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Cientificismo, Hipóteses Intestáveis, Raciocínios Circulares


Pedro A. D. Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
  1 de Fevereiro de 2013


Muitos acreditam que a Ciência se distingue de outras formas do saber devido ao método pelo qual ela acumula conhecimento: um método que a permite evoluir sem precisar recorrer a fé ou a dogmas, dentro dos seus limites. Outros vão além, acreditando ser ela por isso privilegiada como forma de acesso ao conhecimento do que é verdadeiro. No século XIX a escola de pensamento baseada nesta segunda crença ganhou o nome de cientificismo. Mas sem conhecimento suficiente dos limites naturais do que seja "método científico", e de como o empreendimento científico é socialmente construído, este "ir além" desliza essas duas crenças para uma contradição performativa. Este artigo é uma reflexão sobre tal deslize.

Hegel e Kant

Ninguém, sob qualquer ideologia ou princípio filosófico, está livre de hipóteses não testadas ou intestáveis e de raciocínios circulares ao pensar, ao exercitar a capacidade cognitiva da mente humana seja em si ou em tese, principalmente na busca de limites nesta capacidade. Assim começa a crítica de Hegel a Kant, ou seja, do pai filosófico do materialismo pós-moderno, a quem primeiro buscou sistematicamente enterrar a metafísica com a razão, no albor iluminista da revolução científica.

Embora isto possa parecer contraditório, Hegel ergueu tal crítica para defender a entronização kantiana da razão contra o ataque filosófico de seu antípoda, o ceticismo analítico de David Hume. Mas o cientificismo fundamentalista, herdeiro do positivismo científico que no século seguinte se impusera como sucessor daquele trono à racionalidade, entorpecido pelo sucesso de teorias científicas que se frutificam em prodigiosas tecnologias, despreza e abandona essa crítica hegeliana em favor de uma crença que casuisticamente elege para ser seu inquestionável, se não imutável dogma. A saber, a crença de que "dado" e "informação" são entes com status ontológico próprio, ou seja, entes que existem em forma pura no Universo.

Este dogma é necessário para ofuscar circularidades na hipótese de que o método científico é essencialmente a única forma possível, natural e auto-corrigível, de se extrair tais entes de onde eles existem, puros por si mesmos, para dentro da mente humana, e de lá alojá-los em dinâmicas teorias transmissíveis e testáveis, que os correlacionem. Ao aceitar essa camuflagem pela qual o tal método se isenta -- até em suas técnicas extratoras e testadoras -- da sua própria meta purificadora do saber, o cientificismo se entende, e põe-se a vender a Ciência, como forma e meio de saber privilegiados por supostamente estarem isentos de hipóteses intestáveis e de raciocínios circulares, com as hipóteses não testadas debitadas ao caráter temporário de suas verdades. A fé aqui, como crença, é no método.

Ciência e Filosofia

A filosofia, entendendo-se não mais como a forma privilegiada de saber, como ela se via até aí (até a aceitação cultural dessa camuflagem, ante os sucessos da tecnociência, como face real da mesma), põe-se então em modo de auto-crítica, como é próprio de seu método, o escolástico. Tal auto-crítica se confronta de saída com um fato central e diferenciador: embora ambas (ciência e filosofia) ofereçam ao entendimento humano verdades temporárias, as da ciência ganham ares de definitivas ante o testemunho de suas aplicações. Num mundo basicamente materialista elas os ganham pelo selo de absoluto sucesso, que suspende o julgamento dos seus derradeiros impactos para o futuro do ser humano -- pilar do humanismo que sobrou do enterro da metafísica --, julgamento que assim fica entregue a um "soberano" acaso. A fé aqui, como esperança, é no próprio homem como capaz de evitar certos impactos agindo por vontade racional e coletiva sobre tal soberania.

Essa auto-crítica promove então um salto evolutivo na filosofia que ficou conhecido como "virada linguística." Nessa virada, as condições para o pensamento e suas bases são radicalmente revistas. E nessa revisão, nada impede que algo visto aqui como "conto da carochinha" por alguém, surja ali com status de dogma imutável para outrem; e acolá, vice versa. Como decretou um de seus pioneiros, Ludwig Wittgenstein, para impulsionar essa virada: "A filosofia é uma batalha contra o enfeitiçamento da inteligência por meio da linguagem." (Philosophical Investigations, s.111. 1953, trad. G. Anscombe). No campo epistemológico, esta batalha tem seu mais vibrante testemunho no legado de outro filósofo, este da ciência e falecido há menos de 20 anos, Paul Feyerabend, em suas obras "Against Method", "Science in a Free Society" e "Farewell to Reason."

Mas é no cerne da filosofia da linguagem que o status de máscara dessa camuflagem, nessa virada, se revela. Mais precisamente, na vertente que aborda a linguagem como instrumento para práticas sociais. Em sua crítica social da ciência, no livro “Conhecimento e Interesse” (1968), Jürgen Habermas (ainda vivo) argumenta que há uma relação inevitável entre os mé­todos e os interesses que guiam o conhecimento. Habermas entende, seguindo o viés pragmático da semiótica de Peirce, e outros pioneiros da virada linguística como John Austin (Teoria dos Atos de Fala), que a análise desta relação revela só ser possível a crítica do conhecimento como teoria da sociedade. Em seu livro "O Rumor da Língua" (1986), o filósofo, sociólogo e semiólogo Roland Barthes acrescenta: "O Real só conhece distâncias, o Simbólico só conhece máscaras". Assim, face à almejada crítica social, nessa análise o status ontológico de "dado" e de "informação" se relativizam.

Dado e Informação

Nessa análise, "da­do" é tido apenas como grupamento de símbolos, codificados por si­nais para representar informações. Onde símbolos são apenas padrões de sinais, padrões que só existem no domínio das formas, que são em si alheios ao que possam re­presentar, e que só representam algo em face de algum código. Já "informação", só existe na mente de quem a percebe de dados, pela instrumentação de códigos e linguagens em algum contexto. O contexto da comunicação é que gera informação, nessa mente: ele in­duz um receptor cognitivamente dotado (através dessa mente), numa determinada situação transmissiva, a acionar um pro­cesso representacional, instrumentado por seleção de competências internas disponíveis, processo que lhe ex­trairá in­formação – conforme Shannon – a partir de sinais percebidos, para seus possíveis significados.

Como combustível para a produção de significados, entram inevitáveis crenças, no papel essencial que a noção de confiança desempenha neste processo (de semiose). É ela (confiança), segundo entendo Gerck ("Towards real-world models of Trust"), que seleciona e conecta competências cognitivas inter­nas para o pro­cesso representacional que gera informação (a partir de dados percebidos através de alguma codificação pré-selecionada). É ela que situa interesses do receptor no contexto, para relacionar e organizar tal informação em sentidos plausíveis e valores aduzíveis. Tudo mascarado na Ciência como "objetivo" por um ente chamado método, imutável e inquestionável para o fundamentalismo cientificista, indiscutido e não questionado pela sociedade em períodos de sucesso.

Mas na história humana não há caso de sucesso que sempre há durado, e a crença básica do cientificismo portanto extrapola ao presumir que o dela será o primeiro. De fato, basta que esta sua prática esotérica de coisificar dado e informação (como entes ontologicamente autônomos) se dissemine a outros empreendimentos humanos, como o Direito e a Justiça frente aos desafios do virtual, como se vê na radicalização normativa para exploração do ouro-de-tolo chamado "propriedade intelectual", para começarmos a colher dúvidas a respeito. Neste caso, a colher impactos nefastos dessa prática, semeados pelo soberano "acaso." O feitiço virá contra feiticeiros, e essa colheita descortinará o valor social da virada linguística e da crítica habermasiana perante as derradeiras consequências da arrogante auto-suficiência do cientificismo. Chamemo-las do que queiram, tenham elas ecos ou não em textos aqui ou alhures entendidos como sagrados.




Autor


Pedro Antonio Dourado de Rezende é professor concursado no Departamento de Ciência da Com­putação da Universidade de Brasília. Advanced to Candidacy a PhD pela Universidade da Cali­fornia em Berkeley. Membro do Conselho do Ins­tituto Brasileiro de Política e Direito de In­formática, ex-membro do Conselho da Fundação Softwa­re Li­vre América Latina, e do Comitê Gestor da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-BR), en­tre junho de 2003 e fevereiro de 2006, como representante da Sociedade Civil. http://www.­pedro.jmrezende.com.br/sd.php


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Pedro A D Rezende, 2013:  Este artigo é publicado no portal do autor sob a licença disponível em http://creativecommons.org/licenses/by-nc/2.5/br/