Os bazares e as catedrais
Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
19 de agosto de 2003
Introdução
Iniciativas legais para que a administração pública privilegie o uso do software livre vêm sendo comentadas na esfera jurídica sem o zelo que tão importante assunto reclama. Especula-se sobre os verdadeiros motivos. E se for o de fomentar o debate sobre o negócio do software? Cá o temos. Que é software? Liberdade? Justificar a dedução das categorias é a tarefa mais árdua na filosofia do Direito, nos lembra Kant. E essas críticas quase sempre pecam ao categorizar a complementaridade das preferências.
Quando se diz, por exemplo, que existe software comercial e software livre no mercado, não se deve presumir que esses dois tipos de software sejam complementares ou contrapostos – como se apressam a fazer, por exemplo, Simone Tascht e Miguel Reale Jr. em artigo no jornal Valor Econômico (26/6/03). As leis em debate – e os que fazem software – empregam o adjetivo "livre" em sentido oposto ao de "proprietário", aquilo do qual alguém clama posse, usufruto e disponibilidade. Destarte, há software proprietário com licença de uso gratuita (Internet Explorer, Zip, Acrobat, por exemplo) e software livre com mais de um tipo de licença, paga e gratuita (MySQL, Star/OpenOffice, PGP).
A confusão nessas críticas é tão freqüente que a questão se coloca: haveria intenção de se encobrir o sentido de propriedade, verdadeiro cerne do debate? Tentar descartá-lo com argumentos ad hominem, trocando sua lógica e contexto por rótulos de emocionalidade e ideologização, em perigosas piruetas semânticas sobre uma rede de proteção tecida de censura, não é próprio de quem deseja um debate sadio.
Esse debate não surgiu do nada, nem é maquinação de lunáticos, retrógrados ou stalinistas, por mais que a grande mídia se esforce para assim fazer parecer, recusando-se a imprimir opiniões opostas. Esse debate sinaliza, antes, fadiga em mais um ciclo evolutivo da Tecnologia da Informação, cuja sobrevida será faturada em custo social.
"Garantias do produto"
É compreensível que o fetiche escravizante da propriedade imaterial, em voga ao atingir a Idéia e o Gene, seja dogma para os que a querem inquestionável. É o sentido deles para a modernidade ou a esperteza. Mas não há lei, sintática ou social, que imponha tal dogma como absoluto valor. Cada um constrói sua identidade sobre um substrato cultural que é de todos e de ninguém. Como o nosso corpo, sob o ar. E quanto ao software? Autoria não é sinônimo de propriedade, e o autor pode, querendo, desconhecer posse.
Ao software, a fetichização mercantilista traz grossas falácias. Para ofuscá-las, essas críticas deduzem a categoria "livre" num flashback fetal do fenômeno fluído e transformador do social que é a informática, como se "livre" fora aí apenas marca de origem na experimentação, enquanto a categoria que presumem complementá-la, ou contrapô-la, é deduzida nalguma rósea fantasia do seu presente, conforme pinta o marketing do software proprietário.
Software livre gera negócios, com volume e produtividade crescentes (veja The Business and Economics of Linux and Open Source, de Martin Fink) para empresas tradicionais como IBM, HP e Silicon Graphics, emergentes como RedHat e Ximian e, com destaque no Brasil, Conectiva. Software livre é realidade: basta ver a internet, que nasceu com ele, e com ele serve hoje dois em cada três endereços web clicados.
Software livre é aquele cujo autor, ao licenciar seu uso, desconhece direito de tratá-lo como propriedade, mas tratando-o, positivamente, como objeto de conhecimento. Oposto e inverso de software proprietário. Não é travessura, aventura ou pirataria, como querem difamar alguns, mas fruto da evolução natural da engenharia de software, como explica Eric Raymond no clássico The Cathedral and the Bazaar.
Como todos que se deram ao trabalho de saber sabem, as garantias pelas quais choromingam esses críticos não existem. Nem em licenças livres nem em proprietárias. O que nunca impediu o negócio do software de prosperar. Aliás, ao contrário. Este é um fato esquecido até que surgissem tais leis, levando seus críticos a se lembrar do CDC, que exige "garantias do produto".
Como se essas garantias estivessem implícitas em licenças proprietárias (EULA), pelo simples fato de serem pagas, e ausentes nas licenças livres, por serem estas normalmente gratuitas. Confundem eles a licença de uso per se com contratos para prestação de suporte e serviço garantidos (SLAs), contratos que geralmente se agregam ao licenciamento do software. SLAs que podem perfeitamente, por sua vez, serem firmados com software livre, como oferecem a seus clientes a IBM e a Conectiva.
Parolice marqueteira
Negociar e vigiar a posse do que só existe no mundo dos símbolos gera ineficiências e distorções tanto econômicas quanto jurídicas que nada têm a ver com garantias "do produto". Mas que, desmascaradas do seu fundamentalismo de mercado, expõem o grotesco status do negócio do software proprietário, mostrando-o cada vez mais parecido com o crime organizado. Uma negócio que abusa do poder amealhado para buscar sua sobrevida, às custas da insegurança coletiva (vide as chantagens da SCO contra usuários de Linux).
Quantos desses críticos já leram uma licença proprietária (EULA)? Quantos conhecem algum licenciado que foi indenizado pela Microsoft, por danos devido a vírus ou falhas, até por patches que não funcionam? Não se pode repreendê-los, todavia, por desconhecer tais contratos de adesão (onde o licenciado renuncia ao direito por tais indenizações). Pois, via de regra, só terão direito a conhecê-los na tela, sem acesso a impressora, no momento da instalação do software, após terem pago por ele.
Doutra parte, seria inconcebível que tivessem coragem de opinar em público sobre o conteúdo que ali leriam, e é repreensível que se ponham a opinar sobre software livre ignorando seu modelo básico de licenciamento, a GPL (disponível em www.fsf.org). Por que, então, insistem em confundir licença de uso com contrato de serviço, fazendo, num ambiente de censura, a confusão parecer-se com má-fé para ludibriar o público?
Esta confusão, porém, ainda não é a mais sinistra. Das possíveis garantias nas comparações kafkianas que se metem a fazer, a mais absurdamente ofuscada não é a "do produto", mas a de sua auditabilidade. A garantia de auditabilidade, por natureza presente na licença livre e ausente na proprietária, é o motivo maior das leis em debate. Para desdenhar esta garantia, até o dicionário – ou contratos complementares maquiavélicos "de gaveta" – tem sido desculpa.
O Estado que, nos dias de hoje, desdenhar dessa garantia pagará caro ao crime organizado, como mostram as ridículas estatísticas sobre eficácia das leis contra lavagem de dinheiro. O problema com discursos jurídicos, que só diferem da parolice marqueteira em tênue verniz de erudição, não é só um problema de distância à verdade ou de ética. O próprio Kant nos alerta, no início de sua Analítica Transcedental: "Um decorador de sentenças e códigos não é sábio, mas presa do idiotismo erudito".
Autor
Pedro Antonio Dourado de Rezende é professor concursado no Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Brasília, Advanced to Candidacy a PhD pela Universidade da California em Berkeley. Membro do Conselho do Instituto Brasileiro de Política e Direito de Informática, ex-membro do Conselho da Fundação Software Livre América Latina. http://www.pedro.jmrezende.com.br/sd.php
Direitos de Autor
Pedro A D Rezende et. al., 2018: Este debate é publicado no portal do editor-coautor, após a concordância dos demais coautores, sob a licença disponível em http://creativecommons.org/licenses/by-nd/2.5/br/