Debates sobre "A inteligência e os embustes virtuais (II)"

No artigo de Pedro Antônio Dourado de Rezende, discordo de algumas colocações do autor:

Ele diz em diversas partes de sua explanação que os fabricantes de software não podem expor os usuários a riscos sob o pretexto de simplificar as coisas. Concordo em parte. Mas acho que é uma obrigação de profissionais da área simplificar as coisas para os usuários.

Sou engenheiro químico e trabalho com alimentos. Computador para mim é uma ferramenta e algumas vezes diversão. Não posso me dar o luxo de estudar assuntos desta área. Do mesmo jeito que não acho que ninguém tenha que estudar sobre alimentos para poder tomar um refrigerante ou comer um iogurte com segurança. Existimos, nós, os técnicos da área, e a Vigilância Sanitária para garantir esse direito.

Filipe Gouveia

 

Pedro A. Dourado de Rezende responde

O que eu disse é que o trade-off entre risco e conveniência está sendo escamoteado pela parlance marqueteira da indústria do software proprietário.

Há estimativas (se não me engano da propria Microsoft) de que o recurso de interpretação automática de atachados no Outlook se traduz em funcionalidade para apenas 4% dos usuários do programa. Para os outros 96%, este recurso representa apenas risco. Eve Nemeth, professora de administração de sistemas em uma universidade americana tem uma definição operacional de segurança interessante: segurança = 1/conveniência.

O profissional de desenvolvimento tem a obrigação de simplificar, como você e eu dissemos, e o profissional de segurança tem a obrigação de proteger e alertar, como eu disse. A direção da empresa tem a obrigação de ponderar e decidir sobre o que implementar e oferecer, como disse e repito. Obrigações à parte, a escolha entre conveniência e segurança é do usuário. Mas o usuário precisa de informação isenta para decidir, e o que discuto no artigo não são as obrigações, mas a corretude das informações disponibilizadas ao usuário para tomar suas decisões. Não discuto a necessidade de simplificação, e se você assim entendeu, obviamente está fazendo uma leitura emocional do artigo. O que discuto é a empulhação de quem precisa convencer usurários sobre suas novas "necessidades" para manter a expectativa de fluxo de caixa dos acionistas da empresa. É a explicação de que "o mercado exige" (4% dos usuários) funcionalidade A ou B, e que portanto os riscos porventura decorrentes desta exigência (para os outros 96%) são fatalidades do destino.

A empulhação que denuncio, e que prejudica o processo do usuário ponderar riscos e conveniências, é a falácia em que está calcado todo o discurso marqueteiro da indústria do software proprietário, que implicitamente assume ser a soma do que cada usuário quer no software igual ao consenso sobre o que todos querem (o mercado exige!). E o risco que denuncio é o de que a falta de opção do usuário num regime de monopólio poderá levar, pela própria lógica econômica, as ponderações de risco nas decisões sobre o que a empresa monopolista irá implementar e oferecer no software, a se tornarem cada vez menos importantes, e o processo de segurança computacional levado assim a catástrofes, uma das quais comento.

Nos dias de hoje, há um custo alto para a retenção da ingenuidade, em qualquer esfera social, técnica ou não. A perda da ingenuidade passa pela necessidade de construção de filtros de realidade, que atribuem confiabilidade às torrentes de informação a que hoje temos de nos expor para poder tomar decisões.

Em sua obra magna O espírito das leis, o barão de Montesquieu afirma o seguinte: "Num estado público há que haver uma instância a mais, a virtude". Por que ele diz isso? Por que não pode haver segurança sem o exercício de duas virtudes humanas: a capacidade de se reconhecer e de se aceitar responsabilidades. A empulhação que escamonteia responsabilidades inviabiliza a segurança.

Se ninguém paga imposto, ninguém pode cobrar a ação do Estado para proteger o cidadão contra o crime. O imposto é uma espécie de limitação na funcionalidade (do ganho econômico do cidadão) para beneficio coletivo e indireto. Seu voto, junto com os outros, irá decidir em que grau os politicos eleitos serão complacentes com a evasão fiscal, e o grau com que o dinheiro dos impostos sumirá na corrupção. A lógica do egoísmo é, em larga escala, ineficiente para a sociedade. Se você é engenheiro químico e mora em São Paulo, por exemplo, a sua própria percepção da qualidade do serviço de segurança pública, inclusive da vigilância sanitária, que eventualmente conluia com a distribuição de medicamentos falsos, é uma constatação deste fato. E escolher software é como votar. Esta é outra forma de ler o recado do meu artigo.