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Bitcoin e o FMI

Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
10 de outubro de 2017


Introdução

Uma
matéria no portal "Cointelegraph" publicada em 8/10/2017 informa que o Wall Street Journal prevê para breve o lançamento de uma "criptomoeda internacional" em reação ao Bitcoin. A previsão do WSJ vem em resposta a comentários da diretora do FMI, Christine Lagarde, sobre o assunto. Da matéria, traduzimos o seguinte trecho:
"A dificuldade com uma moeda digital global é o fator de centralização. Uma grande parte do apelo de criptomoedas como o Bitcoin é o protocolo descentralizado, criando um mercado verdadeiramente livre, onde o valor é baseado unicamente em consenso sem fixação de preços. Uma moeda digital globalizada, ao mesmo tempo que proporcionava segurança descentralizada, exigiria que o FMI consertasse e regulasse valores para gerenciar o fluxo de dinheiro dentro e fora de diferentes países. Tal sistema seria contrário aos princípios subjacentes que estão por trás do Bitcoin".
O fenômeno das criptomoedas descentralizadas traz consigo muita dissonância cognitiva, de ambos os lados, pois isso (controle monetário descentralizado) nunca existiu antes do Bitcoin. Por exemplo: é obviamente questionável se um mercado potencialmente livre de moedas poderia funcionar livremente em contato com mercadados de moedas fiat nacionais completamente manipulados. Doutro lado, também é questionável a hipótese de que alguma autoridade global, como o FMI, deve controlar ou gerenciar os fluxos monetários entre agentes financeiros em diferentes países, hipótese essa que só é consistente em par com uma dissimulada descrença na existencia prática de mercados livres.

A revolução Bitcoin começa por questionar na prática esse último par de hipóteses.

Na prática mesmo, qualquer hipótese ou teoria monetária terá seu campo de testes definitivo na atividade fiscal de estados, sejam nacionais, extra ou supranacionais. A referida dissonância cognitiva então reaparece, inclusive nos comentários de Lagarde e de seus comentaristas, com a conversa fiada de ser muito difícil coletar impostos sobre transações em bitcoin. Pode ser difícil, mas só para quem não conhece, ou não quer reconhecer, com suficientemente minúcia o respecivo protocolo, e/ou prefere demonizar o correspondente fenômeno.

Uma coisa é coletar impostos numa moeda, outra coisa é controlar fluxos dessa moeda. Com o Bitcoin, a primeira dessas coisas é perfeitamente possível sem a segunda (como pretendo mostrar em seguida), até porque a segunda é impossível com ela. Pelo menos como o bitcoin é agora.

Choque de paradigmas

Na verdade, achar que a segunda atividade (controlar os fluxos) é condição necessária para a primeira (arrecadar impostos) faz sentido apenas no paradigma monetário antigo, cujo axioma principal -- que vira dogma com a negação da possibilidade de outro paradigma -- é o de que o controle da emissão, da escassez e da integridade das transações de/numa moeda requerem um agente com autoridade central para que funcione a contento, Paradigma este que o protocolo bitcoin quebra, mostrando na prática como tal função monetária (controle de emissão + escassez + integridade transacional) pode ser descentralizada e desinstitucionalizada, alocada em algoritmo distribuído que funciona como protocolo para consenso, baseado em teoria dos jogos, com regras que convergem interesses conflitantes de cinco diferentes grupos de atores para ganho máximo quando colaboram construtivamente, cada um com sua parte, no desempenho desta tripla função.

A contabilidade de todas as transações na moeda bitcoin é pública, apesar de pseudonimizadas (fracamente), o que permite esquemas simples de arrecadação bem mais eficientes (contra sonegação) do que qualquer esquema fiscal em moeda fiat no paradigma antigo, como explico adiante. O "problema" é que os possíveis esquemas fiscais em criptomoeda descentralizada (em bitcoin, por exemplo) teriam que arrecadar respeitando as regras algorítmicas para consenso, cuja lógica pune abusos e excessos de qualquer agente ou grupo de interesse que participe do protocolo. E é por isso que as autoridades monetárias, historicamente abusivas (até o DNA), não querem entrar nesse jogo, preferindo decretar "extrema dificuldade" para isso, já que teriam que entrar no jogo como meros agentes fiscais de entidades locais (Estados nacionais, etc), em condições paritárias, sem poderes para controlar emissão, escassez (global), integridade transacional e fluxos à guisa de sua função arrecadatória.

Essas autoridades veem "extrema dificuldade" (para arrecadar em criptomoedas descentralizadas) porque no fundo acham que seu "direito" de abusar é intrínseco à prerrogativa de controlar fluxos monetários, única maneira que o paradigma monetário antigo (que elas oficialmente ainda consideram único possível) entende possível para o controle de emissão, escassez e integridade contábil de transações. Ocorre que essa interdependência entre controle de fluxos e controle de emissão + escassez + integridade transacional só existe no paradigma monetário antigo, que só foi único até o advento da Internet do dinheiro, domínio virtual onde hoje vicejam, dentre outros contraexemplos, o dessa interdependência.

A onça vai beber água

Então, chega uma hora em que a onça vai beber água: o momento das autoridades monetárias historicamente constituídas reagirem, para se adaptar a esse novo espaço de fluxos ou serem atropeladas. Onde adaptar significa duas estratégias possíveis: ou construtiva, para encontrarem seu nicho colaborativo nesse espaço, no caminho evolutivo dos protocolos de consenso que constituem (ou equivalem a) políticas monetárias para criptomoedas descentralizadas, ou confrontativa, para encontrarem formas de sufocar esses fluxos concorrentes (que não param de crescer) e/ou inviabilizar suas políticas monetárias ou suas ancoragens materiais (nos nós computacionais que mineram na respectiva moeda e/ou mantêm cópias da respectiva cadeia de blocos).

Devido à natureza global desse novo espaço de fluxos, parece óbvio que as estratégias confrontativas -- que estão cristalizadas no DNA constitutivo dos históricos agentes de controle monetário -- só terão chance nesse inusitado desafio se forem globalmente coordenadas. E o fato da "onça" ainda não ter reagido, talvez se deva a ainda não ter decidido como. Pois afinal, competitividade extrema também faz parte do mesmo DNA; e, entre as estratégias confrontativas, há opções variadas, cujas chances de sucesso dependem de fatores distintos. Seja para uma abordagem destrutiva, de criminalização e repressão de práticas operacionais no espaço concorrente, seja para abordagens mais sutis, ao estilo sun-tzu, de "normalização" e eventual captura (cooptativa ou forçosa) da infraestrutura e protocolos para consenso. O que acaba por pressionar o cronograma e a agenda das autoridades monetárias envolvidas no projeto de formação de um governo tirânico global, o emergente hegemon.

Aliás, a teoria de que Satoshi Nakamoto é um grupo na NSA, que conspirou para 'desovar' anonimamente o white paper com o protocolo bitcoin e inicialmente implementá-lo, com o propósito oculto e maior de eventualmente precipitar uma ação confrontativa hegemônica coordenada, cujo desfecho almejado seria a eventual convergência para uma moeda digital única controlada pelo hegemon, é consistente e coerente com outras táticas dos envolvidos no projeto hegemonico, inclusive as de suas autoridades monetárias, para conterem e camuflarem causas da crise monetária no ciclo que elas atualmente controlam, por exemplo. Teoria esta que tem embasamento técnico-documental, inclusive do próprio FMI (sobre de-cashing, por exemplo), e adeptas de peso, respeitáveis no pensamento contra-hegemonico tais como Catherine Austin Fitts, que publica o Solari Report, e Lynette Zang, que neste vídeo analisa com perspicácia a tática do FMI para de-cashing.

Contrato social

Para Hobbes, o serviço último do Estado é o monopólio do uso da força. Seria esta a razão de um verdadeiro livre mercado não poder funcionar no espaço virtual de fluxos monetizáveis? Seria porque mercados dependem de âncoras físicas, em cujo espaço (físico) o Estado detém o monopólio do uso da força? Se é isso, então entendo que estaríamos abraçando uma opinião fatalista, sobre esse momento de onça beber água, cujo desfecho estaria previamente condenado pela natureza humana. Opinião de que a única estratégia de possível sucesso para o desafio desse momento é a estratégia confrontativa, contra um emergente e revolucionário paradigma financeiro. Concordo em parte, já que no meu caso o fatalismo tem origem diferente: sobrenatural. Pois creio que a implícita avaliação, de que a única estratégia de possível sucesso aí é confrontativa, é temporária: só vai prevalecer até o fim do hegemon, marcado para ocorrer com a segunda vinda do Senhor Jesus Cristo.

Enquanto o Estado tiver o monopólio "natural" do uso da força, não há como negar sua primazia arrecadatória. Mas aqui, o fatalismo humanista provoca outra dissonância cognitiva: contemplar a possibilidade de sucesso de estratégias alternativas, cooperativas, não significa negar a primazia arrecadatória do Estado; significa apenas questionar sobre as possíveis formas de se exercê-la. A questão crucial para mim aqui é outra: é se o Estado estaria ou não disposto a arrecadar, num espaço de fluxos específico (das criptomoedas descentralizadas), respeitando as regras do jogo ali. Se o Estado está viciado por um suposto direito natural de abusar, suponho que não, mas apenas enquanto esse suposto direito lhes for "natural".

Como poderia ser, então, uma forma cooperativa de se arrecadar impostos nesse espaço de fluxos? Primeiramente, teria que explorar as regras do protocolo, onde possam se encaixar legítimos interesses do Estado. Estados poderiam entrar no jogo de criptomoedas descentralizadas como agentes fiscais, alavancados pelas caracterísitcas de seu serviço principal (monopólio do uso da força, agui agora consentida), cuja eficácia requer âncoras físico-espaciais. Portanto, os pontos de ancoragem de sua função arrecadatória devem estar onde âncoras físico-espaciais são necessárias aos protoclos de criptomedas descentralizadas. A saber, onde se materializam os agentes mineradores.

Imposto minerável

O caminho natural aí seria pela adaptação dos protocolos das criptomoedas, no que vai de contabilidade a título de taxas, para incluir outra, além da taxa de mineração (que normalmente é cobrada sobre o tamanho binário da transação). Para passarem a incluir também uma taxa para pagamento de imposto (este, sobre o valor da transação), incidente na jurisdição da mineradora que aceitar tal transação em um bloco que se disponha a minerar. A inclusão dessa conta passa a ser esperada nas transações propagáveis para nós onde incidem impostos, e estimadas (por exemplo, a partir da média das porcentagens onde incidem) pelas carteiras virtuais. Obviamente com a simplificação possível via taxa única em qualquer jurisdição onde mineradoras operam legalmente.

Para isso, o protocolo teria que incluir nova rubrica no formato da transação, para ser preenchida por quem queira pagar esse imposto. Quem monta a transação desconta do montante das entradas um valor para tal rubrica, a qual seria eventualmente transferida a um endereço da autoridade arrecadatória do Estado da jurisdição da mineradora que incluísse tal transação em um bloco minerado com sucesso. A diferença entre a parte descontada para essa rubrica na transação, e a quantia de imposto incidente sobre a transação pela regra fiscal vigente na jurisdição dessa mineradora (que seria zero em jurisdições sem tal cobrança de imposto), seria debitada ou acrescida à taxa de mineração oferecida na transação. Se o bloco minerado for aceito na cadeia, o minerador assume publicamente o compromisso contábil de repassar à autoridade fiscal o valor incidente sobre as transações no bloco, dotadas pelas alocações nas respectivas rubircas.

Esse esquema arrecadatório levaria os usuários da moeda a oferecer na rubrica pela média das alíquotas sendo praticadas ao redor do mundo, se tiverem relativa pressa, ou a esperar que algum minerador desincumbido de recolher impostos aceite apenas a taxa de mineração oferecida. Esse comportamento favorece os mineradores que operam em jurisdições sem ou com menor taxa de imposto incidente sobre transações em bitcoin, que passam a ganhar vantagem competitiva sobre as jurisdições que cobram mais. E induz os Estados a entrar numa espécie de guerra fiscal virtual, em busca de um equilíbrio entre arrecadação nesse (sub)espaço e estímulo à indústria local de mineração em bitcoin (que poderiam lhe gerar outros ganhos indiretos)

Emfim, não se diga "não tem como", nem que é "extremamente difícil", sem o controle completo do protocolo da respectiva criptomoeda. Quando muito, diga-se que é extremamente difícil no esquema injusto de escravagismo financeiro que vivemos hoje, sob o domínio do paradigma financeiro centralizador e dos vícios de poder de quem os encarna, paradigma que até aqui surfava a onda tecnológica, sempre concentrando riqueza, e que é essencial ao projeto do emergente hegemon.



Autor

Pedro Antonio Dourado de Rezende é professor concursado no Departamento de Ciência da Com­putação da Universidade de Brasília, Advanced to Candidacy a PhD pela Universidade da Cali­fornia em Berkeley. Membro do Conselho do Ins­tituto Brasileiro de Política e Direito de In­formática, ex-membro do Conselho da Fundação Softwa­re Li­vre América Latina, e do Comitê Gestor da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-BR). http://www.­pedro.jmrezende.com.br/sd.php

Direitos de Autor

Pedro A D Rezende et. al., 2017: Este debate é publicado no portal do editor-coautor, após a concordância dos demais coautores, sob a licença disponível em http://creativecommons.org/licenses/by-nd/2.5/br/