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  União Européia contra o Totalitarismo Digital

Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasilia
27 de Dezembro de 2004

Totalitarismo Digital? Muitos não fazem a menor idéia do que seja. Ou de como um sistema Judiciário transnacional, recém instituído no velho continente, a ele se oponha. Muitos experimentam um vago desconforto, pela imaginação que lhes despertam essas duas palavras juntas. Algo surreal. E muitos, no borrão onde o entendimento pessoal turva surpresa e ignorância do tema, assim o engessam, ao escolherem os canais onde se informam dos rumos do nosso mundo.

Quem assistiu ao Jornal da Globo de 22 de Dezembro teria sido informado duma sentença relacionada ao tema e lavrada, naquele mesmo dia, pelo juiz de um Tribunal de primeira instância da União Européia. Aparentando surpresa, a bela Ana Paula Padrão declarou, em lacônico comentário que serviu de gancho ao repórter chamado para pasteurizar esclarecimentos, que a tal sentença abria um "precedente importante": a Mircrosoft estava sendo obrigada a pagar multa de mais de 600 milhões de dólares.

A gigante do software terá também que divulgar "para concorrentes" os formatos e padrões de programação através dos quais áudio e vídeo podem ser exibidos em computadores controlados pelo sistema operacional Windows. O repórter logo enganchou sua opinião, de que o precedente ali aberto atingia não só segredos industriais da Microsoft, mas o próprio conceito de propriedade intelectual. Palavras e tons insinuando ao leigo que uma empresa idônea estava sendo abusada pela fúria regulatória de uma super-burocracia.

Açodamento opinativo

Entretanto, tal sentença apenas decide um recurso contra decisão liminar anterior, mantendo-a. Pela liminar, a empresa terá que separar, no mercado da União Européia, a oferta do Media Player, seu programa de áudio e vídeo, da oferta do Windows, ubíqua plataforma cujo aluguel é a matriz de suas galinhas de ovos de ouro. Pelo menos até o julgamento do mérito da ação antimonopolista que a ensejou. A multa é por práticas monopolistas predatórias, que bloqueiam artificialmente a interoperabilidade de programas concorrentes com a tal venda casada.

Ao surfar na notícia, a opinião do jornalismo global foi além de ocultar os motivos da condenação liminar. Talvez pior, Ana Paula conotou abertura de precedente de forma perigosamente enganosa. A Microsoft vem sendo sistematicamente condenada a, ou conduzida a negociar para, divulgar padrões ou pagar indenizações em diversas ações judiciais de teor semelhante. Por exemplo, a divulgar, no processo conhecido como "a guerra dos browsers"; e a pagar, mais de US$ 2.3 bilhões à Sun, no processo sobre quebra de contrato com a linguagem Java.

Editor, âncora ou repórter se açodaram. Precedente ali só no fato da Microsoft ter perdido um recurso em tribunal transnacional. Ou talvez, num certo sentido indireto que este artigo revela, ao final. Ambos esses possíveis sentidos, porém, bem distantes do que insinuava a matéria. Doutra feita, esse tipo de simplismo jornalístico também tem precedentes. Quando, na dita 'guerra dos browsers', culminada em ação movida pelo Governo federal e de 18 Estados por prática monopolista predatória, a Microsoft foi finalmente condenada em última instância, e por unanimidade, pela corte suprema dos EUA, em 8 de Outubro de 2001, o telejornalismo da Globo não deu um pio a respeito.

Durante os cinco anos que durou o processo o jornalismo da Globo, quando se referia ao caso, citava a empresa sempre como acusada. E depois, já condenada em primeira instância, nunca como monopolista ou abusiva. Não é pelo fato do jornalismo global, em linhas editoriais ou no gosto de seus profissionais, ter até aqui desprezado o valor jornalístico dessas ações, que elas deixarão de existir, como insinuava o incerto palpite sobre abertura de precedente. Não obstante a certeza de que anunciantes com mais de 50 bilhões de dólares em caixa devam ser bem tratados, jornalismo é outra coisa.

A intenção deste artigo se baseia numa esperança. A intenção é a de estreitarmos nossas dúvidas sobre os motivos para o açodamento opinativo no jornal da Globo de 22 de Dezembro, e nos precedentes simplismos. A esperança é de que os jornalistas envolvidos, estando profissionalmente abertos a críticas construtivas, possam ler estas linhas. Nas seguintes, listo referências que substanciam minhas prévias afirmações, contextualizando a matéria em foco e os dois casos judiciais já citados.

Folha Corrida

Nos casos de litígio envolvendo a Microsoft abaixo relacionados, podemos ver alguns padrões emergirem dos links. Acusações de prática monopolista predatória, nas quais a posição monopolista da empresa em sistemas operacionais para PCs alavanca abusos noutros mercados de software, ou acusações de apropriação indébita de propriedade intelectual alheia. Na grande maioria dos casos, a empresa assume o ônus da condenação, de valor aparente inferior aos benefícios auferidos com a infração, ou negocia indenização em troca do sigilo ou destruição de provas documentais.

  • Ações civis públicas
  • Eolas Technologies v. Microsoft - Infração de patente envolvendo tecnologia usada no navegador Internet Explorer.
  • European Commission anti-trust case
  • Federal Trade Commission: Ação contra propaganda enganosa no serviço de autenticação Passport
  • France: Syn-X Relief v. Microsoft
  • Intertrust Technologies v. Microsoft
  • Japan Fair Trade Commission
  • Lindows v. Microsoft
  • Be, Inc. v. Microsoft
  • Burst v. Microsoft
  • Netscape v. Microsoft
  • Sun v. Microsoft
  • New York, et al v. Microsoft
  • Novell v. Microsoft - Prática monopolística predatória contra WordPerfect, 2004
  • RealNetworks v. Microsoft
  • SCO cases, Microsoft involvement
  • Sendo v. Microsoft
  • South Korea Fair Trade Commission antitrust probe
  • Stac Electronics v. Microsoft
  • Sun Microsystems, Inc. v. Microsoft Corp. (1997)
  • Ticketmaster v. Microsoft
  • Typeright Keyboard Corporation v. Microsoft - Infração de patente
  • U.S. v. Microsoft - Guerra dos browsers
  • Como se pode ver, a empresa tem percorrido, desde sua origem, uma trajetória que pouco lembra idoneidade.

    Bruxos Digitais

    Quem releva esta folha corrida, fascinado que esteja com tanta sagacidade, tomando o sucesso decorrente por merecido prêmio da lógica capitalista, não faz a menor idéia do que significa, hoje, o poder de monopólio sobre tecnologias da informação e comunicação (TICs). Para um pálido vislumbre, bastaria ler uma licença de uso do Windows. Mas quem lê? Para começar, o habitual é se ter a chance de lê-la na tela de instalação. E por favor, não atirarem no mensageiro: o que ali se verá, pode causar pesadelos em quem acredita em Códigos de Defesa do Consumidor.

    A opinião do repórter, de que a dita sentença européia ameaça o conceito de propriedade intelectual, permite várias leituras, mesmo que não intencionais. No Direito, este conceito não existe. Propriedade intelectual é um oxímoro, um jargão marqueteiro talhado para dourar a pílula das manobras radicais e abusivas do poder econômico, surfando a onda da revolução digital. É um saco de gatos que mistura conceitos díspares do direito autoral (copyright), do direito industrial (patentes) e do direito comercial (marcas), armamento útil no ciberterrorismo econômico.

    Por conta desse oxímoro, e da eficácia marqueteira armada em torno dele, muitos tomam copyright e patente de software por sinônimos. Ocorre que o direito autoral protege a expressão de uma idéia, enquanto a patente cria direitos monopolistas para exploração econômica de uma invenção. O regime patentário surgiu para incentivar o inventor, mas até que ponto uma idéia é invenção? No caso do software, estamos falando de uma idéia sobre como um programa poderia exercer uma certa função, função esta de natureza puramente semiológica, já que o computador apenas processa símbolos.

    Como se pode provar a originalidade de uma tal idéia, delimitar sua abrangência, suas fronteiras com outras idéias, sem se delegar a algum todo-poderoso agente cartorial o direito de lotear o mais valioso bem comum de uma cultura, que é o conhecimento?  A radicalização do regime patentário, ao ameaçar invadir o mundo das idéias, pretende institucionalizar uma espécie de Registro de Imóveis do Mundo Platônico, algo que já foi antes tentado na História com estrondoso fracasso e pesados custos sociais.

    Tentado, justamente, quando se buscava preservar o poder dominante contra os efeitos revolucionários de uma nova tecnologia da informação. Quando o poder terreno da Santa Igreja se viu ameaçado pela invenção de Gutemberg, a imprensa de tipo móvel, capaz de neutralizar os mecanismos de controle do conhecimento que sustentavam aquele poder. Com as Indulgências e com a Inquisição, hoje reencarnados em propriedade intelectual e caça a hackers e piratas. Caça aos bruxos digitais que ameaçam o poder da crença hoje dominante, a que prega a onipresença, onipotência e onisciência dos livres mercados, operados e manipulados por seus próprios sacerdotes.

    Caixinha inauditável

    Como as leis que, no plano visível, regulariam esses mercados são feitas por políticos eleitos, em regimes tidos por democráticos, e estes políticos são feitos por sua exposição na mídia, veículos como a vênus platinada não cabem no papel de meros, e muito menos neutros, espectadores. De fato, a Globo e seus congêneres planetários têm se empenhado, ardorosamente, em vender a radicalização dos regimes patentário e autoral como panacéia, conforme o imperial fundamentalismo de mercado tenta impor ao mundo pela via de tratados internacionais como ALCA, OMC, e OMPI, sob a bruma mágica de uma varinha de condão. Querem mercados livre de regulações, pero no mucho: querem, junto, a radicalização da 'propriedade intelectual'

    Conforme fartamente ilustrado na ficha corrida acima, longe de proteger inventor ou autor, tal radicalização serve para criar barreiras artificiais à entrada de novos intermediadores e atores nos mercados de TICs, protegendo e fortalecendo, junto com seus modelos de negócio, posições monopolistas anteriores à última etapa da revolução digital, eclodida com a Internet (ex: http://business.newsforge.com/business/04/07/19/2315200.shtml?tid=110&tid=147&tid=132). Porém, conforme as TICs se tornam, nessa etapa, difusas e ubíquas, tais modelos perdem eficiência. E na medida em que, também com elas, o conhecimento sobre os meandros do ciberespaço, na forma de código-fonte de programas, deixa de ser um bem escasso, um novo paradigma emerge.

    Um regime de produção, licenciamento e negócio com software que explora o potencial da internet de forma eficaz e inteligente, através de uma abordagem adequada ao conceito de confiança. Ao invés de tratar código-fonte como segredo de negócio, o regime FOSS (free/open source software) o trata como linguagem. Em contraste com o software proprietário, que é, tal qual caixinha de mágico, por definição inauditável, FOSS é desenvolvido colaborativamente, sem reniventar a roda. É capaz de gerar curto-circuitos em teorias econômicas clássicas, posto que código-fonte é, ao mesmo tempo, produto e meio de produção. E talvez por isso, na medida em que empresas sem monopólios aprendem a explorá-lo, somos tangidos à fase totalitarista desta radicalização.

    Briga suja

    O totalitarismo digital traz consigo seu lado negro, o ciberterrorismo econômico. Sua manifestação se faz palpável com o bilionário ataque suicida da empresa SCO, iniciado em março de 2003 (citado acima). Trata-se de tentativa de seqüestro jurídico da "propriedade intelectual" do sistema operacional livre hoje mais usado, o GNU/Linux, associada a uma campanha para extorquir grandes usuários, com base em previsões, amplificadas na grande mídia, do futuro sucesso desse seqüestro. Ironicamente, um dos danos colaterais deste ataque foi o argumento, repetido ad nauseum pelo status quo proprietário, de que o regime patentário é necessário para proteger a indústria de software.

    A parte desta indústria que opera em regime FOSS tem resistido a ataques jurídicos sem qualquer proteção patentária. Apenas com a proteção do Direito autoral e do Direito contratual. Inclusive à tentativa de seqüestro jurídico da base de código do GNU/Linux pela SCO, mesmo com o apoio da Microsoft, no recrutamento de capitalistas especializados em alto risco (veja a folha corrida). A utilidade das patentes de software como arma no ciberterrorismo econômico restou provada, se não por vários casos bizarros e extorsivos envolvendo abusos de sistemas judiciais e desequilíbrios em leis, pela manifestação do próprio presidente da Microsoft.

    Durante o Asian Government Leaders Forum em Cingapura, em 20/11/04, Steve Ballmer deu declarações à imprensa contendo ameaças diretas a países que elejam FOSS como regime preferencial em sua política de informática, supostamente com a participação da Organização Mundial do Comércio, OMC (http://www.groklaw.net/article.php?story=20041118073308709), onde, por sinal, uma entidade testa-de-ferro -- a CompTia -- acaba de ingressar, por este motivo, com queixa-crime contra o Brasil (http://www.softwarelivre.org/news/3406).

    Na ação antimonopolista que lhe move a União Européia, a Microsoft tentou se defender escudando-se em seu portfolio de patentes de software, testando seu suposto direito de controlar o futuro dos processos digitais, num mundo cada vez mais dependente deles, a partir de sua posição monopolista no mercado de sistemas para PCs. Não colou, porque patentes de software não são hoje reconhecidas na Europa, como são nos EUA. O Parlamento Europeu vem sendo palco, há quase dois anos, de uma suja e feroz batalha pela imposição de um regime patentário para softwares ainda mais radical do que o vigente nos EUA, mas a dita sentença saiu antes que tal imposição vigisse.

    Práticas predatórias

    Esta batalha, e os argumentos de quem nela resiste aos ditames do imperial fundamentalismo de mercado, não têm tido qualquer valor jornalístico para as organizações Globo. Pelo menos enquanto não houver um desfecho final, a julgar pela cobertura que seus veículos têm dado ao assunto, e pela cobertura que deu à guerra dos browsers. Na guerra dos browsers, o mesmo maniqueísmo prevaleceu. Principalmente quando o juiz do caso, Penfield Jackson, não se contendo diante de tamanha arrogância e hipocrisia da ré, já na fase de apenação concedeu uma entrevista na qual comparava o fundador da empresa a Napoleão Bonaparte.

    Foi o suficiente para que a Microsoft conseguisse afastar Jackson do caso, por falta de isenção. O juiz foi pintado na grande mídia como vilão, e a empresa acabou sentenciada por uma nova juíza, escolhida agora no mandato de Bush Jr. A sentença final obriga a empresa a licenciar os padrões e formatos para interoperabilidade dos seus sistemas, para compensar os efeitos de suas fartamente documentadas práticas ilegais, mas com um detalhe: a seu critério, onerosamente. Ao consumidor, o mico: os improtegíveis navegador Internet Explorer e correio eletrônico Outlook Express, como parte do Windows. O pior do mico, porém, está no detalhe.

    Quando o custo com licenças de software proprietário estiver intolerável (estima-se que dobre em dois anos -- http://www.pcw.co.uk/news/1159603), o combate à pirataria muito intenso (com pressões amplificadas pelo jornalismo global), e o consumidor buscar software alternativo ao Word para acessar seus arquivos pessoais, talvez tenha que pagar (principalmente se a alternativa for software livre) royaltes à Microsoft: pelo uso do códigos internos nos quais seus próprios arquivos foram invisivelmente gravados. Códigos cuja propriedade intelectual foi a ela outorgada a título de punição por práticas monopolistas predatórias, com direito a cobrança por uso em programas desenvolvidos por terceiros. É o consumidor-refém.

    Precedente importante

    O ciberterrorismo econômico assim praticado traz à tona questões prementes sobre a segurança digital do cidadão e do Estado. A licença de uso do Windows XP, por exemplo, autoriza a licenciadora a usar 11 portas de fundo pré-instaladas no sistema (enquanto se omite sobre outras cinco), por onde quem as conhece poderá bisbilhotar e controlar o computador do licenciado. Por onde, principalmente hoje, é possível a espionagem, inclusive industrial. O pretexto é a necessidade da licenciadora gerenciar seu patrimônio intelectual (Digital Rights Management); enquanto tais desequilíbrios contratuais poderiam permitir sabotagens invisíveis, como em Alcântara (em http://www.cic.unb.br/ ~rezende/trabs/alcantara.htm, analisei a chance da investigação vir a ser, como foi, inconclusiva).

    Com o agravante de que a classe de contratos de aluguel tipificada pela licença do XP, peculiar ao regime negocial do software proprietário, terá que conviver, no ordenamento jurídico brasileiro, com novas leis que responsabilizam o licenciado pelo que saia de seu computador. Exemplo é a Medida Provisória 2200, que regulamenta o uso de assinatura digital, comércio e documentos eletrônicos com presunção de validade jurídica, na letra do parágrafo primeiro do seu artigo 10. e na do parágrafo segundo do seu artigo 6..

    Tribunais da União Européia talvez não estejam interessados em coadjuvar nesse tipo de manobra, sob aquele efeito colateral do totalitarismo digital que estivemos aqui chamando de ciberterrorismo econômico. Talvez não queiram se envolver numa nova Inquisição, na qual a heresia estaria nos gestos ou desejos por liberdade cognitiva e autonomia na esfera digital. E se o tribunal que manteve a liminar em 22 de Dezembro não estiver interessado, isto abriria, pelo que ilustra a folha corrida acima, um indireto, mas importante, precedente. Bem distante do que foi insinuado no jornal da Globo. Dos seus editores e jornalistas que lerem até aqui, espera-se o descarte da ignorância como pretexto para tais simplismos sobre o assunto.

    v.2 - Revisado em 25/06/2005