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Hegel, Platão e os (des)motivados na escola

Debate com um Aluno
sobre desmotivação generalizada dos alunos na sua Universidade

Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
Agosto de 2006


De 20 de Julho a 17 de agosto de 2006, o professor e um aluno mantiveram por e-mail o seguinte diálogo, cuja publicação o aluno consentiu sob anonimato:  

email 1:

Aluno: Gostaria de ouvir comentário do Sr. a respeito do seguinte.

Desde que entrei na UnB venho ouvindo de alguns professores da computação que seus alunos estão cada vez menos empenhados em suas disciplinas, que cada vez mais os alunos só se enteressam em tirar um MM e conseguir os créditos. Ouvi uma história de um professor que se frustrou de tal forma com a picaretice de seus alunos que não consegue mais olhar nos olhos dos alunos quando ministra suas aulas, e por ai vai.

Eu como aluno percebo o desinteresse dos colegas em relação a UnB. Esse fato, somado à frustação dos professores, estão me preocupando, pois parece que esse quadro tende a piorar, então eu fico me questionando. Será que tal aumento na picaretagem por parte dos alunos só tem afetado a computação, pois computação é um curso da moda e muitas pessoas que entram procurando perspectiva profissonal e podem se desiludir ao longo do percurso?
 
Será que isso é um ciclo e dentre em pouco nós os alunos voltaremos a levar a sério a computação? Será que é só culpa dos alunos ou existe algum fator que vem desestimulando a grande maioria dos estudantes? Obviamente a respota não é simples, provavelmente será uma combinação desses fatores somados a outros ainda, mas eu tenho duas teorias ainda não amadurecidas.

 A primeira se refere a grande pressão que o sistema vem exercendo sobre os alunos de modo que esses prefiram empenhar-se em arrumar um estágio para, com sua remuneração, atender ao apelos consumistas cada vez mais fortes, o que os leva a simplesmente tentar conseguir um MM na UnB pois o estágio exige mais atenção.

A segunda teoria é mais paranoica mas tendo a crer que seja a mais correta. Imagino que exita um subconsiente coletivo que diz "pra que levar a sério essa UnB se os grandes ícones da sociedade fazem tudo pela metade, dão um jeitinho pra se dar bem em tudo e f***-se os outros, roubam na cara dura e saem livres e com toda a moral, pra que eu vou me esforçar se as intistuições estão falidas, agente tenta, tenta se esforça pra mudar as coisas, deposita nossa confiança nas pessoas e elas nos traem"...

Pode ser loucura minha, mas acho que existe uma frustação, um falta de fé no sistema como um todo, o que leva as pessoas a não se empenharem, pois sabem, inconscientemente, que não vão ter uma contrapartida justa por parte do sistema, ou seja "para q vou contribuir com uma sociedade que não valoriza o meu esforço?"

Não sei se me fiz entender, o que eu quero é saber quais as causas dessa falta de interesse e qual a solução, se existir? Obrigado por sua atenção.

PR: Acho que suas duas teorias se aplicam, e que ambas se conectam pelo relativismo moral hoje imperante. A esse estado de coisas, cada um reage com o que construiu para si desde o berço. Inclusive e principalmente professores, por tenderem ao idealismo, pela profissão que escolheram.

Minha reação a esse estado de coisas foi tornar-me ativista (software livre, cidadania na era digital, etc.). Pode parecer uma atitude farisaica ou pueril para quem já tem emprego fixo, mas é o que dita a minha consciência. Talvez um dos motivos inconscientes de eu ter escolhido essa minha profissão, e esse emprego, foi o de poder assim preservá-la.

Doutra feita, racionalizar esse estado de coisas, acomodar-se a ele ou revoltar-se a êsmo seria, para mim, uma atitude moralmente imatura. Como professor de uma Instituição Pública de ensino superior sou pago também para pensar. E penso que, enquanto o relativismo moral e a hipocrisia resultante podem cooptar, podem também servir de combustível para as próximas lutas sociais. Daí, ao "clamar no deserto" da sala de aula, expondo a dimensão ética nas atividades profissionais para cuja formação me dedico, estou agindo como um professor que é também ativista social.

Na intercessão desses dois papéis um dos pais da democracia moderna, um dos homens que mais contribuiu para o senso de indignação e revolta que fomentou a revolução francesa, Montesquieu, na sua obra "o Espírito das leis" explicava: Num estado democrático de Direito, há que haver uma instância a mais, a Virtude.

Independente de leis, não se pode esperar justiça de homens que desprezam a Virtude. A busca do saber (no sentido de sofia e de episteme, não de doxa) [no nosso caso, saber não apenas como a criptografia pode ser bem ou mal utilizada, mas principalmente, os próprios valores morais com os quais se julga o que é bom e o que é mau uso dela] é uma virtude; subjugar-se ao relativismo moral, correndo o professor atrás só de salário e estabilidade, e o aluno atrás só de canudo e rodas de pôquer, jogadas no chão dos corredores da escola ou no cassino da mão-de-obra semi-acabada, não me parece que seja.

Guiar a conduta pela bússola auto-enganosa da estabilidade financeira pode parecer uma atitude realista, porém, ao mesmo tempo que uma tal estratégia pode ser localmente vantajosa, ela é também globalmente desastrosa. É uma armadilha de radicalismo ideológico encetada pelo fundamentalismo neoliberal. Leva a uma forma de conduta competitiva que hoje parece vencedora, mas que amanhã pode se tornar fardo ou grilhão, em momentos de ruptura social, ruptura que essa própria exacerbação individual, complacente e hedonista, cataliza. Platão dizia que a maior força escravizadora é a concupiscência.

E a História isso mostra, ciclicamente validando Platão, sem nenhum indício para crermos que dessa vez seja diferente. A evolução tecnológica precipita essas rupturas, como com os gregos, cuja sociedade de início foi a que melhor soube usar a primeira tecnologia revolucionária de TI, o alfabeto. E sem tampouco indícios para desprezarmos a distância que nos separa da próxima ruptura. A sociedade grega condenou à morte Sócrates, formalmente pelo crime de "perversão da juventude", para pouco depois sucumbir ao domínio do jovem Alexandre, que aprendera arte militar com Aristóteles para se formar herdeiro da Macedônia, nação que os gregos consideravam "bárbara". 

Assim, cabe refletir: quem é que está cada vez mais aprisionado hoje? Os chefes do PCC, encarcerados pelo Estado, em presídios de segurança cada vez mais "máxima"? ou quem corre cada vez mais atrás da sua estabilidade financeira ou do poder, enredados pelo medo, nos labirintos de incertezas desse caos? No cenário global, troque atores e lugares pelos da hora e refaça mentalmente a pergunta. Talvez em tempos como esse, a estabilidade financeira não seja lá nenhum santo graal. Ou, em linguagem mais conhecida de desmotivados consumistas, nenhuma brastemp.



e-mail 2:

Aluno: Sua respostas foram de grande valia para mim. Ao final de uma releitura, elas me levaram a um outro questionamento já não tão objetivo, mas que, analogamente aos anteriores, rondam a minha mente a tempos: O "relativismo moral" e outros tipos de comportamentos e idéias são provocados, induzidos por alguma minoria?


PR:
O relativismo moral pode, sim, estar ecoando a influência de um dos maiores filósofos modernos (Georg Hegel, 1770-1841) sobre o pesamento político depois dele. Influência talvez melhor explicada por outro grande pensador, este mais recente e que se dedicou à filosofia da linguagem (Ernst Cassirer, 1874-1945). Por outro lado, pode ser também que Hegel apenas anteviu com mais descortino, e bem enquadrou em seu sistema filosófico, especificamente na sua filosofia da história, a evolução do processo civilizatório.

Nos últimos capítulos de seu último livro, escrito pouco antes de morrer, Cassirer analisa com tal brilho, didatismo e argúcia o legado de Hegel que me vejo compelido a parafraseá-lo ou citá-lo extensamente para, sob proteção do inciso III do art. 46 da Lei de Direitos Autorais, oferecer-lhe e aos demais leitores em reflexão, já que eu mim não tenho respostas melhores (além dos comentários, em não-itálico [ou em cinza]), para as perguntas que lhe rondam a mente.

Respostas, talvez nem ele. Mas, em "O mito do Estado", publicado em 1946, e em português pela editora Codex em 2003, Ernst Cassirer nos oferece uma interpretação ímpar da crise intelectual que sucedeu o legado de Hegel, da qual o mundo ainda não conseguiu se libertar. Como legítimo herdeiro do Iluminismo depois de Hegel, Cassirer depositava, segundo seu tradutor Álvaro Cabral, grandes esperanças na capacidade de homens e mulheres para resolver seus problemas através da força do espírito.

Sobre Hegel, diz Cassirer em "o Mito do Estado":

Nenhum outro sistema filosófico exerceu
influência tão forte e duradoura na vida política do que a metafísica de Hegel. Todos os grandes filósofos anteriores propuseram teorias do Estado que influenciaram o pensamento político, mas desempenharam um papel muito modesto na vida política. Pertenciam ao mundo das "idéias" ou "ideais", não ao mundo político "real". Os filosófos lastimam frequentemente esse fato, e Kant chegou a escrever um tratado especialmente destinado a refutar o slogan "Pode ser bom na teoria, mas não dá resultado na prática". Contudo, esses esforços foram vãos, porque o abismo entre o pensamento político e a vida política continuava aberto.

A filosofia de Hegel

Estudando a filosofia de Hegel, deparamo-nos com uma situação completamente diferente. A sua lógica e a sua metafísica, que foram no início consideradas como pilares do seu sistema filosófico, eram precisamente a parte desse sistema que estava aberta, tal qual o abismo entre a vida no tempo
deles e o pensamento dos filósofos anteriores. Entretanto, depois de uma breve disputa filosófica, na qual esses pilares pareceram resistir, com o renascimento do hegelianismo, ocorrido no pensamento político e portanto, além e acima desses pilares (lógica e metafísica), poucos sistemas políticos resistiram à sua influência. Todas as modernas ideologias mostram a força e a durabilidade dos princípios que foram pela primeira vez apresentados na filosofia do direito e na filosofia da história de Hegel.

Foi, todavia, uma vitória de Pirro. O hegelianismo teve que pagar pelo seu triunfo. Ao dilatar imensamente a sua esfera de ação, sua unidade e harmonia internas se perderam. Diferentes escolas e partidos apelam para a autoridade de Hegel, mas com interpretações inteiramente diferentes -- e incompatíveis -- dos seus princípios fundamentais. 

Para um estudo da filosofia de Hegel, não podemos proceder como com outros filósofos. Com Platão, podemos almejar uma visão da sua teoria do conhecimento, com Aristóteles, da sua filosofia natural, ou com Kant, da sua teoria ética, pela simples descrição dos principais resultados desses filósofos. Com o sistema de Hegel, tal descrição seria totalmente insuficiente, o que explica as várias e divergentes interpretações do mesmo.

Liberdade

Hegel, entretanto, não temia essas contradições; via nelas a própria vida do pensamento especulativo e da verdade filosófica. Desafiava, por exemplo, constantemente o famoso princípio da identidade (A = A) e da contradição (A ou não-A). Não porque seria falso, mas porque seria meramente formal, abstrato e, além disso, superficial. O que
, segundo Hegel, na realidade sempre se encontra é a identidade de contrários. Mesmo no pensamento político, cada tese é seguida de uma antítese, cujo entrechoque deve apontar uma síntese, para aquele que sempre se designou como um filósofo da liberdade.

"Assim como a essência da matéria é a gravidade,... a essência do Espírito é a Liberdade...a Filosofia ensina que todas as qualidades do Espírito existem somente através da Liberdade"1

Será? Os inimigos de Hegel afirmam que isso é mais uma caricatura do que uma fiel descrição da sua doutrina. O filósofo Fries declara que a teoria hegeliana do Estado "não nasceu nos jardins da ciência, mas nos monturos da servidão". Todos os liberais alemães falavam e sentiam da mesma forma. Segundo eles, Hegel seria o mais perigoso inimigo de todos os ideais democráticos. Mas como explicar que só depois da sua morte sua doutrina tenha passado, subitamente, a ser vista e utilizada desse ângulo? Mestre de Marx e Lênin, o campeão do "marxismo dialético"? Para Cassirer, Hegel não seria o responsável por essa evolução.

Tanto por seu caráter como pelo seu temperamento pessoal,
Hegel era avesso a soluções radicais. Era um conservador, que defendia o poder da tradição. Nos seus primeiros escritos, glorifica como ideais a Polis grega e a República romana. O costume (sitte) era para ele o elemento básico da vida política. Sempre conservou e defendeu o mesmo ponto de vista: não reconhecia nenhuma ética superior àquela que emerge dos costumes2.

A ética hegeliana é, portanto, relativa aos costumes, o que a distingue fundamentalmente da ética de Platão, dominante no pensamento ocidental até Hegel. A ética de Platão, cuja influência assim perdurou através da síntese com a moral cristã, promovida por Santo Agostinho no século IV e sistematizada por Kant enquanto Hegel crescia, apela para a responsabilidade individual, preconizada por Sócrates, de quem era discípulo. Para Platão, não é na tradição ou na rotina que se podem encontrar os princípios de uma verdadeira vida política. Esses princípios não se assentam na doxa ("justa opinião"), mas na episteme (conhecimento de natureza científica), a nova forma de racionalidade e de consciência moral descoberta por Sócrates.

Já para Hegel, nem a Razão, nem sua relação com a Moral, são desse tipo platônico. E Cassirer pode estar certo sobre não ser Hegel responsável pela evolução do seu conceito de liberdade; Mas apenas diretamente, já que foi ele (Hegel) quem introduziu a dialética como ferramenta filosófica global, neste caso aplicada à evolução do pensamento que manifestou sobre a Liberdade. Premeditada ou não, a dialética da Liberdade a partir de Hegel é exemplo histórico, talvez o mais contundente, de comportamentos e idéias induzidas por uma minoria. Neste caso, uma minoria de grandes atores históricos que leram e praticaram suas idéias, inclusive sobre a relatividade moral.


Aluno: Ou seja, um grupo de pessoas determinam, segundo interesses própios, um comportamento adequado para a sociedade e usa o seu poder pra "sugerir" o comportameto certo à sociedade? Ouvi dizer que "o povo é o que a sua classe dominate deseja que seja".


PR: Como sugeri na resposta a seu primeiro email, esse determinismo talvez só seja perceptível em situações de ruptura, de conflitos éticos. Para entendermos a precariedade desse eventual determinismo, voltemos nossa atenção para a relação clássica entre Razão e Moral. Para isso, escolho a descrição que dela faz o prof. Arnaldo Drummond em "Morte do Mercado" (editora Unisinos, 2004), parafreaseada abaixo:

Na Grécia clássica, no tempo histórico de Sócrates, em decorrência das transformações econômicas, sociopolíticas e culturais nos séculos VII e VI a.C. nasceu a ética (estudo das leis da moral) como ciência do ethos (moral, no sentido de critério particular para conduta social aceitável). Entretanto, esse aparecimento da ética como matéria filosófica não coincidiu com o início da filosofia científica (episteme), nem com o fim do domínio do pensamento mítico sobre ela. Para os pré-socráticos, como Anaximandro e Empédocles, o mito engloba a relação entre ordem cósmica e ethos, por analogia entre a ordem da natureza e o comportamento humano. Com Heráclito, essa relação passa para o domínio do logos (verbo, palavra inteligível, razão), sem contudo se desprender do pensamento divino. Apenas com Sócrates se completa a crítica do ethos segundo a razão, devido a duas pré-condições históricas do pensamento moral: a crise do ethos tradicional e sua refutação pelos sofistas.

No século V a.C., o ethos tradicional entra em choque com o novo modo de viver emergente nas cidades-estados. Sobretudo na Jônia (em particular em Esparta), onde o desenvolvimento técnico, as mudanças por este induzidas na organização social, e os novos bens simbólicos, quebraram a estrutura da sociedade aristocrática até então prevalecente. Trata-se de um exemplo modelar de conflito ético: a mudança social não é acompanhada pela mudança de costume. Por esse descompasso foi que o pensamento sofista, predominante na mentalidade ateniense, inaugurou o antropocentrismo na filosofia ocidental, antes centrada na ordem e princípio explicativo da physis (natureza), conforme registrada pelos pré-socráticos. Este antropocentrismo se centra na singularidade do conceito de natureza humana. Lei humana como convenção, voltada para a organização da cidade e das práticas sociais, e para a descoberta e exploração do poder de convencimento do logos [tipo assim, MP 2200-2].

A crítica da Moral

Apesar de combaterem o dogmatismo da moral tradicional, os sofistas não foram capazes de concluir a crítica da Moral (
isto é, dar resposta original à questão do que vem a ser a moral, e do quê nela é universal) porque negavam a possibilidade de uma teoria moral objetiva. Herdeiros da razão demonstrativa dos pré-socráticos (logos apodeiktikos), aplicaram-na de maneira dilatada nas disciplinas da cultura, principalmente na retórica e na lógica. Mas apesar disso, os sofistas não conseguiram transpor o ethos (moral particular) à ética (moral universal). A não ser por tentativas de generalização baseadas no discurso da persuação (logos da doxa), próprio do domínio político das convenções e, portanto, refém de um consenso aleatório entre subjetividades (liberdades)3.

Enquanto tentavam, a Grécia se aprofundava em crise ética, marcada pela guerra do Peloponeso (entre Atenas e Esparta) e pela oscilação entre
as duas faces do relativismo moral: o extremo convencionalismo (Esquerda), e o extremo naturalismo (Direita). O primeiro, através de pactos sociais entre variados costumes e tradições, e o segundo, através da submissão da natureza humana a desejos e impulsos de poder. Tal acepção naturalista da natureza humana, longe de constituir critério objetivo de moral, transfere para o objeto particular do desejo a determinação imediata do agir. [tipo assim, segurança "de dados" ao invés de segurança na informática, em consonância com a ideologia fundamentalista de mercado] Resta ao ser humano, transformado por tal acepção em refém das circunstâncias, refurgiar-se no intersubjetivismo moral como única referência possível de preservação do convívio em sociedade [tipo assim, "se a maioria dos alunos está insatisfeita com o professor, ele deve estar errado!"].

Como reformador moral, Sócrates tenta retirar a ética da frágil condição em que a colocara o relativismo moral proposto pelos sofistas e reagido em dialética (Esquerda-Direita), e o decorrente ceticismo generalizado na sociedade do seu tempo [a exemplo do ceticismo que, entre alunos da UnB, motivou esse debate]. Desse modo, ao se defrontar com o mesmo desafio que a sofística não conseguira resolver, a saber, o de transpor a universalidade da razão para a particularidade do ethos, Sócrates descobre o significado da natureza humana, baseado numa nova concepção de psiquê, traduzida precária ou impropriamente por "alma".

O "homem interior"

Esse
conceito de  alma, que Platão depois denominou "homem interior" (e que Hegel usa, mas pouco explora), torna-se a sede do novo sujeito moral, e da sua inteligência, porque distingue o ser humano de todas as outras coisas, retirando-o do determinismo natural do reino animal para torná-lo portador de cultura. O novo sujeito moral de Platão tinha o sentido de enkrateia, síntese dialética entre razão e liberdade (ou, entre razão livre e liberdade racional). A palavra enkrateia tinha, na época em que Sócrates dedicou-se à crítica da Moral, o sentido de autodomínio.

Assim Sócrates descobre o porquê do antropocentrismo sofista ter falhado na crítica da Moral. Falhou, paradoxalmente, por naturalizar o agir moral, escravizando-o aos apetites do desejo. Humanizar o agir moral significa, ao contrário para Sócrates, torná-lo virtuoso através do autodomínio, cuja condição autárquica o liberta dos desejos e impulsos. Significa afastar o ser humano de uma determinação animal da sua natureza, diferenciando-o como ser-de-cultura, como descrito no portal do templo de Apolo em Delfos: "conheça-te a ti mesmo".

A descoberta socrática do poder libertador do
autodomínio (eukrateia) cria um sentido inteiramente novo para Liberdade (eleutheria), cujo significado moral é o domínio da racionalidade sobre a animalidade.  Anteriormente, a liberdade era entendida apenas nos sentidos jurídico e político4. Este novo sentido é que ilumina a contradição performativa do pensamento sofista, que, por um lado, vê o ser humano como ser-de-cultura, mas, por outro, naturaliza-o ao considerar o desejo como guia do seu comportamento. Quando orientado pelos desejos primordiais -- prazer e poder [hoje $-conversíveis] --, o ser humano deixa de ser sujeito moral (nesse novo sentido) ao transferir sua realização para fora de si, para os objetos de desejo.

Sócrates descobre, assim, a relação mutuamente estruturante entre autodomínio [algoritmo] e liberdade [estrutura de dados], o que lhe permite dar o passo decisivo para a construção da sua ética, a ciência da moral registrada por Platão. [no software livre, e noutros modos de produção colaborativa de bens simbólicos possibilitados pela hiperconectividade, transformadora da sociedade contemporânea, esta relação se expressa no equilbrio entre os direitos que o autor escolhe preservar e ceder, ao licenciar o objeto da sua obra autoral]

Mas Sócrates só o fez, e o fez ao preço de "ter que provar" seu autodomínio com uma taça de cicuta, devido ao conflito ético vivido em seu tempo. Talvez o exemplo de Sócrates [junto com sua antítese em George Bush] esteja sugerindo um ditado alternativo ao que ouvistes, ao menos para momentos de crise: "o povo vê na sua classe dominante o que deseja ter".


Aluno: Ou, por outro lado, o comportamento e as idéias dominates em uma sociedade são forjadas no cotidiano por todos, onde a classe dominante seria o reflexo do povo?


PR: As idéias dominantes em uma sociedade seriam, ao menos segundo a filosofia que mais se reflete -- de uma forma ou de outra -- nas classes dominantes desde então (a filosofia de Hegel), fojadas no cotidiano; Porém, não por todos. Ou pelo menos, não nos mesmos moldes. Para entendermos como Hegel via os papéis dos indivíduos no curso da história, e de como esses papéis se combinam, recorro, novamente, a opiniões mais profícuas e ilustres do que as que poderia articular sozinho. 

Na introdução da tradução ao inglês de "Lições sobre a filosofia da história", publicação organizada postumamente pelo filho de Hegel com manuscritos do filósofo e notas de aulas de seus alunos, Robert Hartman condensa, com erudição e competência filosófica ímpares, traços gerais dessas lições, sobre o panorama da obra de Hegel, do seu tempo e do seu legado até o ano do meu nascimento. Da tradução ao português por Beatriz Sidou6, parafraseio ou cito passagens em busca desse entendimento:

Assim como, na filosofia de Hegel, a "Idéia absoluta" (o poder lógico do divino, no vocabulário de Hegel) penetra e dirige o cenário da luta histórica através dos mortais, a filosofia de Hegel, como expressão da "Idéia absoluta", penetrou na história. Assim como a Idéia absoluta permanece intocada pela luta das paixões humanas, a filosofia de Hegel, como criação intelectual, continua imperturbada na luta mortífera que foi e vai sendo travada em torno dela.

Na filosofia de Hegel, a Idéia absoluta se desenvolve no espaço e no tempo. Desenvolvendo-se no espaço, ela é a Natureza; e no tempo, ela é o Espírito. O Espírito no tempo é a História. O pensamento é o que é ideal no mundo, e o mundo, é o que é concreto na idéia. Eis 
o processo dialético, em sua inicialização.

O segredo da influência de Hegel está no seu método dinâmico. Ele não o inventou, suas raízes alcançam fontes na filosofia grega, em Heráclito. Pode-se, também, traçar toda a linha percorrida por Hegel através da história da filosofia. Mas ele o alinhavou, e aplicou à totalidade do mundo o seu consturto, cuja força está em sua aplicabilidade interna e universal.

Religião e História

O
s dois centros intelectuais da doutrina hegeliana são o problema da religião e o problema da história. Estudando os primeiros trabalhos de Hegel, dificilmente se pode separá-los. Encontram-se fundidos, formando uma unidade dialética inextricável. Cassirer descreve a tendência fundamental do pensamento de Hegel dizendo que ele falava de religião em termos de história, e de história em termos de religião. Desse modo, um das mais antigas e difíceis questões filosóficas toma subitamente uma nova forma.

Todos os ângulos pelos quais os pensadores anteriores tinham enfrentado o problema da teodicéia (explicar a origem do mal) pareciam superados com Hegel. O dos estóicos, o dos neoplatônicos e o dos iluministas, este pela refutação de qualquer solução teológica (que atribua origem divina ao mal). Para Hegel, não é preciso procurar uma "desculpa" ou justificativa para a existência do mal, físico ou moral. Ele é produto do caráter fundamental da prórpia definição de realidade. Segundo Hegel, temos que redefinir essa questão, descobrir um significado filosófico mais profundo sob o significado religioso do mal. Essa é a tarefa que sua filosofia da história se propõe a realizar.

Assim, Hartman observa, o sistema hegeliano foi interpretado e tocou a todo grande acontecimento histórico ou espiritual do seu tempo, e a partir dele. O terrorismo em que decaiu a Revolução Francesa foi interpretado como abstração lógica descontrolada
[como também outros terrorismos de Estado, mais atuais]. Mal-entendidos semelhantes se associaram à noção do "grande homem", a qual Hegel foi o primeiro a discutir no plano filosófico. Como o super-homem de Nietzsche, o herói hegeliano foi mal compreendido, confundido como protótipo do ser subumano do fascismo e do nazismo. Ocorre, porém, que Hegel deu passagem ou origem a tais ideologias de maneira muito mais sutil.

Naturalmente
[pela cronologia] Hegel não influenciou Kant, mas sua influência na filosofia kantiana foi profunda. Ele rejeita o programa kantiano, de se examinar a faculdade de compreensão antes de se examinar a natureza das coisas. Hegel compara esse programa ao de se querer aprender a nadar antes de se entrar na água. Para ele, coisas e pensamentos estão diretamente inter-relacionados, e o pensamento reconhece as próprias coisas. Não há coisa-em-si, deixada incógnita fora do pensamento, nem mesmo Deus. Se as leis da lógica e do pensamento estão juntas, como dois aspectos do mesmo processo, então a lógica também é uma doutrina da realidade (ontologia).

Dialética universal

Chegado a esse ponto, Hegel precisava dar apenas mais um passo para encarar a própria realidade como o pensamento de um pensador, e todo o seu sistema do mundo como uma teologia.
Ei-lo:  O inter-relacionamento entre o real e o meramente existente, entre o necessário e o contingente, vai em frente dialeticamente. Assim, tudo o que é real é racional, e vice versa. O processo dialético é, ao mesmo tempo, lógico, ontológico e cronológico. Tudo que é deve ser, e tudo é como deveria ser. E quanto à liberdade?

Como o Espírito é livre por natureza, a História é o progresso da Liberdade
[quase o mito adâmico]. A Liberdade, como o Espírito, é dinamica: progride contra seus próprios obstáculos, dialeticamente. Ela jamais é dada, deve-se lutar para obtê-la. Cada afrouxamento do Espírito significa voltar à inércia da Matéria, o que, por sua vez, significa a destruição da liberdade pela sujeição à mesma, ou pela sujeição a outros [classe dominante] que usam o sujeito frouxo como objeto.

Essa luta é dada na própria natureza da vontade de Deus, que é a fonte de toda a criação. Mas é apenas no reino humano que essa luta se desdobra completamente, em autoconsciência.
Na realidade criada, o Espírito aparece como universal e também como particular, num universo cujas particularidades existem em indivíduos e povos. Na realidade criada, o particular desaparece constantemente, com a morte reforçando o universal e sua transfiguração. Temos, aqui, as dialéticas entre indivíduo e Povo, e entre Povo e Espírito do Mundo, em cujo enredo Hegel insere e interpreta fatos históricos.

O Estado

O Espírito do Mundo, incorporado em um povo concreto, é o Espírito Nacional (Volkgeist). Os indivíduos, até onde são historicamente ativos, incorporam o Espírito Nacional e, através deste, o Espírito do Mundo. Os seres em que o Espírito ou a Liberdade se incorpora, imediata e diretamente, são os povos e as nações da Terra. Por nação, ou Estado, Hegel entende uma cultura e civlilização, uma organização da liberdade. Segundo ele, a Liberdade (não no sentido de licença ou permissão, em minúsculo, mas no sentido de essência do Espírito, em maiúsculo) só é possível nos Estados. Portanto, não há história sem que hajam Estados.

Aqui, Hegel tem sido muito mal interpretado. Se seu conceito de Estado é entendido muito literalmente, seguem-se tolices que não estão no que ele quis dizer, mesmo que (ou talvez porque) o nacionalismo estreito lhe tenha sido familiar. Talvez, como sustenta Sabine, o jovem Hegel tenha mesmo desejado tornar-se um novo Maquiavel, mas o Hegel maduro (e portanto o mais real, de acordo com a sua própria dialética) superou esse arroubo. Quando falava de Estado ele falava de um Estado ideal, com forma e conteúdo -- uma civilização e uma cultura com todas suas instituições, de lei, religião, arte, filosofia, etc. --, e não de um Estado formal -- um poder burocrático sem o conteúdo cívico-cultural -- ou, pior, de um pseudo-Estado, que usa esse poder formal para destruir seu conteúdo e o desenvolvimento individual dentro dele. De tais simulacros (anti-Estados), que se opõem
dialeticamente ao Estado ideal, não devem restar senão ruínas, dizia ele, como que premonitoriamente.

Nessa dialética do Estado, o Povo, como concretização do Espírito, encontra consciência de si. No auge do seu desenvolvimento
ele deixa, pela própria dialética do processo, de lutar para avançar. Volta-se para trás e, por assim dizer, goza o que atingiu. Nesse ponto a realização da vontade divina, nessa forma e desse modo, enfraquece. O povo realizado gradualmente desaparece. No que o Espírito Nacional retorna à universalidade, enriquecido pela experiência recente, preparando-se para a próxima fase, em outro povo. A história é o processo do Espírito progredindo para o conceito cumulativo de si, de nação para nação, onde o Espírito do Mundo modela o Povo, através de civilizações e culturas [quase uma doutrina messiânica anti-judaísta].

Porém, além e acima do Estado está a Idéia absoluta, em cuja esfera o indivíduo se encontra em sentido superior ao de cidadão.  Ali está o ser humano como criador, o "homem interior" de Platão. Artista, santo e filósofo. Assim, existe no homem e na mulher uma esfera criadora a que o Estado não pode tocar. Essa esfera interior do indivíduo, que se opõe à moralidade política, tem sido negligenciada pelos intérpretes de Hegel, em parte talvez porque ele nunca a tenha desenvolvido com clareza.

Não obstante, as "Lições sobre filosofia da história" de Hegel nos dão quatro moldes para o ser humano na história: o de cidadão, o de indivíduo, o de herói e a de vítima, dos quais apenas o segundo, quiçá mal enquadrado em seu sistema filosófico, não afeta ou não é afetado necessariamente pela dialética hegeliana do Estado, dialética que concretiza seu conceito de Povo.


Aluno: Ou, por fim, uma combinação de ambos? (o comportamento e as idéias dominantes numa sociedade seriam uma combinação entre as "sugeridas" pela classe dominante e as forjadas por todos). Caso seja uma combinação de ambos, é possivel saber quando estamos sendo manipulados pelos interesses de uma minoria? Imagino que não, mas gostaria de ter sua opinião.


PR: Novamente recorro aos textos de Cassirer e Hartman, para intermediar o que eu poderia lhe oferecer a título de opinião, antes de concluí-la com símbolos da mitologia contemporânea (cinegrafia de "Matrix"). Em que grau e em que sentidos seria possível saber quando estamos sendo manipulados por interesses de uma minoria dominante, e como, são questões melhor iluminadas pela análise que eles fazem dos quatro moldes para o homem histórico na filosofia hegeliana. Parafraseando ou citando-os: 

O cidadão
 
A racionalidade particular que molda o cidadão é realizada no Estado. Particular e não universal, porque o Estado em si é apenas uma fase na História, jamais o ponto final do avanço da consciência na Liberdade, que é a história do mundo.
[na esfera dos valores simbólicos digitalmente realizáveis, a luta pela liberdade avança, além do software livre, nas batalhas por padrões e formatos abertos, pelo acesso ao conhecimento, etc.].

O Estado é moral apenas até onde a moral é realizada na Terra, naquele momento. Apenas um Estado em particular realiza, em determinado momento, o Espírito do Mundo. Outros Estados não o realizam ou porque não atingiram, ou já ultrapassaram, essa fase noutro momento, ou porque não estão preparados para isso. Seus cidadãos são, presumivelmente,
"menos morais" (no sentido presente) que aqueles do Estado que representa o Espírito do Mundo (no presente). Em sua filosofia do direito, Hegel afirma:

"O Espírito do Mundo, na sua marcha avante, coloca sobre cada povo a tarefa de fazer sobressair a sua vocação peculiar. Assim, na história universal, cada nação tem a sua vez de dominar. Contra esse direito absoluto daquele que tem em si num dado momento a tarefa de desenvolver o Espírito do Mundo, os espíritos das outras nações estão absolutamente desprovidos de direitos, e tal como as de épocas passadas, não contam em absoluto para a história."5

Sobre essa passagem, Cassirer comenta que, até então, nenhum filósofo da categoria de Hegel
tinha falado em termos semelhantes. Quando Hegel a escreveu (nas primeiras décadas do século XIX), assistia-se ao surgimento e influência crescente de ideais nacionalistas. Mas, ainda assim, trata-se de um fato novo na história do pensamento político, carregado das mais temíveis consequências: um sistema de ética e uma filosofia do direito dispostos a defender tais idéias. Declarando outras nações "absolutamente desprovidas de direitos" contra aquela que, num determinado momento histórico, deva ser considerada como o único agente do "Espírito do Mundo" na Terra. Hegel isentava o Estado de todas as obrigações morais, enquanto relativizava a de cidadãos com respeito a uma tal dominância [atualmente sustentada por arsenais de destruição em massa], ainda que confinada a seu processo dialético:

 "Um estado está então bem constituído e é inteiramente poderoso quando o interesse privado dos seus cidadãos tem o mesmo interesse comum com o Estado, e um encontra gratificação no outro"6

A respeito do molde hegeliano para cidadania, Hartman prossegue: No momento em que o indivíduo está consciente da sua liberdade, ele é cidadão de um Estado moral
[no sentido de instituição que determina limites para esta liberdade e, portanto, para sua moral individual], membro de uma comunidade cultural. O Estado, e não o indivíduo mesmo, é o universo de sua liberdade -- ele em si é apenas um exemplo. No entanto, essa fase de consciência pode ser transcendida pelo ser humano ético (de moral absoluta, do segundo molde), o "homem interior" de Platão, e também pelo herói (o ser humano de moral histórica, do terceiro molde). Como o pensamento de Hegel desloca os sentidos morais do indivíduo para a racionalidade dos seus coletivos, pois

"As leis da Ética não são acidentais, mas são a própria racionalidade"6

esse processo abre lugar, também, para o indivíduo que não tem importância moral ou histórica. A saber, a vítima (do quarto molde).

Essa construção hegeliana era historicamente muito perigosa. Em parte porque Hegel jamais deixou claro o que ele queria dizer com "Estado", em parte porque seus leitores escolhem o que querem lembrar do que ele teria dito.
Quando se entende Estado por "qualquer Estado", a posição de Hegel se torna absurda e seu cidadão, uma caricatura da moral.

Há os que comparam Hegel a Hobbes, segundo quem a obediência ao Estado é o maior dever civil, mas se esquecem de que o Estado hobbesiano não é um Estado moral no sentido hegeliano, e sim uma instituição pragmática para garantir a lei e a ordem, que não promove nem responde pelo encontro do Espírito do Mundo com o espírito individual.
Outros deliram ao considerar Hegel um democrata no mesmo sentido de seus contemporâneos das Revoluções Francesa e Americana, especialmente o poeta Walt Witmann e o filósofo John Dewey, que nele se inspiraram para promover a segunda, berço primeiro da democracia moderna.

Hegel tem um conceito muito baixo da dignidade e importância da cidadania. Nas suas lições de filosofia de história, as funções mais vitais da democraria, como as eleições, são como caricaturas. Ele não vê, como via Kant, incompatibilidade entre a organização militar e a democrática, e assim usa a militar como único exemplo da necessidade de obediência na democracia. Ele não vê isso trazer inconsistências ao seu conceito de Estado moral, qualquer que seja este ou sua definição, já que a organização militar não organiza vontades racionais. A democracia está suspensa na guerra. Por outro lado, como a guerra é, para ele, uma das expressões culturais do Estado, ou ainda, um meio de destruir Estados, isso faz da democracia um empecilho à criação de Estados
[como no atual jogo de palavras da realpolitik no Oriente Médio].

O indivíduo

Para Hegel, a moral do cidadão é apenas moral relativa. Não atinge o foro mais íntimo do espírito humano, que é o domicílio da moral absoluta, a qual está
fora do alcance do Estado. Lugar da Liberdade absoluta, pela qual o ser humano ético é responsável por si, onde o autodomínio socrático pode se abrigar para realizar o [que podemos chamar de] indivíduo interior. Lugar que

"[A]bsolutamente não está subordinado" -- nem à astúcia da Razão, nem mesmo ao curso da História -- mas que "existe nos indivíduos como inerentemente eterno e divino", e cuja "moral, ética e religião" jamais é propiciada, garantida ou suplementada pelo Estado6.

Temos aqui mais um elemento de influência hegeliana, que nos leva ao existencialismo. Como as lições de filosofia de história não esclarecem bem a diferença entre as duas modalidades da moral, relativa e absoluta, talvez porque Hegel não estivesse mesmo seguro a respeito, alguns intérpretes do seu sistema, como Kirkegaard, sustentam que ele interpreta mal o problema do indivíduo [sobre a sua natureza]. Enquanto outros preferem destacar, em Hegel, o primeiro filósofo a dar tratamento sistemático ao valor singular do indivíduo, em contraste ao decurso anterior da filosofia ocidental, de Platão a Kant, que tratava sistematicamente apenas o universal e o abstrato.

O herói

Entre o ser humano de moral relativa, cidadã(o) de um Estado, e o ser humano ético ou de moral absoluta, indivíduo interior, está o ser humano de moral histórica -- o herói ou heroína hegelianos. Como indivíduos, com seus ímpetos e poderes, eles não são nada mais do que matéria-prima do Espírito do Mundo, que os teria agarrado por alguma avassaladora paixão histórica. É assim que o Espírito abstrato adquire o poder concreto da realização. O indivíduo enquanto matéria-prima para a eficácia do Espírito do Mundo se faz força em essência, força motriz da história, cuja direção é dada pelo Espírito na ação heróica.

Em homens e mulheres históricos, desse tipo, o capricho dos desejos não se funde às leis objetivas do Estado, como nos cidadãos, mas antes, às demandas do Espírito do Mundo, que, pela ação deles, produz e transforma essas leis.
Heróis e heroínas no sentido hegeliano são, por assim dizer, a forma ainda fluida de Estados futuros e suas instituições. Sua moral não é a do Estado, mas a da formação do Estado. O Espírito do Mundo, como diz Hegel, esbarra por meio deles na superfície da realidade, pronto a rompê-la de dentro, como a uma casca de ovo chocado. A fonte da força heróica está oculta sob a superfície da realidade, enquanto ela age. O ser heróico tem acesso privilegiado à realidade da Idéia absoluta, e ela o inspira, preenchendo-o com uma vontade concentrada e fazendo dele, assim, sujeito da história. Isto é, sujeito de ações que trazem à luz o que ainda está oculto no ventre do tempo. O herói hegeliano é, portanto, quem empurra a história adiante.

Entretanto, o herói hegeliano é completamente orientado pelo Espírito do Mundo. O Espírito do Mundo
o utiliza, astutamente, para seus próprios fins. Porém, como no processo dialético o universal e o particular se medem, o herói deveria contribuir com algo mais do que sua força e vontade para o curso da história. Afinal, sua moral não se origina apenas do Espírito do Mundo, podendo também vir da sua ética, do seu absoluto indivíduo interior. Se Hegel tivesse desenvolvido mais o seu segundo molde, ele poderia ter inserido a espontânea individualidade no curso da história. Entretanto, ele não o fez. Para Hegel, o curso da história é impessoal. Por isso, o herói hegeliano pode se tornar (e deve, se sua ação for histórica) impessoal. A ponto de, inclusive, tiranizar indivíduos "menos históricos". Hegel é atormentado por isso mas está preso, por seu sistema, à necessidade do desenvolvimento lógico da Idéia Absoluta.

Assim aperece a mais séria deficiência da fundamentação moral do sistema hegeliano. Seu terceiro ser (herói) traz em si o segundo (indivíduo interior), de cuja dialética universal-particular emerge o quarto, que é a vítima. A moral é, para Hegel, uma questão mais coletiva que pessoal, porquanto quem aspira grandeza histórica se torna, quando "necessário", uma força individualmente imoral. É daqui que podem partir, e partem, os pensadores totalitários modernos. É aqui que teólogos e libertários, como John Stuart Mills, sentem calafrios e náuseas. É aqui que Hegel se torna, ele mesmo, herói histórico para totalitaristas de Esquerda e de Direita, âncora moral de feitos imorais.

A vítima

O herói hegeliano, através de sua percepção e energia privilegiadas, é o sujeito da história, ao passo que o indivíduo sem esses recursos é o objeto da história, sua vítima. Na lógica hegeliana, a vítima é
culpada, em certa medida, pela sua própria condição. Por não se mostrar à altura do momento, das possibilidades humanas na conjuntura histórica presente. A moral da vítima é uma quarta espécie de moral, distinta da primeira (moral do Estado, no cidadão), da segunda (moral absoluta, no indivíduo interior) e da terceira (moral do Espírito do Mundo, no herói). Esta quarta moral é aquela circunscrita à situação privada. É a moral do homem ou mulher comum, que prefere perseguir a felicidade individual à grandeza.

Hegel não vê grandeza nesse tipo de felicidade, na arte do indivíduo modelar sua vida unindo com êxito a sucessão de situações que escolhe viver. Essa "ética do sucesso particular
" não existe, para Hegel. Ao isolar-se em circustâncias imediatistas, delimitadas por ambição ou hedonismo (busca do prazer como bem ou fim em si mesmo), o indivíduo comum se isola do Espírito do Mundo e de seus processos. A História, em marcha, passa por cima dele. Este é um dos sentidos em que Hegel diz

"a história do mundo se movimenta em nível mais elevado que o da moral"6

Um indivíduo pode ser perfeitamente moral, nesse quarto sentido, e obstruir o curso da história; ou ser imoral nesse sentido, e fazê-la avançar. Para ser historicamente efetivo, e noutros casos para sobreviver, não basta ser moralmente bom no sentido privado. Deve-se estar plenamente alerta para a situação histórica e assim poder elevar-se à moralidade do Espírito, do Espírito do Mundo ou do Espírito abstrato. Não importa se o indivíduo vê ou não, se quer enxergar ou não a situação histórica, ele é parte dela. O ser humano, como indivíduo, é sempre ludibriado pelo Espírito do Mundo, seja ele seu agente (herói hegeliano) ou sua vítima (indivíduo comum).

Nesse duplo engano, o herói é desacreditado, invejado e traído. Seu trabalho é mal compreendido, por muitas vezes não caber na pequenez das mentes preguiçosas e mesquinhas de lacaios e parasitas históricos. Quando Hegel diz que a personalidade do herói "tem de pisar em muita flor inocente", não é Hegel, segundo seu sistema, que deve ser condenado e sim a História. As flores pisadas são pessoas que não conseguem ler os sinais dos tempos. O que acontece a elas, é o mesmo que acontece ao pedestre que desconsidera os sinais de trânsito.
[no nosso caso, o mesmo que acontece ao aluno de Segurança de Dados que desconsidera os sinais de orientação pedagógica, sobre, por exemplo, a importância de assimilarem o conceito de assinatura digital, preferindo entendê-los como ofensas à sua condição deficiente em formação acadêmica, equivalentes a provocações para briga].

Conclusão

Se vemos o tanque da história avançar em direção dialeticamente negativa, não temos necessariamente de segui-la, ou de sermos esmagados por ele. Podemos sair do seu caminho, como fez a maioria dos emigrantes europeus para as Américas. [ou como faz, no caso de Segurança de Dados, quem tranca a matrícula por deficiências acadêmicas, ou quem decide suspender a sua oferta] Se não o fizermos, nossa única alternativa será o papel duplamente trágico de Cassandra7, de advertir aos cegos em vão e cair com eles. Estaremos, nesse caso, escolhendo nossa queda com maior clareza do que o herói escolhe sua grandeza, pois o herói não sabe nem como nem quando vai cair. Assim, a tragédia da História é, em muitos sentidos, a tragédia da estupidez humana.

O matérial histórico do Espírito, o ser humano, é imperfeito. O propósito da história, segundo Hegel, é o de aperfeiçoar esse ser. Ao encarar assim a história, o filósofo a vê pelo ângulo teleológico (que busca propósito nas coisas), excluindo o contingente e traçando apenas o grandioso esboço do drama cósmico. Drama cujo detalhe humano, em geral,
é a tragédia. O ser humano não é apenas indivíduo privado. Mas ao se ver assim, expõe-se a atropelos, pelo processo histórico que despreza. Ele é também um indivíduo ético, com direito a entrar em dissidência com tal processo, tanto menos tragicamente quanto mais racionalmente. Entregue a paixões, ["Caçador de mim", na canção de Milton Nascimento] o herói hegeliano tende ao irracional, e portanto, a cair junto com as vítimas. Resta-lhe, porém, a moral intrínseca. Ainda o "homem interior" de Platão, já que a ênfase de Hegel na Liberdade como essência pura do Espírito, apesar de concretizável pela Razão absoluta, é traiçoeira, movediça.

A humanidade do ser humano, centro da religiosidade monoteísta (judaica, cristã e islâmica), é vista por Hegel mais na liberdade organizacional do Estado do que na intimidade individual da consciência. Dentre as derivações de sua obra, especialmente através de Karl Marx, produziu-se uma antítese da Idade Média que busca a eficiência econômica ou social, num entrechoque com a moral cristã. A tarefa do nosso tempo parece ser a de produzir uma síntese das duas; Ou, a de nos consumirmos (ou sermos consumidos) por uma, para a qual o imediatismo consumista, avaro-hedonista é caminho.

De volta à sua última pergunta, na linguagem dos tecno-cinéfilos, a escolha seria entre a pílula azul ou a vermelha de Matrix, e a resposta seria: "depende".  Só seria possível, saber quando se está sendo manipulado por interesses duma minoria, para aqueles que tiverem feito a escolha adequada. Azul ou vermelha8?


revisada em 19.09.06, 24.10.06

Bibliografia

1- Lectures on the Philosophy of History. Trad. ingl. de J. Sibree (Londres, Henry O Bhon, 1857, p. 18), op. cit. Cassirer, E., "O mito do Estado", (São Paulo, Codex, 2003)

2- The ethics of Hegel; translated selections from his "Rechtsphilosophie", de J. Macbride Sterrett (Boston, Ginn & Co., 1893), p. 142, op. cit. Cassirer, E., "O mito do Estado", (São Paulo, Codex, 2003)

3- Escritos de filosofia II; ética e cultura, de Lima Vaz, op. cit. Arnaldo Drummond, "A morte do Mercado" (São Leopoldo, Unisinos, 2004)

4- Historia da Filosofia antiga, de Reale, op. cit. Arnaldo Drummond, "A morte do Mercado" (São Leopoldo, Unisinos, 2004)

5- Philosophy of Right, de Hegel, § 340. Tradução de Dyde, op. cit. Cassirer, E., "O mito do Estado", (São Paulo, Codex, 2003)

6- A Razão na História, de Hegel, trad. Beatriz Sidou, São Paulo, Centauro, 2001.
   
7- Da mitologia grega, princesa troiana dotada de dom oracular, a quem ninguém acreditava (ver http://en.wikipedia.org/wiki/Cassandra)

8- bula em http://www.youtube.com/watch? v=BMR8BfItoNU&mode=related&search=



Papo cabeça na internet

Fê: E aí?
Dado: Firmeza. E aí?
Fê: Show de bola. Fez o homework?
Dado: Que homework?
Fê: O que a profe pediu .
Dado: Putz, caraca! A de história, né?
Fê: Só.
Dado: Que saco, esqueci! Qual que era a bagaça mesmo?
Fê: Espera que eu vou ver.....
Dado: Achou?
Fê: Espera, pô! Ah, tá aqui: diga por que o dia 31 de março mudou a
história do nosso país.
Dado: Tem idéia?
Fê: Nadica.
Dado: Então a gente se fala tipo daqui a pouco. Bj.
Fê: Bj.

(Meia hora depois.)

Fê: E aí, foi no Google?
Dado: Fui. E vc?
Fê: Total.
Dado: Matou a charada?
Fê: Matei.
Dado: Então fala aí, gata, por que o 31 de março mudou a históriado
nosso país?
Fê: Se liga: no dia 31 de março de 1889 a Torre Eiffel foi dedicada à
cidade de Paris.
Dado: Bizarro. Mas o que isso tem a ver tipo com o Brasil?
Fê: Ah, sei lá! Antes não tinha a torre, entendeu? Aí os brasileiros não
entravam numas de ir pra fora, conhecer o mundo. Fez a torre, aí abriu
pra ir, visitar e os caras começaram a viajar. Por isso que tem tanto
brazuca lá fora, tá ligado?
Dado: Louco.
Fê: Você achou algum treco?
Dado: Uma pá de coisa!
Fê: Fala uma.
Dado: Tipo, eu achei que nesse dia, em 1492, uns reis lá expulsaram os
judeus da Espanha.
Fê: E aí? Onde que o Brasil entra nessa?
Dado:É que aí os judeus tiveram que ir pra Alemanha, o Hitler caiu em
cima dos caras e eles vieram pra cá.
Fê: Pra Higienópolis?
Dado: Tudo a ver.
Fê: Sabe, cara, tô achando que pode ser outra coisa.
Dado: Tipo o quê?
Fê: É que eu também achei isso, ó: no dia 31 de março de 1900 saiu o
primeiro anúncio de carro da história. Era uma firma da Filadélfia,meu,
e eles publicaram o anúncio num jornal que chamava Saturday Evening
Post. Vai ver é isso, porque aí os brasileiros acharam o anúncio o maior
chique, começaram a comprar carro e acabou dando esses congestionamentos.
Dado: Sei não, nada a ver... Eu estou numa de que é uma coisa mais...
sabe?, um troço mais zoado.
Fê: Mas, meu!, o quê?
Dado: Sei lá, um treco tipo guerra, entende?
Fê: Nadica.
Dado: Eu li num lugar aí que teve uma revolução aqui.
Fê: Aqui? No bairro? Xi, agora só vou sair na rua de capacete.
Dado: Pô, gata, é sério!
Fê: Rs, rs, rs, rs.
Dado: Olha só: parece que teve uma revolução mesmo, tipo um negócio com
general.
Fê: Se liga, vc acha que teve guerra aqui?
Dado: Pô, de repente teve, sei lá...
Fê: Com esse negócio de espião, granada, metralhadora? Você pirou!
Daqui a pouco vc vai dizer que torturaram neguinho no Brasil.
Dado: Pode ser. Que nem fizeram no Iraque. Eu vi no YouTube.
Fê: Ai, meu, sei lá... pra mim isso é viagem sua.
Dado: Pô, a gente fica com o que, então?
Fê: Paris, meu. Relaxa que é aquele lance da Torre Eiffel.
Dado: Tá bom, vou na sua. Me atacha a sua pesquisa que eu colo no arquivo.
Fê: Tá indo... Tá indo... Foi.
Dado: Valeu. Agora eu vou jogar umas duas horas de Mortal Annihilation.
Fê: E eu vou dar um rolê no Shopping. Blz?
Dado: Blz.

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Joel Guilherme da Silva Filho
Criptografia e Segurança
Consultor