o Wikileaks contribuiu para iluminá-la um pouco, vazando alguns documentos dos bastidores da negociação (ver www.laquadrature.net/en/wikileaks-cables-shine-light-on-acta-history). Como se poderia imaginar, principalmente em retrospecto, o capítulo que apresentou maiores dificuldades e entraves para a consolidação foi justamente sobre a Internet. Talvez pela dificuldade dos negociadores aí avaliarem, com clareza suficiente, entre interesses de alguma forma alinhados mas tão diversos em jogo, como esses interesses poderiams ao final ganhar mais, convergindo com concessões recíprocas.

Sobre a implementação, os vazamentos também revelam um plano: pôr logo em execução as medidas do tratado no âmbito de um núcleo de países mais alinhados com seus objetivos ulteriores, para depois, progressivamente, cooptar outros países a aderirem, valendo-se do fato desse núcleo inicial concentrar o grosso do comércio internacional, combinado à escassez de bens simbólicos artificialmente induzida por tais medidas e por medidas congêneres em outros fronts, Assim se produziria mais uma escalada de radicalização normativa, esvaziando as salvaguardas da OMC para um comércio "livre" e promovendo uma divisão global de trabalho e produção mais alinhada à ideologia subjacente a esses objetivos.

3. BB: Em termos de inclusão social, privacidade, abrangência e pluralismo, como o sr. avalia o momento atual da internet brasileira? Temos uma rede que possa funcionar como ferramenta de desenvolvimento social?
PR: Começando pela última parte da pergunta, sim, mas também a mesma rede pode funcionar para muitas outras coisas, algumas excludentes com o que se poderia considerar desenvolvimento social. Vou me concentrar na questão da privacidade, e abordá-la numa perspectiva global, pois as outras me parecem pacíficas e a privacidade é o front psicológico e jurídico onde acredito vai ser decidida a ciberguerra, que é global e por isso envolve de uma forma ou de outra o Brasil.

A privacidade pode ser entendida, sob o ponto de vista semiológico, como a separabilidade de papéis sociais controlada por quem os exerce. O desejo individual por privacidade, então, é como uma manifestação social do instinto de sobrevivência, mas como tal inconsciente em situações de equilíbrio hobbesiano. Em situações de desequilíbrio organizacional ou ruptura institucional, o tácito pacto social que legitima o Estado é posto em cheque. Para romper esse pacto hobbesiano em crise, enquanto mantém sua legitimidade, o Estado precisa, para reorganizar os papéis sociais que imporá aos cidadãos em sua nova forma de exercer e repartir o poder, antes dar dois passos, para subtrair do indivíduo a possibilidade dele mesmo controlar a separação entre papeis sociais que ele escolhe ou é obrigado a exercer.

O primeiro passo é o de convencer indivíduos de que eles não desejam, não necessitam, ou não devem exercer tais papéis anonimamente. De que o anonimato seria uma "perversidade" social, tão flagrante quanto turbulenta for a crise. O segundo passo é para impedir que possam exercer tais papéis anonimamente. Para completar com sucesso o primeiro passo, convém que se agigantem espantalhos intangíveis ou inimigos inefáveis. Tais como são vistos hoje o cibercrime, o terrorismo e a fé fundamentalista. Escassez de recursos também ajuda. Para o segundo passo, convém que se controle a intermediação das TIC, e com rigor as mais sofisticadas e "revolucionárias", para se evitar reveses na retaguarda com o fator "surpresa tecnológica", como ocorrido nas recentes revoltas do Oriente Médio. Tal como tentam hoje as maiores potências.

Com a convergência digital e a Internet onde já chegaram, acredito que a única forma de se exercer e repartir o poder de maneira estável, depois que muitos estados nacionais entrarem em crise simultânea e contagiosa, agravada pela escassez vindoura de vários recursos, seja pela emergência de um Estado supranacional, com um governo totalitário e global. Não que eu deseje isso como cidadão, pelo menos não terreno, mas isso significa que outros podem ter chegado à mesma conclusão. Inclusive quem responde por estados com inclinação hegemônica, para os quais tal situaçãore presenta a oportunidade seja de extinção, seja do cumprimento da sua pretensa missão. Como indicam os acadêmicos chineses.
4. BB: Neste ano, o FISL escolheu o tema 'Neutralidade da rede' como assunto principal, a ser discutido e divulgado, em seus debates e palestras. Essa decisão se apoiou em um diagnóstico de que a neutralidade não só é essencial, como está sob ameaça. Como o Sr. vê a neutralidade na internet hoje em dia? Existe uma ameaça real à ela?
PR: Se estendermos a noção de papel social para incluir aquilo que fazem organizações e empresas com suas infraestruturas de TI, através de serviços e protocolos implementáveis por software, essa neutralidade corresponderá a uma generalização daquele conceito de privacidade. Vejo então a idéia de neutralidade como generalização, para agentes e processos na rede, do conceito de privacidade. Generalização do ponto de vista semiológico mas não jurídico, pois para o Direito a privacidade é um conceito intrinsecamente ligado ao indivíduo. Neste sentido, à luz do que opinei nas respostas anteriores, devo logicamente concluir que a neutralidade da rede está sim ameaçada, e de extinção.

Existe certo tipo de confusão ingênua, relativamente comum quando o tema é abordado apenas em sua dimensão técnica, que convém dissipar. Partindo desta dimensão, observamos que a comunicação na Internet funciona por acordo tácito, através de adesão a protocolos digitais -- de um conjunto chamado TCP/IP -- que se organizam e se complementam em camadas logicamente independentes. Isso significa que cada camada pode ser implementada e operada, em qualquer ponto da rede, de forma independente, por agentes que não sabem, nem precisam saber, como outros estão operando as outras camadas. Como por exemplo a camada de conexão para transmissão e recepção de sinal digital (provedor de acesso), e a camada de provimento de conteúdo web.

Resumindo como a acoplagem entre camadas funciona a contento, permitindo a experiência de comunicação que parece ser "direta" na Internet, podemos dizer que o TCP/IP oferece, por design, neutralidade (ou "privacidade" no sentido dos processos) a nível sintático. Esta propriedade é por vezes chamada de neutralidade embutida ou neutralidade técnica da Internet. Doutro lado, nada disso significa que os agentes que implementam e operam camadas em um ponto da rede não possam saber, e não queiram saber, como outros estão operando outras camadas (e para quem, etc.). Eles podem, por meios outros que não a acoplagem com as camadas de cima e de baixo. E muitas vezes querem. E para isso fazem acordos ou alianças, nem sempre reveladas ou legais, com grandes operadoras que atuam em outras camadas.

Podemos então dizer que o TCP/IP não oferece, por si só, neutralidade (ou mesmo privacidade) a nível semântico. Quem pode oferecê-las é o Direito, mas apenas sob uma série de condições: se o Legislativo instrumentar nesse sentido a Justiça; se a Judiciário decidir com equilíbrio sobre esses instrumentos frente a outros que já protejam interesses contrários; e se o Executivo cumprir com zelo e eficácia, ou seja vontade política, o necessário papel fiscalizador e coibidor. Mas no contexto atual, com agências reguladoras de fachada, com a bússola neoliberal dando o norte e a ciberguerra de vento em popa, a neutralidade de fato que existe na Internet subsiste apenas por inércia.

5- BB: Desde que o primeiro programa de compartilhamento de arquivos surgiu, a indústria do direito autoral tem sistematicamente combatido essa prática. A despeito de toda a evidência que mostra que a internet mudou a forma de acesso a objetos como livros, músicas e filmes, a indústria continua investindo muito mais recursos para combater a internet do que para se adaptar a ela, e mudar seu modelo de negócios. O Sr. vê possibilidade de mudança nesse padrão, em algum momento no futuro? Ou a indústria "do conteúdo" como nós a conhecemos vai de fato desaparecer antes de se modificar?
PR: Sim, mas para pior. Os agentes desta indústria se sentem acuados pela situação, e querem mais e mais controle sobre os novos meios que viabilizam seus negócios, para não perder posições ou vantagens monopolistas, alcançados em tempos mais estáveis eles. Como o cenário de instabilidade só piora, agora com a ciberguerra ostensivamente declarada (ver http://online.wsj.com/article/SB10001424052702304563104576355623135782718.html), eles se sentem cada vez pressionadas a se unirem, em cartel, pela via da radicalização normativa, a alianças mais abrangentes e espúrias formadas com outros cartéis e interesses tirânicos. Como mostram, por exemplo, detalhes de bastidores da negociação ACTA revelados pelo Wikileaks,

Para piorar, eu vejo essa indústria desempenhando um papel muito importante nessas alianças. Como os valores dominantes na nossa cultura contemporânea incluem o individualismo, o consumismo, o hedonismo e a competitividade, neste cenário o cartel do copyright é o que exibe postura mais defensável para os seus interesses, e por isso, creio eu, ele tem desempenhado, até com desenvoltura e sedução, o papel de "relações públicas" dessas alianças, já que o front psicológico é essencial para o sucesso do primeiro passo necessário à reorganização do Estado em crise.

No pior dos cenários, com a radicalização absurdamente progressiva das leis autorais seguindo seu curso, penso que a indústria do copyright pode se transmutar em polícia ideológica, a exemplo do papel que ocupou no passado em regimes totalitários.

6- BB: Qual sua expectativa para o Plano Nacional de Banda Larga?
PR: Acho que o governo brasileiro finalmente percebeu a importância estratégica, para o Estado, de deter algum controle sobre a Infraestrutura de comunicação digital com capilaridade necessária ao desempenho de sua missão. Até para sua sobrevivência em momentos de grave crise, Creio que por isso o PNBL vai emplacar, a despeito dos atritos e ruídos políticos que a iniciativa gera em face aos interesses monopolistas já estabelecidos aqui.