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A Volta do Coronelismo Renovado

Palestra proferida no Seminário do Voto Eletrônico

Sindicato dos Jornalistas do DF em 14/09/02

Rubem Azevedo Lima *
Presidente da Comissão de Ética
Sindicato dos Jornalistas de Brasilia


A preocupação unânime dos PhDs em informática, sobre os riscos do sistema de voto eletrônico, aparentemente irrefutáveis, na essência,  torna ainda mais chocante - para não dizer suspeita - a certeza  inabalável da Justiça Eleitoral, quanto à segurança desse processo de  votação, na medida em que, segundo os especialistas, ele não elimina a  hipótese de fraude em massa, nas eleições de outubro, por falta de auditagem completa.

Nesse pleito, embora de forma difusa, - sob influência de uma política econômica recessiva, geradora de desemprego e de pobreza no país e do país, os eleitores dão sinais de que  vão escolher não só um novo presidente, mas dizer sim ou não à ordem econômica  imposta pelo FMI ao governo Fernando Henrique Cardoso.  Em 1962, às vésperas da renovação do Congresso e dos governos estaduais, o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon, assinalava, para o Departamento de Estado, "o alto interesse das eleições brasileiras", nesse ano.

 "Está" - disse ele - "ocorrendo uma guerra política de grande importância. Temos interesse nos resultados e estamos usando nossa influência, para torná-los favoráveis".

 Parte da correspondência oficial da embaixada em Brasília, com Washington, foi publicada por René Dreifuss, em seu livro "1964: A Conquista do Estado" (pág. 335). Nele, o embaixador esclarece: "Nossa ´Equipe Nacional` ajuda a fortalecer os elementos do centro e moderados no Brasil".

 Com esse objetivo, tais agentes, nacionais e estrangeiros, conseguiram a cooperação de empresários dos grupos econômicos mais poderosos no país e no exterior. A relação  desses colaboradores - também está no livro de Dreifuss. Entre centenas de outros, citam-se a Esso, a Texaco, a Shell, o Bank of America, a Reader´s Digest e numerosos banqueiros: Olavo Setubal, Walter Moreira Sales, Magalhães Pinto (então candidato ao governo de Minas, para o qual seria eleito), Angelo Calmon de Sá e Herbert Levy, além de chefes militares, como o então general Golbery do Couto e Silva.

Da lista, consta, ainda, o nome de um jovem economista, que fazia, para o IBADE, análise das perspectivas econômicas do país. Seu nome: Pedro S. Malan, que, há oito anos, é o titular da pasta Fazenda, no governo Fernando Henrique Cardoso, com o nome sem o "S":  Pedro Malan.

  Começara a montar-se,  desde o final de 1961, já sob o governo trabalhista de João Goulart, - que assumira a presidência após a renúncia inesperada de Jânio Quadros, em agosto daquele ano -  uma poderosa estrutura alimentada pelos recursos do Fundo do Trigo, dinheiro das exportações, para o Brasil, do excesso da produção de trigo subsidiado nos Estados Unidos.

 Empresários brasileiros e de grandes corporações internacionais, assustados ante  a perspectiva das reformas preconizadas por Goulart, que ampliariam o poder do estado, com vistas às reformas agrária e do sistema financeiro, criaram uma organização de resistência a tais propósitos: o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBADE), sediado em São Paulo, com filiais no Rio de Janeiro e Brasília e escritórios em várias capitais.
  Integravam o IBADE algumas dezenas de parlamentares conservadores e de direita, num bloco  informal, a ADEP (Ação Democrática Parlamentar). Na estrutura da organização havia mais a APEC (Análises de Perspectivas Econômicas), na qual trabalhava Malan; o IPÊS (Instituto de Pesquisas Sociais), um departamento de imprensa, dirigido pelo escritor Rubem Fonseca, ajudado  por jornalistas contratados  em todo o país, e a CAMDE, Campanha da Mulher pela Democracia, - ligada à igreja conservadora - que o IBADE  utilizava em protestos e passeatas contra o governo.

 Essa estrutura complexa recebia, além dos  recursos do Fundo do Trigo, contribuições do empresariado nacional e estrangeiro, que, inclusive, foram aplicados na campanha eleitoral de 1962, para eleger governadores, senadores e deputados. Elegeram-se, então, oito governadores e entre 120 e 130 parlamentares, para o bloco da ADEP, nas duas casas do Congresso, a se instalarem em 1963.

 O objetivo dessa bancada era impedir a estatização da economia, proteger os investimentos estrangeiros,  barrar as reformas de Goulart e o que o IBADE chamava de "perigo de comunização" do Brasil. Durante a campanha, os dirigentes do IBADE baixaram instruções para que os candidatos se ajustassem à previsão belicosa de Lincoln Gordon. Atacaram, impiedosamente, os defensores das reformas, considerando-os "comunistas". Era a guerra psicológica sem quartel, deliberadamente deflagrada nos meios de comunicação de massa, para incutir, na mente dos eleitores, "o medo ao comunismo.
 

A REAÇÃO DA DIREITA

 Além da ação nacional do IBADE, contra Goulart, -  após as eleições de 1962, a Câmara federal criaria uma CPI para investigar essa entidade - outros grupos, ligados à Igreja, como a Ação Popular (AP), defendiam as reformas, embora num viés pretensamente democrático, de centro-direita, sem a amplitude que lhe conferia o  Bloco Parlamentar Nacionalista, dos deputados e senadores trabalhistas ou de partidos de esquerda, favoráveis a Goulart.

 O  núcleo da AP,  em S.Paulo, identificava-se  com as idéias do então deputado paulista, Franco Montoro, do Partido Democrata Cristão (PDC), afinado, por sua vez,  com a cúpula da igreja católica no estado. A AP era particularmente forte no meio universitário na Pontifícia Universidade Católica, a PUC, e nos círculos da Juventude Operária Católica (JOC).

Na ocasião, pontificavam na AP, duas personalidades que se projetariam, nacionalmente, apoiados que foram, em seus projetos políticos, por Montoro,  mais tarde governador de São Paulo: os estudantes José Serra e Sérgio Mota,  amigos, e, depois,  ministros do então sociólogo Fernando Henrique Cardoso, ex-professor da PUC. Esse último, ex-ministro de Itamar Franco, elegeu-se presidente em 1994, com o sucesso do Plano Real, e se reelegeu em 1998, graças a uma reforma constitucional que repetia, no Brasil, a façanha do ditador Fujimori, no Peru, e de Menem, na Argentina, ambos parceiros do FMI e simpáticos  aos EUA. A bancada governista no Congresso,  com o apoio de parte da oposição, aprovou a tese da reeleição. Muitos votos a favor dessa medida teriam, porém, sido  comprados.  O governo barrou a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, para apurar o assunto, embora quatro deputados admitissem ter recebido dinheiro de Mota.

 Começou a crescer, então, o prestigio de Mota e de  Serra, os ex-militantes da AP, supostos  antigos esquerdistas. Os dois apoiaram quase todas as teses neoliberais de Fernando Henrique: abertura do mercado interno, privatização das estatais, desregulamentação da economia etc.

Ao empossar-se nas Comunicações, Mota - do mesmo partido do presidente e de Serra, o PSDB, cujo símbolo é um tucano - anunciou, enfaticamente: "Nós, tucanos, vamos governar o Brasil por  mais de vinte anos".
E, para isso, ele começou a  trabalhar, em surdina, pela aprovação de uma proposta de emenda constitucional, - praticamente esquecida - que dava o direito de reeleição ao presidente e aos governadores, o que a Constituição de 1988 proibia de forma expressa. Ao fazê-lo, com tal antecedência, Mota estava autorizado pelo presidente, seu amigo.

Na ocasião oportuna, a reeleição foi aprovada. Serra, outro ex-militante da AP, elegera-se, em 1963, presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), posta fora da lei pelo movimento militar de 1964. Com Fernando Cardoso na presidência, ele seria, primeiro,  ministro do Planejamento, juntamente com o ex-colaborador do IBADE, Pedro Malan, titular da  Fazenda,  Em seguida, ocuparia o Ministério da Saúde.
 O ex-senador Mário Covas, outro tucano,  deputado cassado pelos militares, em 1969, e líder atuante na Constituinte (1987-1989) - na qual defendera posições nacionalistas e estatizantes - elegera-se governador de São Paulo, com apoio de Montoro. Ele fora um dos parlamentares ajudados e  eleitos pelo IBADE em 1962.. Ao assumir, porém, o governo paulista, em 1994,  abjurou de suas posições na Constituinte e fez candente elogio do neoliberalismo, ajustado ao ideário daquela organização, para a qual, no entanto, jamais parecera ter trabalhado.

O bando tucano, sediado no maior centro industrial do país, preparava-se para  os anos de governo previstos por Mota, o privatizador do sistema de telecomunicações do país, montado inteiramente pelos  militares de 1964.
   Por ironia, ao assumirem o poder, graças ao movimento vitorioso nesse ano, com apoio dos EUA, - em nome do ideário da livre empresa e da redução do papel do estado -  os militares fariam exatamente o contrário do que Washington esperava. Criaram dezenas de novas estatais, e, a pretexto de reprimirem o comunismo tarefa que os governos americanos, deram ainda mais poderes ao estado. Mas os antigos radicais da AP e ex-parlamentares, que haviam combatido o IBADE,  desmontaram,  uma a uma, quase todas as estatais  criadas pelos militares.

Com o movimento de 1964, Fernando Henrique saiu do Brasil. Foi para o Chile, para a França e  os EUA. Lecionou sociologia em universidades desses países e trabalhou na  CEPAL, organismo da ONU, recebendo ajuda financeira da Ford Foundation, para suas  pesquisas sociológicas. Serra fez trajetória parecida. Como presidente da UNE, o orador reformista no comício das reformas,  em março de 1964, - um dos pretexto para a deflagração do movimento militar -  saiu do Brasil em julho desse ano e só voltou após a anistia de 1979, doutor em economia pela universidade norte-americana  de Cornell.
 

GUERRA QUE NÃO HOUVE

Nos debates sobre a sucessão,  o ex-presidente da UNE disse ter enfrentado a ditadura militar de 1964. Na verdade, além do discurso contra o golpe em marcha, nesse ano, ele vivera, até a anistia de 1979, no exterior, não tendo sido atingido por nenhuma sanção do regime militar.
  Fernando Henrique declarou a um jornalista, no tom de brincadeira que usa para dizer verdades, - não se sabe se aludindo à pequena mentira bélica do amigo -  que Serra. "para conquistar o poder, é capaz de passar por cima da própria mãe".

 Suas ações parecem confirmar o dito presidencial. Além do combate que não combateu, mas, pelo jeito, gostaria de ter combatido, ele é um dos suspeitos dos amigos do ex-presidente Sarney, de haver derrubado as candidaturas presidenciais de  Roseana e de Itamar Franco. Sua campanha atual, embora de responsabilidade do marqueteiro Nizan Guanaes, é das mais contundentes, notadamente contra Ciro Gomes. A equipe de Serra diz, ainda, que, na hipótese de segundo turno eleitoral, o presidenciável tucano será duríssimo com Lula, o presidenciável do PT, líder nas pesquisas.

 Mas, pelo bom tratamento que ele e os tucanos saídos do Brasil tiveram no exterior, e considerados seus votos no Congresso,  fica a impressão de que as reformas por eles defendidas, na AP, eram  as que Fernando Henrique está fazendo ou já fez. Como os socialistas diziam, então, eram reformas para não reformar nada e poupar, portanto, as estruturas de injustiças sociais, criadas pelas elites brasileiras e consolidadas em São Paulo.
 As suspeitas de Sarney, em relação ao pleito, levaram o ex-presidente, em discurso no Senado, a pedir a vinda ao país de observadores estrangeiros. Deu-se pouca importância a esse apelo. Atualmente, no entanto, embora não o digam com clareza, muitos oposicionistas estranham a insistência do presidente do TSE e ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim -  ex-deputado,  que morou em Brasília no mesmo apartamento de Serra - em resistir à idéia de auditoria das urnas eletrônicas e às recomendações dos técnicos,  para assegurar  a lisura nas  eleições de outubro.

    Mortos  Montoro,  Mota e Covas, a turma de tucanos  da ex-AP  ou dos militantes dessa organização, nos anos 60, reduziu-se praticamente a Serra, que, para Ciro Gomes,  é uma pessoa inescrupulosa. Por isso, e por outras coisas, tudo é considerado possível nas próximas eleições, face à  exigência do FMI, feita a Fernando Henrique Cardoso, - e por ele retransmitida a quatro dos seis presidenciáveis - de adoção de um compromisso prévio de todos eles  com as diretrizes  que o  Fundo traçou para o Brasil e seu futuro governo. A mesma exigência, aliás, foi levada  por Anoop Singh - novo chefão do FMI na América Latina -  aos presidenciáveis argentinos. Lá, também um só candidato - aqui foi Serra - aceitou bem o acordo com o Fundo:  o ex-presidente Menem. Que, como Fujimori e Fernando Henrique, teve apoio dos EUA e do FMI, para reeleger-se.

Acontece que a ascensão de Anoop Singh à chefia do FMI, na América Latina, é  péssimo sinal para os países do subcontinente, que o presidente Bush, na opinião de Fernando Henrique, julga irrelevante. Singh esteve na Ásia, em missão do FMI. Deixou, ali, um rastro de devastação, destroçando as economias da Tailândia, Indonésia e Filipinas, e obrigando ainda a Coréia do Sul a abdicar do controle soberano de seu sistema bancário. Quanto ao Brasil, somem-se às ameaças do FMI, as pressões de Bush, para impor-nos a ALCA e a cessão da base de Alcântara.

Político de temperamento forte, Serra - diz-se -  não desperdiça as chances que se lhe oferecem. Por isso,  dadas as circunstâncias, teme-se que elas lhe sejam proporcionadas até sem que ele as solicite. Como, por exemplo, no caso da urna eletrônica, e seus pontos fracos. Ninguém pode garantir que um agente mal pago do judiciário, responsável pela preservação de tal sistema  - alguns ganham apenas R$ 200 por mês - não seja tentado a distorcer a verdade eleitoral e aproveite as falhas da urna, sob a ótica de que as cifras das pesquisas eleitorais já estejam viciadas, e, assim, aja para dar a Serra o primeiro prêmio da sucessão. O que - vale dizer - resolveria boa parte das preocupações de Fernando Henrique quanto a seu futuro.

De resto, a justiça eleitoral tem dito mentiras. Em 1996, veio ao Brasil um técnico americano, para ver o funcionamento das urnas eletrônicas. Ele achou interessante o sistema, - oferecido pelo Brasil, sem sucesso, a vários países - mas lamentou que seus programas não comportassem auditagem. Disseram-lhe que as urnas haviam sido auditadas, por técnicos brasileiros de todos os partidos. Conversa fiada. Só agora o TSE está aceitando que se faça auditoria, mas com uma exigência: o partido que a pedir terá de pagar uma taxa de R$ 200 mil.

Nos bons tempos, o preço da democracia era mais barato: era só a eterna vigilância  do brigadeiro Eduardo Gomes. E, nas  eleições a bico de pena, muita gente ia às urnas com cédulas que os coronéis eleitorais sequer lhes permitia conferir, alegando que o voto era secreto. Agora, o novo coronel é a  urna eletrônica. Para digitar os votos em tantos candidatos ao mesmo tempo, o eleitor leva sua "cola", a fim de não cometer enganos. Com isso, fica, pois, sob controle de  cabos eleitorais.

O eleitor vota, confere o voto e o registra. Num passe de mágica, o voto some no âmago  do computador e, em alguns lugares, aparece na janela da impressora.  De qualquer modo, não há garantia de que esse voto não seja desviado para outros candidatos.  Para realizar - quem sabe ? - a previsão  de Mota, as conveniências do FMI ou seja lá de quem  for, pois a fraude em massa é possível.

Tudo isso devido à teimosia do TSE ou  por não disporem as oposições de R$ 200 mil! Virão mais quatro anos para preservar a economia política  do tucanato ? Será esse o  prazo de que precisa o FMI de Anoop  Singh, para completar a demolição do que resta de soberania nacional ? Se assim for,  será a vitória do espectro do IBADE, sobre um país devastado pela  globalização neoliberal, com doze milhões de desempregados, vinte milhões de miseráveis e 115 milhões de eleitores que nem desconfiam do papel de bobos que possam fazer, ao votar no dia 6 de outubro.



* Rubem Azevedo Lima é presidente da Comissão de Ética do Sindicato dos  Jornalistas de Brasilia.
Participou, juntamente com o editor e com o moderador do Forum do Voto Eletronico, de mesa-redonda sobre o tema promovida pelo Sindicato, transmitida ao vivo pela TV Comunitaria de Brasilia  em 14 de Setembro de 2002.