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Fiscalização com a Urna Eletrônica

Entrevista a Antônio Ribeiro,
Para publicação na jornal "Esquina",
do curso de Jornalismo da UNICEUB - DF

Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
30 de Maio de 2006



Antônio Ribeiro: 1. O Sr. poderia comentar um pouco sobre o histórico da entrada das urnas eletrônicas no país?

Pedro Rezende: Quanto ao histórico, primeiras iniciativas e necessidade, talvez a melhor fonte à parte da propaganda oficial esteja no livro "Burla Eletrônica". Também no meu primeiro artigo a respeito, "A Lanterna de Diógenes", escrito para um seminário técnico no Senado que acabou não se realizando.


AR: 2. Quais são os pontos positivos e negativos nessa mudança? Por não haver uma audiência externa há possibilidades de fraudes? Já houve denúncias  comprovadas?
PR: Possibilidade de fraudes existem em qualquer sistema, eletrônico ou não. Denúncias houve muitas, comprovar é o problema. Como a autoridade eleitoral não permite fiscalização adequada, não se pode provar muita coisa. O que já foi possível provar, entretanto, é preocupante. Basta ler os relatos no livro "Burla Eletrônica", na avaliação possibilitada pelo caso de Santo Estêvão na Bahia em 2000, descrito em Análise por mim publicada e retificada no Observatório da Imprensa, e pelo recente relatório Husti, que analisa equipamentos para eleições americanas do mesmo fornecedor do TSE.
AR: 3. Como está o processo para modificar isso?
PR: Do ponto de vista do eleitor que deseja proteger seu direito de fiscalizar eleições, está piorando a cada eleição. A lei eleitoral em vigor desde setembro de 2003, que retirou qualquer possibilidade de recontagem dos votos, foi aprovada sem nenhuma audiência pública, apesar dos insistentes pedidos. Aprovada com forte lobby das autoridades eleitorais e irregularidades processuais, devidamente documentadas, conforme o artigo que publiquei na ocasião, "A seita do Santo Byte

Para completar, a resolução TSE 22.154/06, que regula a fiscalização para a próxima eleição, eliminou o direito dos partidos obterem uma versão impressa do boletim de urna, tornando a manipulação da base de dados da totalização, composta pelos BUs transportados em disquetes criptografados pelas urnas, vulnerável a fraudes completamente blindadas, resultantes de manipulações após a decriptação e durante a contabilização dos BUs, na rede de totalização.
AR: 4. Qual seria a solução dos problemas?
PR: Só vejo como possibilidade uma outra revolução como a de 1930. A revolução de 30 instituiu a Justiça Eleitoral para acabar com o processo de eleição a "bico de pena", da República Velha. A Justiça Eleitoral, entretanto, depois do interregno da ditadura militar, introduziu o "bico de laser". Com ele, isto é, com a informatização completa do processo eleitoral, eliminou-se a possibilidade de recontagem e fiscalização efetiva, até para quem tem PhD em computação, levando a Justiça Eleitoral a exercer, na prática, os três poderes republicanos na esfera eleitoral.

A sociedade aceita esse "retorno" vivendo o mito de uma suposta, mas inquestionável, necessidade de modernização, que, sob o pretexto de acabar com as anteriores formas de fraude, ou seja, as que a revolução de 30 se propôs mas não conseguiu eliminar, leva o processo eleitoral nessa direção. Mas nessa direção, para eliminar aquelas velhas introduzem-se novas formas de fraude, mais perigosas do que as da República Velha.

As velhas, eliminadas, eram de varejo e impossíveis de se esconder, enquanto as novas, funcionam por atacado e blindadas pela informática e pela normatização do uso desta. Sob o manto de credibilidade na sua infalibilidade, tecido por um tosco ufanismo, e cumplicidade da mídia corporativa, cooptada, os políticos podem, enfim, se tornarem todos iguais, e assim ainda mais atrevidos em seu desprezo pela ética e valores da cidadania. Isto porque, num cenário desses, onde formas de fraude por atacado são blindadas através de um sistema infiscalizável tido por inviolável, o político desonesto tende a levar vantagem.

AR: 5. Houve interesse no governo FHC, e há interesse no governo Lula, em cambiar isso?
PR: Da parte das autoridades eleitorais, substancialmente não. Apenas em aproveitar qualquer sugestão que pudesse ser usada para fazer o sistema parecer mais transparente ou fiscalizável, mas cuja forma de implementação escolhida simplesmente esvazia qualquer resquício de eficácia. Os exemplos mais notórios os da assinatura digital dos programas da urna por fiscais de partido e a tal de votação paralela, como explicado no artigo "Análise de um sistema eleitoral eletrônico".

AR: 6. O Sr. afirma que a resolução TSE 22.154/06 eliminou o direito dos partidos obterem boletins de urna, o que tornariam as eleições de 2006 vulneráveis a fraudes blindadas na totalização. Poderia ser mais específico e substanciar sua afirmação?
PR: A resolução em questão, TSE 22.154/06 (que foi publicada no DOU se não me engano em março ou abril de 2006, mas que não está disponível no site do TSE), diz:

"Art. 42. Compete, ainda, ao presidente da mesa receptora de votos e a quem o substituir:
I - encerrar a votação e emitir as cinco vias do boletim de urna e a via do boletim de justificativa;
II - emitir, mediante solicitação, até cinco vias extras do boletim de urna para o representante do Ministério Público e representantes da imprensa;
V - afixar uma cópia do boletim de urna em local visível da seção e entregar outra, assinada, ao representante do comitê interpartidário;"

Diferentemente desta, a resolução que vigiu na eleição passada obrigava o mesário a entregar uma copia assinada do BU a qualquer fiscal de partido que o requisitasse no ato do encerramento da votação da sessão eleitoral.  A regra na eleição passada só ficou assim depois de muita reclamação em eleições anteriores, nas quais o regulamento não obrigava o mesário a entregar boletim impresso assinado aos fiscais de partido que requisitassem (sob o pretexto de economizar papel!).

Quando se trata de fiscalização, essa estória de "representante do comitê interpartidário" é uma lorota sem propósito, pois veja: Esse posto se destina a ser ocupado por um eleitor, e, como eleitor, nada o impede de ter sua preferência partidária; pelo que a segunda frase do inciso V da resolução supracitada protege possíveis conluios nos quais o partido a ser beneficiado na totalização, por manipulação indevida dos dados dos BUs, pode bloquear a fiscalização do partido a ser prejudicado, ocupando o tal posto em tantas sessões eleitorais quanto necessárias, para impedir que BUs impressos de sessões que serão manipuladas cheguem até ao prejudicado;

A possibilidade da totalização excluir o BUs gravado pela urna eletrônica de uma sessão eleitoral, para incluir outro em seu lugar, está prevista no processo em curso, através do uso da senha do juiz eleitoral. O motivo deste recurso no processo é permitir cuidar de casos de sessões eleitorais que precisaram ir para votação manual ou mista.

Mas esse recurso pode perfeitamente ser abusado, para alterar BUs legítimos das sessões nas quais o tal "representante interpartidário" seja do partido a ser beneficiado, e pode ser empregado impunemente, se a fiscalização partidária estiver ausente do ato da totalização; E em eleições passadas, como a de 2002 para presidente -- totalizada no CPD do TSE -- e para as estaduais no Rio de Janeiro -- totalizada no TRE de lá naquele mesmo ano --, ocorreu de fiscais de partido terem sido barrados do ambiente onde era feita a totalização: para eles, só o telão, com cafezinho e água gelada numa sala isolada da rede de computadores que recebiam os BUs dos pólos de informática dos cartórios eleitorais.

Se tal manipulação indevida ocorrer, o partido prejudicado não pode comprová-la, por não ter acesso a uma versão autenticada do boletim impresso pela urna, que ou estaria na mão do "representante interpartidário" do partido beneficiado, ou em lugar nenhum, se este não exigiu o boletim impresso assinado pelo mesário a que tem direito, no ato de encerramento da votação. O partido prejudicado não pode nem mesmo suspeitar da manipulação indevida, sem evitar a pecha de paranóico, sabotador ou mau perdedor, se não presenciou as vezes em que o BU eletrônico que chegou para totalização foi rejeitado pelo juiz eleitoral.

Note que esse tipo de manipulação poderia tanto neutralizar, quanto ocorrer de maneira independente, das manipulações possíveis através dos programas que estão nas urnas, se alterados depois da homologação e antes da instalação nas urnas, ou mesmo antes da homologação, protegidas pelas abissais deficiências do processo de validação do software.

AR: 7. Num de seus trabalhos vi que em 2000 no município de Cmaçari na Bahia os softwares utilizados na urna eletrônica não era o mesmo software utilizado nacionalmente. Houve processo para anular mas foi arquivado, certo?

Em relação ao software, em Camaçari foram feitos vários recadastramentos por ordem judicial, num deles foram utilizadas urnas eletrônicas com software desenvolvido para este fim. Não sei se ou como o processo foi arquivado, mas certamente perdeu seu objeto pois o mandato questionado venceu em 2004. Se o motivo para adaptar a urna eletrônica para o recadastramento, de usá-la como um computador comum, foi o de proteger o cadastro contra fraudes, contra a re-inserção de eleitores-fantasmas, o fracasso foi completo. A menos que o objetivo tenha sido apenas o de fazer parecer que, ao se usar a urna eletrônica ao invés de um computador comum, o cadastro eleitoral de Camaçari seria finalmente expurgado dos fantasmas. Pois em cada recadastramento, feito por ordem judicial em Camaçari para esse fim, o cadastro cresceu ao invés de diminuir.

Por outro lado, o uso da urna eletrônica com essa finalidade, digamos, promocional, acabou servindo para outros propósitos. Serviu, por exemplo, para quem acompanha de fora os ritos da seita do Santo Byte, descobrir que a urna eletrônica pode ser configurada para permitir inicialização por disquete, algo que não transparece no processo eleitoral e que tem impacto sobre as possíveis formas de fraude de origem interna. Juntando essa descoberta com outras do gênero, como aquela sobre a inoquidade dos lacres físicos durante a perícia de Santo Estêvão, nos leva a deduzir que os responsáveis técnicos pelo sistema eleitoral adotavam o modelo de segurança por obscurantismo, escolha extremamente perigosa para sistemas do tipo eleitoral.

AR: 8. O acesso ao boletim de urna posteriormente às eleições serão fornecidas agora somente ao representante interpartidário. Como era antes, e que é esse representante interpartidário? 
Nas duas últimas eleições (2002 e 2004), como já disse, a resolução correspondente determinava que o mesário fornecesse o BU impresso assinado a qualquer fiscal de partido credenciado que o solicitasse, no encerramento da votação. Na eleição de 2000 era como agora: só ao representante do comitê interpartidário. Não tenho a mínima idéia do que seja, ou como é escolhido, o tal representante desse comitê interpartidário.

AR: 9. O software utilizado no Brasil (nas urnas) é nacional ou estrangeiro? 

Alguns softwares, como o Windows CE (usado agora em 150 mil urnas), são obviamente estrangeiros. Outros são desenvolvidos por encomenda a empresas multinacionais, e não sei onde são desenvolvidos. Nem sei se poderíamos saber. Apenas uma parte do sistema é desenvolvida pelo TSE.  Dizer que a urna que usamos é Brasileira é, obviamente, apenas uma figura de linguagem, necessária para manter o tosco ufanismo que eclipsa os perigos que esta representa à nossa frágil democracia.