Guerra dos browsers e a revista Veja
Publicado no Observatório da Imprensa em 21/11/01 Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasilia
15 de Novembro de 2001
Numa reportagem na sessão Hipertexto [pág. 102, edição de 14/11/01], Veja mantém seu viés superficial e distorsivo num tema muito importante para a sociedade a revolução digital, ao informar seus leitores sobre as práticas da maior empresa de sofware do mundo. Repete o padrão exibido há menos de três meses, quando, em 26/08/01, em nota superficial e alarmista, escamoteou, pela terceira vez consecutiva, a responsabilidade social da empresa pelas mazelas que afetam quem depende de seus produtos, hoje fetiche de grife. A revista fez isso ao reportar sobre o vírus Nimda, num padrão de atitudes que vem se consolidando nas suas páginas ao longo de episódios anteriores equivalentes, quando do surgimento dos vírus Melissa, ILoveYou e CodeRed.Daquelas vezes, preferiu omitir o fato de que o novo vírus explora vulnerabilidades de apenas um dos vários programas de correio eletrônico, e apenas um dos vários programas de servidor web disponíveis na internet. Os da empresa. O argumento de defesa da empresa, que poderia justificar a omissão, tem sido o de que seus produtos são mais usados e, por isso, mais visados. Mas isto é meia verdade e meia mentira. É verdade só com o navegador, e não com o servidor. O Code Red e o Nimda exploram vulnerabilidades do servidor Web da empresa, que só anima um em cada cinco servidores web da internet, mas que é a porta de quatro em cada cinco invasões de que ficamos sabendo. Este tipo de omissão não é próprio do bom jornalismo, já que o leitor, se bem informado, poderia melhor julgar a relação custo/benefício na escolha de produtos, no mercado em que concorre a referida empresa. Que, por sinal, é anunciante de Veja.
Veja poderia ter, por exemplo, informado que as falhas exploradas por esses vírus decorrem de imprudentes decisões de projeto da empresa, no sentido de ignorar recomendações do Internet Engineering Task Force sobre como os softwares que atuam em rede aberta deveriam implementar a interpretação de conteúdo MIME, visando a confiabilidade no seu funcionamento. Poderia ter feito isto sem com isso fornecer a receita de bolo para os hackers, a mais nova "justificativa" da empresa para tentar censurar informações sobre falhas em seus produtos. Mas Veja preferiu acobertar o descaso com a segurança do internauta pela empresa produtora dos softwares que os vírus exploram. E se recusou a abrir espaço a críticas de leitores à sua abordagem sobre o assunto.
Agora, na edição de 14/01/01, o assunto é jurídico e o viés é mais insidioso. Matéria assinada por Gustavo Poloni informa sobre o acordo da empresa com o Departamento de Justiça americano para encerrar o "caso" que, segundo o autor, "ninguém arrisca a dizer se está perto de seu último capítulo". Se o jornalista tivesse entrevistado alguma autoridade em segurança computacional na sociedade que sua revista propõe servir, poderia facilmente ter encontrado alguém com um forte palpite. Mas o repórter provavelmente nunca entrevistaria fontes independentes, pelo mesmo motivo que Veja nunca publica as cartas ao editor que essas fontes (eu, inclusive) enviam sobre o assunto. Pelo menos até agora, os leitores de Veja só podem lê-las no Observatório da Imprensa.
Por que o viés na referida matéria é insidioso? Porque a revista dá a entender ao leitor que vai explicar o "caso", resumindo-o em seus episódios mais importantes, enquanto seus critérios para julgar importância não passam por crivos de equilíbrio que seriam bons norteadores de um jornalismo isento. Por outro lado, os episódios mais importantes no seu resumo coincidem com a opinião da propaganda da empresa, que tem 30 bilhões de dólares em caixa para "explicar" o caso.
Veja afirma que, em 2000, "o juiz Thomas Penfield Jackson conclui que a Microsoft abusou do seu gigantismo e manda dividir a empresa em duas". E que, em setembro de 2001, houve uma "reviravolta no caso". A reviravolta que diz ter havido foi apenas a aceitação de recurso em segunda instância quanto à pena estabelecida em primeira instância. E não à condenação, que foi mantida. A revista prossegue, resumindo: "O Departamento de Justiça afasta o juiz Jackson do caso e diz que não vai mais dividir a Microsoft", para depois falar do acordo "para encerrar o caso", o qual, no entanto, 9 estados americanos rejeitaram, em novembro deste ano.
Veja omite, como o fez também toda a grande imprensa, o mais importante passo do processo, ocorrido entre setembro e novembro de 2001. A confirmação, em terceira instância, da condenação propalada em primeira e confirmada por unanimidade em segunda instância. No dia 9/10/01, numa decisão que a Corte Suprema americana anunciou sem oferecer comentários, fica mantida a condenação da Microsoft por práticas mercantis monopolistas predatórias. Só depois disso a empresa resolveu "negociar" a sério sua pena. Não se trata de se negociar a admissibilidade das acusações, como insinua a revista, junto com o resto da grande imprensa e a propaganda da empresa. Alguma empresa do porte da Microsoft se sujeitaria, no coração do fundamentalismo de mercado, aos controles listados neste acordo, pela doçura dos corações dos seus executivos?
Para se inteirar desses detalhes, digamos, menos importantes, o leitor não pode confiar em Veja nem nos jornais. Parece que estes superficiais detalhes dão mais alergia nos editores das publicações em papel (veículos cujo combustível são os anunciantes) do que pó de antraz. O que resta à empresa negociar com 9 estados americanos, e o que levou o tribunal de segunda instância a afastar do caso o juiz de primeira instância (Penfield), é o fato de que o processo se desdobra em duas fases, sendo que a segunda fase a fase de apenação (remedy) ainda não está concluida. Foi desta fase que Jackson foi afastado. Ao falar da "reviravolta", Veja omite o que ficou sem revirar, em setembro.
Liberdade e... liberdade
Ao recorrer à segunda instância para anular todo o processo, o que a empresa não conseguiu revirar foi a própria condenação por práticas predatórias (sessão 2 do Shermans Act, a principal lei antitruste americana deste 1917). Por 7 votos a zero, a condenação propalada pelo juiz Jackson foi mantida. Mais fácil do que a decisão sobre a intenção de quem bota fogo em índio.
A "reviravolta" a que se refere a revista foi devido à derrota da empresa em segunda instância não ter sido completa: o tribunal anulou apenas a fixação da pena (segunda fase do processo), para cuja revisão o juiz de primeira instância foi afastado. Quanto à primeira fase, a empresa recorreu à terceira instância, onde perdeu novamente. A primeira fase do processo estaria já selada, trasitada em julgado, caso a decisão da Suprema Corte americana tenha sido unânime. Mas como saber se foi ou não?
Das duas uma. Ou a revista não foi atrás dessas informações ou as julgou desimportantes. De qualquer modo, o assunto pode transmitir infecção cutânea nas redações. Porém, podemos ler nas entrelinhas. Podemos intuir que não cabe mais recurso à primeira fase do processo, pois a empresa parou de falar que o juiz Penfield está errado e é louco, que ela não é monopolista, que ela vai reverter tudo no final e ser inocentada nos tribunais. Ela agora fala em acordo. Falta dizer que o acordo não é sobre o mérito da acusação, mas sobre o castigo que lhe cabe.
O que está por trás deste castigo, assunto do acordo, são os meios práticos de se negar o direito da empresa se apossar, através do "efeito rede", dos padrões abertos que tecem o teia do ciberespaço, alijando a concorrência e vestindo de irreversibilidade a seu poder econômico e monopolizante. Se o acordo não for bem negociado, este "direito natural" do capital não será controlado. Se não for, o escorpião poderá picar o elefante que lhe leva nas costas, a cruzar o rio da globalização.
É claro que um governo que reza a cartilha do fundamentalismo de mercado acha que qualquer castigo no caso é demais. Esta cartilha não vê o "caso" como o do escorpião que pede ao elefante para atravessar o rio, mas como o da princesa que é raptada por alguma bruxa. Aí, se faz qualquer acordo pela princesa. Se Penfield tivesse melhor escolhido o personagem da história para ilustrar sua opinião sobre o "caso", poderia ter sido tão fiel e contundente como foi (ao mencionar Napoleão) sem apertar seus colegas de segunda instância sobre a lisura do seu julgamento. Bill Gates teria provavelmente se sentido lisonjeado, em vez de insultado, caso Penfield o tivesse comparado a Creso.
Estamos no meio de uma revolução, na qual a violência é simbólica. Nela, as vítimas são enredadas em sistemas de crenças sem que disso percebam. Como a do fundamentalismo de mercado, que prega a supremacia da liberdade do capital sobre a liberdade humana. Nesta revolução, devido a sua posição como veículo de informação e revista brasileira de maior circulação semanal, Veja não pode ignorar os motivos que levaram tal empresa a ser condenada por abuso de poder e, pricipalmente, o fato de que o foi pela própria Justiça no berço deste fundamentalismo. Quem ignora isso comete os mesmos abusos.