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  Quase-debates sobre software livre

Publicado no portal Software Livre Brasil

Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasilia




Software livre x software com copyright?

8 de Março de 2004

O Informativo Juridico do Setor de Empresas de Tecnologia do escritório de advocacia Monteiro e Saran divulgou nota entitulada "Software livre x software com copyright". A nota informa que o Partido da Frente Liberal RS (PFL) ajuizou ação de inconstitucionalidade contra a lei do Rio Grande do Sul, que trata da utilização de software no estado. 

Esta nota ensejou a seguinte missiva, endereçada à Monteiro e Saran, até o presente não respondida, e por isso publicada no portal Software Livre Brasil em 8/03/04

À Monteiro e Saran

ref. Informativo Juridico do Setor de Empresas de Tecnologia, nota "Software livre x software com copyright"

Ilustres senhores,

A respeito de nota em seu site, sob link http://www.monteirosaran.com.br/info17/vm030104.shtml, venho, com pesar, chamar a atenção dos senhores para uma série de impropriedades referentes a elementos do objeto do contencioso ali informado.

Software, ou programa, livre, não é, como afirma a nota, "...programas cuja propriedade industrial e intelectual são de acesso irrestrito e sem custos adicionais aos usuários". Particularmente se por software livre se entende aquele que se opõe, em conceito, a "software com copyright", como quer o título da nota.

Softwares livres, se por tal reconhecermos aqueles que reclamam esta qualificação através de seu instrumento jurídico de licenciamentode uso, redistribuição e reuso conhecido por GPL (General Public License, atualmente com versão oficial em portugues GNU-GPL-CC-BR), instrumento este que introduziu, tanto na linguagem leiga como na juridica, o conceito de "copyleft" (posteriormente generalizado como "creative commons"), cedem acesso irrestrito, através do mesmo citado instrumento, apenas ao uso do objeto licenciado (software), e NÃO à sua propriedade industrial e intelctual, como quer a nota.

A propriedade industrial e intelectual do softwares licenciados sob GPL estão sujeitas às restrições insculpidas nos artigos 4o. a 11o. do referido instrumento de contrato, sob o legítimo gozo dos direitos autorais do licenciador. Sugiro ao autor e editor da referida nota que tomem conhecimento do referido contrato, cujo texto está disponível em qualquer interface de usuário de software distribuido sob o mesmo, como por exemplo, qualquer distribuição de sistema operacional que inclua o kernel Linux, por exemplo.

Ademais, e com maior gravidade, a nota afirma, em relação ao contencioso relatado -- a lei 11.871/02 do RS --, que "o Jurista Miguel Reale Júnior apontou inúmeras inconstitucionalidades e ilegalidades, especialmente frente à Lei de Licitações".

É fato que o Jurista Miguel Reale Júnior as teria apontado, porém, até o presente e até onde se saiba, não de forma definitiva, que tenha passado pelo crivo avaliador dos seus pares, quer em tribunais, quer em foro adequado. Apenas, até onde se sabe, em artigo dirigido a público leigo onde os lança de forma açodada, como recentemente publicado no jornal "valor econômico" (disponivel em http://www.pedro.jmrezende.com.br/trabs/ve1.htm).

Também fato é que tais apontamentos, na citada nota atribuídos ao ilustre Jurista, circulam em artigo escrito em co-autoria com uma advogada de ligações no mínimo curiosas frente ao contencioso, contendo inúmeras incorreções e impropriedades, estas analisadas em artigo por mim apresentado no 4o. Simpósio de Segurança na Informática realizado no Instituto de Teconologia da Aeronáutica em outubro de 2003 (disponível em http://www.pedro.jmrezende.com.br/trabs/ssi2003.htm, também publicado em resumo no jornal "Gazeta Mercantil" e no portal "consultor jurídico", em http://conjur.uol.com.br/textos/20955/)

Um escritório de advocacia que procura formar ou preservar imagem de seriedade e competência não deveria estar circulando o tipo de informação descuidada e tendenciosa como a veiculada na referida nota.

respeitosamente,

Pedro A D Rezende

ADENDO, 18/04/04:

O ministro Carlos Britto do STF, relator do pedido de liminar concedido à ADIN movida pelo PFL contra a lei gaúcha que privilegia o software livre, teria comentado:
"A lei (do Rio Grande do Sul) estreita contra a natureza dos produtos que lhe servem de objeto normativo, os bens informáticos",
Data venia ao ministro, que pode entender de leis mas não necessariamente de software, muito menos de software livre se fiar-se apenas no filtro tecido com medos, incertezas pelo status quo em eventuais tentativas. O ministro confunde o software com o negócio do software. Software livre em nada estreita contra a natureza dos produtos que constituem bens informáticos, muito ao contrário.

Aquilo que o conceito de software livre estreita contra são as modalidades de contratação destes bens, não a sua natureza. E este estreitamento visa, justamente, ampliar a natureza desses bens, que nada mais é do que o seu valor semiológico. Qualquer software, já feito ou por fazer, pode ser livre sem que isso atente contra sua natureza ou tipo. Basta que o autor queira escolher, para licenciá-lo, um contrato de adesão modelado no conceito de copyleft, destinado a privilegiar sua função social e, em decorrência, seu valor semiológico.



A GPL é compatível com as leis brasileiras?

24, 31 de Março de 2004

O portal Software Livre Brasil publicou, em 15 de Março de 2004, artigo do professor de Direito da PUC do Rio de Janeiro, Dr. Gilberto Almeida, com o título inquisitivo "A GPL é incompatível com as leis brasileiras?" (em http://portal.softwarelivre.org/news/1837). O professor foi contactado em privado, em 24/03/04, com uma solicitação para que esclarecesse pontos controversos do seu artigo. Não tendo respondido até o presente, deu ensejo à crítica pública que se segue.

O primeiro problema com o citado artigo ocorre na seguinte frase, no seu sexto parágrafo
"Isto é, na origem, tanto se poderá determinar que terceiros sejam formalmente impedidos de cobrar por serviços e produtos realizados em cima da versão original do programa (assim é no sistema do copyleft, concebido como alternativa ao típico copyright), como se poderá admitir que tais serviços e produtos sejam faturados."
Esta afirmação tem como consequência lógica a assertiva de que o sistema copyleft impede terceiros de cobrar por serviços e produtos realizados "em cima da versão original do programa".

Penso não existir nada que possa ser caracterizado como "sistema do copyleft" se, por sistema, entendermos aqui que se trata de um sistema deôntico. Ou seja, conjunto de dispositivos normativos que se referenciam entre si. E é isso que se deve entender de um sistema simbólico quando tal sistema estiver a impedir terceiros (sujeitos inominados) de agir desta ou daquela forma.

O que existe, é o conceito de copyleft.

"Copyleft" é um modelo para se elaborar contratos particulares, surgido de um exemplar sui generis de contrato de adesão, destinado(s) a ceder desonerosamente direitos sobre seu objeto de natureza semiológica. Este exemplar sui generis é conhecido por GNU General Public Licence, ou GNU-GPL (em http://portal.softwarelivre.org/gpl.php), que por sua vez se autoclassifica como licença pública, como também seu título e sua sigla indicam.

Da mesma forma que "copyright", originalmente o nome dado à primeira lei do direito autoral, de 1710 na Inglaterra, adquiriu o sentido de nome para o modelo de lei de direito autoral estabelecido por aquele pioneiro sistema, adotado pelos regimes jurídicos de tradição anglo-saxã.

Assim, penso que seja correto dizer que existem várias leis "de copyright", simultaneamente em jurisdições distintas, além daquelas sobre direitos de autor baseados na tradição francesa, que incluem direitos morais, ou, ao longo do tempo e numa mesma jurisdição; da mesma forma que existem várias licenças "do copyleft", inclusive simultaneamente sob uma mesma jurisdição. Basta ler várias licenças de software livre, como por exemplo as do Apache, do Mozilla e do kernel Linux, e compará-las, para se perceber esse fato.

Vejo, portanto, copyleft e copyright como sistemas meta-deônticos. Com Kant talvez os chamássemos metafísicos; com Habermas, metalinguísticos, e com Peirce, semiológicos, para citar três pensadores que se aventuraram na filosofia do Direito. E vejo o modelo copyleft ganhando um melhor enquadramento em linguagem jurídica com o projeto "Creative Commons" (em http://creativecommons.org), iniciado pelo eminente constitucionalista norte-americano Lawrence Lessig.

E penso que, não sendo um contrato particular que se reveste do caráter de licença pública, mas sim um modelo para tais instrumentos, não se pode dizer que o "sistema do copyleft" impede terceiros de agir desta ou daquela forma. Pois um contrato cujo autor e partes pensam que esteja seguindo o modelo copyleft pode, formalmente, impedir terceiros disto ou daquilo, enquanto outro não.

Mas o que pode, afinal, ser apontado como característica deôntica fundamental no modelo copyleft?

Esta é uma pergunta abstrata que se reveste de importância quando quisermos saber que tipo de impedimento, especificado em um contrato, seria necessário para enquadrá-lo, ou suficiente para desenquadrá-lo, no ou do modelo copyleft.

Pelo que diz o professor Almeida na citação acima, poderíamos ser levados a supor que o impedimento ali apontado está insculpido na própia GPL, sendo ela a fundadora do tal "sistema do copyleft", e sendo o título do artigo citado uma pergunta sobre a GPL. A GPL estaria impedindo formalmente que terceiros cobrem por serviços e produtos "realizados em cima" do objeto da licença.

Mas basta clicar no link que aponta para a GPL, seis parágrafos acima, para se deparar com um dispositivo que diz justamente o contrário, já na primeira sessão da dita licença. Isto se por "warranty protection" entendermos uma classe de serviços e garantias, em relação ao software hoje conhecidas por SLA (Service Level Agreement). Haveria , então, na GPL, um outro dispositivo contrariando o seu artigo primeiro, que o prof. Almeida nos pudesse apontar? Não sabemos, pois o prof. Almeida ainda não no-los apontou.

Mas afinal, em que consiste o tal conceito de copyleft?

Vejo o conceito copyleft como a idéia de, a partir dos direitos de cópia ou de autor disponíveis numa jurisdição, e sem feri-los, caso estes incluam o da liberdade do autor para licenciar o usufruto e disponibilidade de sua obra, produzir-se, através de contrato que explicite esse licenciamento, uma espécie de imagem reflexa sobre o eixo que vincula obrigações e direitos entre contratantes, em relação ao que estabelece o modelo copyright para casos em que um contrato particular daquela natureza inexista.

Em outras palavras, na linguagem hacker se diria que o copyleft é um hacking do copyright.

Sendo assim, dado que o uso comum do termo "copyright" indica, como característica necessária para uma lei enquadrar-se em tal modelo, que a lei impeça o licenciado de buscar certos tipos de ganhos (não autorizados) com a obra licenciada, ou seja, que a lei "do copyright" estabeleça a obrigação do licenciado de não buscá-los, característica reflexa (equivalente) no copyleft seria a de que o contrato autorize o licenciado a buscar certos tipos de ganhos (autorizados). Portanto, que o contrato estabeleça o direito do licenciado de buscá-los.  E é exatamente este direito que está explicitado no segudo parágrafo da sessão 1 da GNU-GPL.

Mas a citação extraída do sexto parágrafo talvez não contenha a mais problemática assertiva com que o prof. Almeida nos brinda naquele seu artigo. As que faz em sua abertura, por sinal muito bonita, merecem atenção, particularmente as do segundo parágrafo.
"A filosofia das leis de propriedade intelectual sempre foi de fomentar a oferta de produtos e serviços ao mercado. Nesse ponto, ela coincide com a filosofia do movimento que faz a apologia do “software livre”. Porém, como cada qual segue atalhos divergentes, será possível em nome da filosofia comum fazer esses vetores retomarem uma mesma direção?

A resposta é positiva, e oferece interessantes repercussões práticas. Cabe destacar de início que o regime da propriedade intelectual – de direito de autor, patente, ou outro – tem a meta de estimular a sociedade a produzir obras e inventos que revertam ao domínio público após o decurso de um prazo de privilégio de exploração econômica reservado ao criador. Significa dizer que há função social envolvida neste sistema de propriedade, de buscar aumentar a oferta e o subseqüente compartilhamento."

No segundo parágrafo o prof. Almeida repete a justificativa que a corôa britânica apresentou ao parlamento em 1710, para a aprovação da supracitada lei pioneira do direito autoral. Esta justificativa, entretanto, descreve apenas um lado da moeda dos seus efeitos. Para enxergarmos o outro lado precisamos examinar aquela lei de uma distância mínima. Da necessária perspectiva histórica capaz de revelar o "lado de trás" dos seus efeitos.

As reformas políticas iniciadas no Renascimento, e que culminaram com o advento do Estado de Direito a partir da revolução francesa de 1789, ao separarem o poder e a função social de Igreja e Estado, propiciaram, por um lado, o advento das revoluções científica e industrial, das quais a revolução digital é filha, enquanto, por outro lado, evidenciam a importância do processo de validação coletiva e de controle de acesso ao conhecimento, para o exercício e a manutenção do poder político.

Havendo a Reforma lutado para desbaratar o mecanismo de validação e controle do conhecimento baseado nos dogmas e nos instrumentos da Santa Igreja, e a partir daí, neutralizar a eficácia social do seu poder político, é já quase um século antes dessa culminação, em 1710, que surge a primeira lei do direito laico restringindo a livre circulação do saber, na forma de primeira lei de direito autoral. Parte do apêlo daquela justificativa era o argumento, que segue sendo recitado como mantra por advogados da propriedade intelectual, de que o Estado deveria incentivar a produção intelectual oferecendo proteção, por tempo limitado, ao autor de obra intelectual, contra ganhos de terceiros a partir de sua obra auferidos sem seu expresso consentimento, posto que terceiros poderiam se valer das novas tecnologias da informação para fazê-lo com inusitada eficácia, desestimulando com isso o trabalho intelectual em si.

Curioso é notar que o estado da técnica dessas tecnologias na época -- a imprensa de tipo móvel introduzida por Gutemberg --, foi justamente a responsável pelo sucesso na luta pelo desmonte do mecanismo de controle e validação do conhecimento anterior, assente na pedra angular do dogma da infalibilidade papal, hoje substituído pelo dogma da infalibilidade da mão invisível do mercado, honrado logo no início da abertura do artigo do prof. Almeida.

Mas uma coisa é recitar a justificativa com que a lei se apresenta, e outra coisa é a prática judicativa e legistativa.  As leis, e suas interpretações, não são estanques. Meta é uma coisa, lei e sentença judicial são outras. Se tomarmos a bela mensagem sobre "função social" com que o professor Almeida nos brinda, e buscarmos seus harmônicos reflexos em leis hoje vigentes sobre direito autoral, caberiam perguntas: qual é o prazo de exploração reservado ao autor? O que é ser autor de obra intelectual?

Do prazo, podemos dizer que ele vêm,  digamos, evoluindo.  Na lei norte-americana, dos originais 7 anos para 15, depois para 25, 30, 50, etc, e agora 90 anos.

 Sempre que a obra intelectual conhecida pela marca "mickey mouse" ameaça entrar em domínio público, dissolvendo, por decurso de prazo, o monopólio legal do "autor" -- no caso uma pessoa jurídica que detém tal título, uma empresa global do cartel monopolista do ramo do entretenimento --, o congresso norte-americano modifica a lei de direito autoral, estendendo, sob pressão do lobby de hollywood, o tal prazo.  Fê-lo onze vezes em quatro décadas.

E no famoso e recente caso Eldred v. Ashcroft (http://www.legalaffairs.org/ issues/March-April-2004/story_lessig_marapr04.html), a corte suprema daquele país sentenciou que o poder legislativo tem direito, sim, de estender indefinida e ilimitadamente o tal prazo de proteção monopolista, ad infinitum, mesmo em deboche ou cabal afronta ao dispositivo que veste de função social leis de proprietade intelectual naquela jurisdição, insculpido na constituição federal: o período de reserva deve ser limitado. 

"Subsequente compartilhamento" do saber expresso em obra intelectual, nesses tempos acelerados, só depois de expirada a vida útil, para a imensa maioria das obras e potenciais beneficiários do saber comum. Quanto ao Brasil, talvez melhor não elaborar sobre como nos é imposto, e quem nos impõe, nosso regime de propriedade intelectual. (ou talvez melhor consultar na fonte, como em http://www.eweek.com/article2/0,1759,1550037,00.asp).

Enquanto esperamos Godot -- o saber pós-moderno compartilhado --, com o código-fonte (de vida útil raramente superior a 20 anos) de softwares proprietários escritos hoje entrando em domínio público em 2094 (ou quem sabe 2104, 2114, 2214, etc.), o conteúdo final da bela mensagem do professor Allmeida oscila entre a ingenuidade e a fantasia, que parecem escorregar para o sofisma.



O autor: ATC PhD em Matemática Aplicada pela Universidade de Berkeley, Professor de Ciência da Computação da Universidade de Brasília (UnB), coordenador do programa de Extensão Universitária em Criptografia e Segurança Computcional da UnB, representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira.