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O que "propriedade" tem a ver com intelecto?


Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
5 de Junho de 2009




Noção jurídica

Uma propaganda massiva enquadra esta questão na ordem do dia das opiniões publicadas, para ir já dando uma resposta simplória ou implícita, do tipo "tudo a ver". Em meio às formas retóricas de colocá-la, uma tem sido recorrente -- para não dizer plagiada (o que seria ofensivo a quem dela se vale) --, levando-nos a refletir. A refletir sobre o não-dito nos muitos contextos onde exausitva e retoricamente se pergunta:

Se meu carro não pode ser seu, só porque voce quer, por que minha música poderia ser?

Das várias maneiras de se responder à questão, ou de se construir dela um argumento, quem insiste nela quer, via de regra, insinuar uma resposta simplória, de que "não pode". Mas o intelecto tem, pelo menos, que entender o conceito (de "propriedade"), no que cabe então antes perguntar: Por que tanta insistência nesta metáfora insinuadoramente simplória?

Pode ou não pode?

Voce pode, sim, compartilhar coisa que não é sua, em várias situações óbvias. Pode compartilhar o que não é de ninguém por ser de todos ao mesmo tempo. Aquilo que, por óbvio, pode ser usado e compartilhado por qualquer um, materialmente ou não, como o ar e o idioma por exemplo. Se você estiver num ambiente social fechado estará compartilhando aquilo que inala e aquilo que exala, com os demais presentes.

O domínio de um idioma, idem. Tal coisa está em discursos e obras autorais bem lapidadas (conjugação correta, concordância, sinonímia, rima, métrica, enredo coeso, outras figuras de estilo, etc), em tudo que permite e edifica a comunicação através da linguagem, e que não pode -- nem deve -- ser confundido com plágio ou apropriação indébita, no sentido imoral ou ilegal que aquela propaganda tenta impingir ao ato de se compartilhar criações do espírito. Todas essas coisas não só podem, como devem ser compartilhadas, a bem da coesão social e da utilidade disto do qual todo ser social carece ter algum domínio.

E também coisas que "tem dono", em certos casos podem sim, ser usadas e compartilhadas, se uma licença assim o permitir. Prévia e inominadamente, no caso de licenças permissivas para obra autoral, como as licenças Creative Commons por exemplo. A opção de licenciar assim uma obra é um direito autônomo e soberano que o autor da obra tem, pela mesma lei que impede a terceiros de usufruir ou compartilhar da obra, na ausência de uma tal licença, sem prévia autorização.

Fronteiras e fronteiras

Carro é objeto cuja fronteira e cuja natureza rival (no sentido econômico) são bem caracterizadas e incontroversas. Da lataria para dentro é carro, para fora é não-carro, todos concordam. Se eu me apropriar do seu carro você fica sem ele, se ninguém se apropriar, ele continua seu. E quanto às criações do espírito? Para estas, aliás, ao contrário de objetos materiais como o carro, seu valor de uso só aumenta com o compartilhamento, e só diminui com o cercamento promovido pela proprietarização do seu gênero.

De que vale um idioma que só uma pessoa fala, ou um formato de arquivo que só um exemplar de software é capaz de ler ou gravar? Criações do espírito têm valor de uso nulo sem compartilhamento. São bens não-rivais. Por isso, a proprietarização de coisas criadas pelo espírito, ao arremedo de objetos materiais (como por exemplo as  representações físicas dessas obras), serve apenas para lhes estipular algum valor de troca. Porém, há um problema prático, de natureza semiológica, a ser antes resolvido: essas coisas não apresentam, em si, superfície onde se possa colar etiqueta de preço. Inventar um grude e chamá-lo de PI, ou de "PI forte", literalmente não cola.

O que nos leva a perguntar por que faria sentido estipular valor de troca a puras criações do espírito. Para multiplicarem-se riquezas individuais, assim do nada?  Cobrando-se "por acesso" a coisas do espírito já criadas, onde possível? Uma tal resposta, explícita ou insinuada, é pura ideologia, e das mais toscas. Não, NÃO SERÁ DO NADA, e crer que pode ser é o grande engôdo da agenda ideológica da PI. Não é nem do nada, nem do esforço criador, que se multiplica riqueza estipulando-se valor de troca a puras criações do espírito.

Existe almoço gratis?

É na conta do acesso a criações anteriores, e só nela, que esses etéreos valores de troca pós-fixados e ubíquos são e serão faturados. É à custa dos insumos para criações do meu, do seu e do nosso espírito, cujo acesso essa agenda ideológica quer, a ferro e fogo, catracalizar.  É com o cercamento e catracalização das fontes de criação do espírito, do acesso a seus insumos, que se debita o custo social dessa corrida do ouro virtual, promovida por uma economia cujo fetichismo se conota naquela pergunta retórica recorrente.

Diferentemente de um carro físico, uma coisa do espírito criada e por lei proprietarizada requer juristas, advogados e operadores do Direito para estabelecer onde ficam as fronteiras de sua posse, usufruto e gozo, ou situações nas quais alguma dessas fronteiras teria sido ilegalmente ultrapassada. Essas fronteiras são as últimas do capitalismo, limite final da fetichização que tal forma de organização social promove com o conceito de mercadoria. É natural, então, que tal fetichismo queira confundir, e confunda, esses dois tipos de "propriedade", como dois gatos pardos na noite escura da mesquinhez humana.

Para quem se mesmeriza nesta parda promessa de enriquicemento lícito, com a venda de acesso a coisas já criadas do espírito, acesso a coisas que virtualmente nada custam replicar, isto pode parecer lógico. Eficiente. A venda de licença para cada acesso digital, com custo marginal irrisório, não seria um forma de multiplicar pães e peixes? Mas basta lembrar o próprio fundamentalismo mercadista, que apregoa não haver "almoço grátis", para se perceber que deve haver aí alguma confusão. De fato, não se trata de milagre econômico proporcionado pela tecnologia, pois tal forma de almoço tem seu custo social.

E se eu cobrasse pela música que é cantada em seu banheiro? E se a companhia de saneamento avisasse, em letras miúdas no rodapé da fatura, que voce já está recebendo a água do seu banho com nanocâmeras de monitoramento sem fio, escondidas em borbulhas, para eu fiscalizar via Internet minha cobrança pela cantoria, à la DRM?

É claro que a questão social deste "almoço" tem também um outro lado, para o qual também existem riscos de simplorização: o lado dos custos individuais de criação (no caso da música, de composição, execução, gravação, masterização, etc). Este lado ergue o problema de como cobrir tais custos num contexto em que a tecnologia autonomizou as criações do espírito em relação aos meios físicos de fixá-las. Nesse contexto, as superfícies para colar etiquetas de preço se esboroam. Mas a censura ideológica à questão como um todo, a que descarta a priori soluções coletivas (por exemplo, a chamada "blank media tax", alguma licença voluntária universal ou variantes), mantém a simplorização vesga pelo tal fetichismo.

Capitalismo e natureza humana

Não se deve confundir a forma atual de organização social, que dá azo a tal fetiche, com a natureza humana, que o alimenta. Parte da natureza humana nos leva a esta forma atual, mas as duas não são a mesma. A outra parte da natureza humana pode achar que o justo valor de troca para uma criação do espírito é o que se dispõe a pagar quem a comissiona, em economês tangível (e inteligível).

Esta outra parte da natureza humana pode, na medida em que os desdobramentos sociais desta fetichização se acumulam, se perguntar, por exemplo, com que autoridade moral o capitalismo promove tal simplorização caolha. Para engordar intermediários monopolistas que não largam o osso de seus modelos negociais retrógrados, e a esperança de criadores cujo espírito a eles se rendem? Noutras palavras, uma parte da natureza humana é capaz de refletir, também, sobre as conseqüências desta mesmerização coletiva.

Numa economia fetichizada, é natural que juristas, advogados e operadores do Direito queiram tratar objetos materiais e criações do espírito como equivalentes, para legitimar leis que excluam do livre compartilhar puras criações do espírito, isto é, leis que as tratem como propriedade imaterial. É natural que legisladores imbuídos de interesses com estes compartilhados, idem. É natural que queiram gerar escassez artificial de bens não-rivais. Que queiram simplorizar na direção em que lhes caiba decidir, por todos e segundo seus próprios interesses, o certo e o errado no que vai desse tipo de "propriedade".

Então, a questão de fundo passa a ser outra. Por que simplorizar sempre na direção da mesquinhez, do egoísmo, do instinto animal pela territorialização? A sociedade que hoje se forma desta maneira, com todos seguindo vesgamente esta cenoura pendurada na ponta de uma vara chamada "inovação", por uma cordinha chamada "Direito", com a real escassez -- a de recursos naturais -- só se agravando, será mesmo uma sociedade melhor?



Conclusão

Esta simplorização, sempre mais vesgamente enviesada para o lado da mesquinhez, forma o caldo cultural para a radicalização do direito autoral, junto a de "outras PIs" que estamos vivendo. O ser humano sempre foi mesquinho e seduzido a acumular riquezas, e as riquezas sempre se concentraram nas mãos de poucos, porém, é bem por isto que ao longo da História surge o Estado e suas funções, em contínua evolução.

Dentre essas funções está hoje a de exercer o monopólio do uso legal da força, nos Estados de direito. Este monopólio também tem um braço interno, para fazer Justiça no sentido de equilíbrio coletivo entre as duas partes da natureza humana. A animal, mesquinha e individualista, e a espiritual, gregária e sociabilizante. Não é à toa que os princípios da Justiça se lastreiam, ou deveriam se lastrear, em valores éticos.

Quando nisto ela fracassa, colonizada pela primeira daquelas partes, a Justiça rui junto com o Estado, rumo a outra reconstrução de ambos. Em movimentos pendulares, como entre a Democracia clássica, participativa, e a ressurgida com o Iluminismo, representativa. A agenda ideológica da PI terá, assim, autoridade moral inversamente proporcional à acumulação das conseqüências nefastas da exclusão que promove.

O sonho fundamentalista de mercado pode ter acabado. O intelecto, quintessência da criação do espírito, em si é um dom. Um dom espiritual, que como tal deve ser respeitado. Qualquer que seja o sentido presumido à natureza do espírito, divina ou não, por quem se engaje neste debate. As conseqüências da falta deste respeito se acumulam, dentre outras formas, em equivalentes desrespeitos a leis esdrúxulas "de PI". Cada vez mais mesquinhas e despóticas.