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A Ambiguidade do Papel da Ciência na Evolução Humana

Publicado na revista TheoSophia em Janeiro de 1999

Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
  Janeiro de 1999


Neste ensaio procuro oferecer algumas reflexões pessoais sobre o papel da ciência na evolução humana, particularmente sobre sua relação com o plano de evolução que, segundo alguns pensadores, guia o curso da Humanidade. Abordo algumas questões éticas envolvidas na produção e aplicação do conhecimento científico, que a meu ver evidenciam a dinâmica desse papel.

Vejo a principal missão da ciência hoje como sendo a de amplificar os dilemas morais que permeiam esse curso. Como ilustração, veremos o caso da Astronomia, diante do vertiginoso crescimento das tecnologias das telecomunicações. Não abrigo intenção de emitir juízos éticos ou criticar modismos tecnológicos, mas de expor a ambiguidade com que abraçamos o desenrolar do mais poderoso dos mitos que 00hoje move a nossa civilização.

A ciência como a conhecemos hoje, é um empreendimento muito recente na nossa civilização. Surgiu há cerca de 300 anos, quando alguns espíritos iluminados, no impasse em que se cindiu o mundo cristão, muniram-se de uma proposta para isolar o tipo de conhecimento que o homem poderia edificar, com base unicamente na razão.

Com essa proposta, iniciaram a reconstrução do edifício daquela parte do saber cuja apreensão não usa do intelecto nada além dessa faculdade,  do edifício validada pela experimentação controlada. Desta atividade estariam excluídas faculdades humanas tais como a emoção, a intuição, o sentimento e o dogma.

Assim nasceu a ciência moderna, quando Galileu Galilei proclamou, em 1623, no seu livro O Ensaiador, que "o Universo é um livro escrito em símbolos matemáticos." Esta empreitada iria reascender, no coração do homem, um antigo mito, pois em sua origem há uma crença sobre o alcance e o poder do seu método. O grande poder do método científico está em conter seus próprios instrumentos de crítica, e seu sucesso atesta este poder [1].

Descartes, que como arquiteto maior desse método complementa Galileu na fundação da ciência moderna, procurou vestir essa crença com a roupagem de um princípio filosófico. Afirmou estar a realidade separada em dois reinos distintos, o da matéria e o da consciência. o "res extensa" e o "res cogitans". Com isso ocultou a ambiguidade da relação entre crença e conhecimento científico.

Depois dele Newton, ao descrever as leis da mecânica celeste, sugeriu-nos que o princípio da causalidade na Natureza opera somente no âmbito do reino da matéria. Newton argumentava que, diante do sucesso tão espetacular na descrição do funcionamento do mundo físico, não havia porque estender o conceito de "causa" ao que o atingisse mas não pudesse ser nele medido.

Depois disso, Kant procurou estender o instrumento da crítica da razão para todo o reino da consciência, e com ele mostrar os limites do poder cognitivo do intelecto humano. Mas o campo para o renascimento aquariano do mito de Ícaro já havia sido fertilizado; Kant e os Iluministas não mais conseguiriam deter seu ressurgimento [1].

Todos nós temos consciência de que o advento da ciência moderna permitiu à civilização entrar num ritmo de transformação inédito na história, possibilitando uma série de revoluções tecnológicas, cada uma acelerando ainda mais esse ritmo, cujo final não parece estar ao alcance ou sob o controle da compreensão humana.

Podemos apenas conjecturar sobre como e onde o avanço da ciência nos levará. Assumimos como irreversível este processo e, exceto por vozes solitárias e destoante de ludistas, somos convidados por nossa cultura, como animais sociais que somos, a nos adaptar como melhor pudermos à incessante reorganização de nosso modelo de mundo, empurrada pela reordenação de nossos valores materiais, sociais e morais, promovida por essas revoluções.

Depois de duas ondas de revolução industrial, estamos entrando numa terceira, inaugurando uma era rotulada como "da informação". Essas transformações têm alcance profundo, atingindo inclusive os planos ontológico e ético do homem. De um passado recente em que temia e venerava forças da natureza, passou em muito pouco tempo a outro extremo, igualmente ingênuo, onde crê no poder supremo da razão sobre a consciência, e com o qual poderia controlar essas forças.

Esta crença deu origem à escola filosófica positivista. Apesar de boa parte dos cientistas contemporâneos não crer que o alcance do saber racional seja absoluto e de estar por isso mais propensa a sentir que este saber, por si só, não aplaca nem ameniza a sede da alma humana pelo seu próprio significado, até o final do século passado a situação era oposta [2]. O sonho grandiloquente do positivismo científico, que advoga ser a ciência o único conhecimento possível e seu método o único válido, desprezando qualquer metafiísica que não recorra a princípios e causas ao alcance de seu método, é reflexo do renascimento moderno do mito de Ícaro.

Este sonho penetrou como crença no sentimento popular, embevecido pelo progresso experimentado pela ciência moderna em sua infância, mas desvaneceu no âmbito da própria ciência, com o fracasso completo do projeto de se formalizar axiomaticamente o conhecimento matemático de maneira garantidamente isenta de paradoxos, após a publicação dos teoremas de incompletude da artimética pelo lógico austríaco Kurt Gõdel em 1930 [3]. Vejo o trabalho de Gõdel como marco do fim da infância, e início da adolescência da ciência moderna. Porém, a força do mito desperto é tão grande que este sonho persiste na visão ingenuamente otimista que o papel da ciência até hoje evoca na cultura popular.

A Sociedade Teosófica foi fundada no período de apogeu do positivismo científico. Na sua obra principal, sua fundadora alerta os cientistas que abraçavam o positivismo, e que na época eram maioria, sobre a responsabilidade por estarem alimentando esta crença popular, a reboque do sucesso que a ciência então experimentava [4]. O conhecimmento das forças da natureza, alcançado na leitura do "livro do Universo" a que se referia Galileu, permite algum controle sobre elas, mas não são essas as forças que atuam nas almas dos homens.

A ingenuidade do positivismo está em supor serem as forças que a ciência alcançares cogitans, todas as que atuam na natureza. Essa ingenuidade se manifesta quando o homem coletivamente fecha os olhos para problemas sociais, ecológicos e éticos que se agravam, julgando ser responsabilidade da ciência a descoberta de soluções para os mesmos: o senso comum infere que se a ciência os trouxe, poderá também resolvê-los. Mas a ciência precisa de humildade (em seus praticantes) para se ater apenas ao que seu método alcança.

Ao crer na razão como guia supremo em seu intelecto, o homem não pode perceber suas emoções e instintos subvertendo e solapando, nos momentos cruciais de julgamento e decisão, o roteiro racionalmente traçado para seu destino coletivo. O egoísmo individual, exacerbado pela calibragem dos valores econômicos e esvaziamento dos valores morais, pode destruir o edifício de complexas organizações sociais, tais como o Estado e a família, necessários à evolução do homem, talvez eventualmente de forma irreversível.

Entendo a "monetização" dos valores humanos como consequência da tentativa de se estender o primeiro grande sucesso da ciência moderna, o modelo mecanicista da física clássica, a classes de fenômenos que abrigam o imponderável, que incluem o homem em sua ação, com seus sentimentos e crenças, no cenário projetado pelo materialismo científico. O cosmos é visto na física clássica como um imenso mecanismo de precisão, como um relógio, posto a funcionar quando da criação, estando o movimento dos seus corpos fatalmente determinados pelo passado. Se este modelo for generalizado a ponto de incluir cada átomo do universo como um corpo, não haverá lugar para o livre-arbítrio do homem que nele habita.

Seria então o fim da res cogitans? O próprio método científico, entretanto, delimitou, com o surgimento das físicas quântica e relativística, o alcance desse modelo clássico [5]. Seria então prudente adotar esse mesmo modelo, o mecanicista, na Psicologia e na Economia, como fazem, respectivamente, os behavioristas e os monetaristas, seguindo o programa positivista com respaldo da crítica iluminista? Se tais aplicações do modelo clássico forem impróprias, não seria a ciência a primeira a desvelar esse fato? A resposta à última indagação seria sim, pois a ciência contém seus próprios instrumentos de crítica; mas o problema em responder à penúltima, é que esses instrumentos de crítica não são absolutos.

O eminente filósofo epistemologista Gaston Bachelard afirma: "A ciência é sempre a reforma de uma ilusão." As teorias científicas são aceitas quando explicam uma classe de fenômenos e oferecem mecanismos de controle ou predição sobre alguns desses fenômenos. Essa capacidade de controle ou predição, quando confirmada, valida os conceitos com os quais os mecanismos de controle foram engendrados. Geralmente, uma teoria científica é abandonada quando surge outra que explique e ofereça mecanismos de controle ou predição a um conjunto de fenômenos daquela mesma classe que abranja e supere o alcance da teoria anterior [6]. Mas no caso da fìsica quântica, uma nova etapa da ciência foi inaugurada, pois pela primeira vez o formalismo de uma teoria é desenvolvido à frente de suas possíveis interpretações [7].

Se o homem contemporâneo pauta sua conduta pelo materialismo científico, arrisca-se a abraçar uma explicação de mundo cujos limites desconhece no ponto em que a abraça, mas que só pode ser falseada quando esses limites se tornarem conhecidos pela sua transgressão. Ao incluir nesse modelo a compreensão do próprio ser humano, estará assim relativizando seus valores éticos e abrindo espaço para eximir-se da responsabilidade por sua própria conduta moral. O comunismo pode ser visto como uma grande experiência de engenharia social que, após 70 anos, expôs, a um custo relativamente alto, os limites do alcance de suas premissas. O problema do método científico nas ditas ciências humanas está em ser o próprio homem o objeto de experimentação para validar teorias. Considerar que tal empreendimento possa ser independente de valores éticos, como queria Galileu para seu projeto para a Ciência, constitui postura intrinsicamente ambígua.

A ciência não pode ter o privilégio de ser totalmente idealista depois de alcançada sua independência do dogma. Tornou-se escrava das revoluções que promoveu, que nos propõem uma corrida em direção à segurança material. Aceitamos incondicionalmente a proposta ao perseguirmos a segurança de uma conta bancária regularmente abastecida, para nos sentirmos imunes às incertezas do futuro. Na era da informação, o dinheiro muda de mãos com muita velocidade, e o esforço de atraí-lo cria demanda por informação. Fazer ciência custa dinheiro, e na competição por dinheiro, o desenvolvimento da ciência é guiado pelo que pode trazer mais dinheiro. A ciência se tornou um negócio como outro qualquer. E o caso da Astronomia ilustra como a competição por expectativa de lucro afeta seu desenvolvimento atual.

Na segunda guerra mundial, durante os blecautes de cidades na Inglaterra, os astrônomos aproveitaram a ausência de poluição luminosa na atmosfera para fazer observações mais detalhadas dos céus. Com isso descobriram as galáxias, pois eles puderam finalmente distinguir aqueles objetos celestes, extremamentes distantes, das reminiscências de estrelas que explodiram no passado, as nebulosas. A radioastronomia surgiu então, para ampliar nossa capacidade de observar a irradiação de objetos distantes, como existiam em tempos primordiais da formação do universo. Isto porque "enxergamos" no passado os objetos extremamente distantes, já que os sinais eletromagnéticos que detectamos de lá partiram há um tempo proporcional à distância que os separa da Terra. Apontando gigantescas antenas para o céu, podemos hoje determinar a composição química aproximada de nuvens de gases, normalmente invisível no espectro luminoso, a partir das quais foram e são formadas as estrelas, cujo conhecimento é fundamental para a compreensão cosmológica.

Esta detecção é feita ajustando-se o receptor nas antenas dos radiotelescópios para vibrarem em ressonância nas frequências que são emitidas por diversos compostos químicos. O hidrogênio, por exemplo, que constitui 95% da matéria atômica do universo, quando devidamente energizado emite radiação eletromagnética na frequência de 1421 MHz. Um sinal nesta frequência vindo do espaço, é como uma impressão digital virtual desse tipo de gás em alguma região na direção apontada pela antena que deteccta o sinal. Combinando-os com o perfil de intensidade da radiação em frequências próximas, e de cálculos do efeito Doppler que permitem determinar aproximadamente a distância da fonte de radiação em um universo em expansão, essas observações permitem construir um mapa rico e detalhado do universo em que vivemos [9]. Muito mais rico do que se nos valêssemos apenas de observações feitas através de telescópios ópticos, que captam as frequências eletromagnéticas da faixa visível, entre 394 THz (luz vermelha) e 768 THz (luz violeta).

Entretanto, a detecção e amplificação de sinais tão fracos, vindos de fontes tão distantes e gerados há tanto tempo, requer certo nível de pureza no ambiente de observação, naquelas faixas de frequência que se quer observar. As frequências importantes para a radioastronomia, aquelas que funcionam com impressão digital de matéria que entra na formação de estrelas e galáxias em seus diversos estágios de evolução e estados físicos, deveriam ser preservadas do loteamento comercial do espectro eletromagnético, procedimento que reserva intervalos de frequência para usos específicos em telecomunicações. Os organismos reponsáveis pela regulamentação das telecomunicações no mundo se deticam a distribuir autorizações para uso de faixas de frequência aos interessados, de acordo com critérios de prioridade e características de uso desejado. As faixas de frequência no espectro eletromagnético que são úteis às telecomunicações são, tal como a atmosfera e a água do planeta, parte de um recurso natural, e como tal, esgotável.

Algumas das frequências importantes para a radioastronomia foram preservadas até o momento, para uso preferencial em observações atronômicas. Mas a reserva de uso de frequências para fins comerciais está atingindo rapidamente o nível de saturação nas faixas economica e tecnicamente viáveis do espectro eletromagnético, com a demanda insaciável do planeta por redes mundiais de telecomunicação para telefonia e transmissão de dados para a internet. Como consequência, os organismos internacionais reguladores, tais como o ITU (International Telecommunications Union) vêm sofrendo pressões para autorizar o funcionamento de dispositivos de telecomunicações em satélites operando em frequências próximas às de observação radioastronômicas, que introduzirão ruídos no ambiente da atmosfera terrestre suficientes para inviabilizar observações radioastronômicas nestas faixas de frequência importantes. Essas pressões por exemplo ocorrem, já com sucesso, por um consórcio de empresas encabeçada pela Motorola, o "projeto Iridium", que pretende colocar mais de 60 satélites de telecomunicações em órbita geoestacionária, formando uma rede privada de telecomunicações [9]. por exemplo

Aqui nos deparamos com uma imagem dramática da ingenuidade de nossa cultura contemporânea, apegada de forma perigosamente literal ao mito do Ícaro positivista: como pode a ciência resolver nossos problemas, se não é sequer capaz de evitar que o uso comercial do espectro eletromagnético lhe turve a visão do próprio universo físico, enquanto achamos natural e justificado esse curso de eventos? O que essa imagem de ingenuidade pode ilustrar sobre outros processos culturais, como o de seleção natural de teorias econômicas que guiam a conduta de nossas instituições financeiras e governos?

Mesmo sem resolvermos a crise de compreensão da natureza, trazida pela teoria quântica [10], aprendemos a explorar seus efeitos microscópicos inventando transístores e lasers, com os quais construímos computadores e suas redes globais, que nos oferecem uma capacidade computacional e comunicacional inusitada e crescente. Esta capacidade, empregada em simulações e projeções de um formalismo qualquer, permite aos cientistas modernos especular com teorias, por nuvens conceituais inéditas e nunca dantes navegadas, irreconhecíveis fora do domínio estatístico, tornando as teorias econômicas e sociológicas de hoje semelhantes às penas das asas de um Ícaro.

Não sabemos de o princípio da incerteza de Heisenberg é uma barreira epistêmica intrínsica da natureza ou se da teoria que hoje melhor a explica (em escala microscópica), a teoria quântica [10]. Mas mesmo assim e com ela pela primeira vez, uma teoria permitiu-nos explorar de tal forma a natureza que fomos lançados numa nova era, a da informação, onde outras teorias são também pemitidas a experimentar com formalismos, através de simulações computacionais, antes mesmo da compreensão de seus conceitos por quem as formula. Foi assim porque do empreendimento científico se demanda resultados econômicos, talvez em decorrência da dessacralização do conhecimento que pode gerar, através das revoluções tecnológicas que promove. Ao amadurecer, a ciência passou, paradoxalmente, a produzir teorias precoces, e o caso da radioastronomia expõe a mudança que suponho ter aí ocorrido em seu papel.

Não vejo, entre as principais missões da ciência hoje, a de resolver problemas de alcance global que desafiam nossa civilização. Pensar assim seria interpretar o mito do Ícaro pós-moderno muito literalmente. Quanto mais complexa a tecnologia, por exemplo, mais difícil se evitar a possibilidade de fraudes e embustes em transações que pressupõem mútua confiança, executadas através da troca eletrônica de mensagens digitais, sendo impossível ignorar que as pessoas tendem a sentir-se mais propensas a cometer abusos, e menos hábeis em julgar no que e em quem confiar, no teatro despersonalizado de um mundo cada vez mais informatizado e dominado por tecnologias que poucos entendem. A evolução tecnológica parece afetar, como um complicador, nossa conduta moral.

Podemos interpretar o comportamento do mercado financeiro mundial, no episódio da crise asiática de 1997, como um sinal de que o animal político homo economicus não é um ser completamente racional. Ouvimos cientistas de hoje ecoarem os primeiros filósofos da ciẽncia afirmando que o único objetivo da mesma é agregar conhecimento para o progresso da humanidade, e que não se atém nem se influencia por fatores políticos, éticos ou morais da sociedade. Entretanto, parece cada vez mais claro haver uma via de mão dupla por onde transitam influências recíprocas entre estas esferas de valores: a sociedade pós-industrial é uma organização extremamente sofisticada e eficiente, onde menos de 5% da população poderia produzir alimentos em quantidade suficiente para todos, onde o indivíduo poderia daí poupar energia e tempo para se dedicar à busca espiritual, mas onde são cada vez mais escravos do relógio e de outras engenhocas, cada vez mais perseguidos pelo fantasma do desemprego, induzidos por sua dinâmica de competição, competência e eficiência.

Vejo como papel principal da ciência atual, o de amplificar e expor os contornos dos dilemas éticos por que passamos, já que a solução dos problemas glogais de nosso tempo, a maioria dos quais geradas com as revoluções que a própria ciência induziu, só podem ser equacionados através de uma conscientização coletiva das novas responsabilidades que a espécie humana gerou para si, no bojo dessas revoluções. Outra imagem mítica, a de um Prometeu aquariano, aparece-me sugerindo que novas tecnologias não serão capazes de induzir, por si mesmas, por mais espetaculares que venham a ser, essa nova consciência coletiva.

Enquanto não emerge essa nova consciência, confesso minha apreensão diante da combinação explosiva de duas capacidades -- a filtragem de valores universais através de teorias precoces nas quais o homem é objeto, e o alto grau de concentração de poder material -- nas mãos dos que conduzem nossos processos econômicos. Vejo-os como alquimistas contemporâneos (tema da obra prima de Gõethe), experimentando com penas e cera sobre a armação metálica da infraestrutura global de telecomunicações, moldando suas peças míticas no cadinho e retorta de seus cassinos -- os mercados financeiros --, balcões virtuais onde se negociam apostas sobre valores futuros de instrumentos de troca, necessários a quem queira participar do mundo que controlam.

Nessa opus alquímica, onde a prima matéria -- constituída pela confiança e pelo acesso das hordas a instrumentos de troca material -- é mercadejada, a percepção se inverte: o tempo passado, em que a Igreja Católica medieval condenava a prática de cobrança de juros como usura, é que nos parece um tempo mítico. Joseph Campbell, importante estudioso contemporâneo da mitologia, gostava de colecionar definições do que seja o mito; e colheu uma que se torna interessante nesse contexto: o mito é a religião dos outros. Sob uma óptica interna, os mercados financeiros são benéficos e até inevitáveis, como prega o monetarismo, pois executam leis universais de evolução para punir maus administradores e investidores, e premiar os bons (relativamente à lógica da ganância, da acumulação e do lucro). Nenhuma crítica, entretanto, daí emerge sobre o papel desempenhado por esta lógica na legitimação de tais "leis universais de evolução", pondo-se seus adeptos antes e já como juízes das mesmas.

Apesar de materialista, seria inspirada a visão de Karl Marx sobre o futuro do capitalismo? As responsabilidades emergentes do ser humano, que estendem o alcance e o efeito dos valores éticos para além de horizontes históricos, impregnando a humanidade com efeitos colaterais do modus vivendi que a ciência hoje nos proporciona, decorrem, numa interpretação teosófica, do amadurecimento do corpo mental inferior da nossa espécie. Como nos adverte (também) a tradição teosófica, a negligência das responsabilidades emergentes com esse amadurecimento pode trazer efeitos nefastos e cumulativos à evolução de quem amadurece, neste caso a própria humanidade.



Nota do Editor-Autor:

Tendo se convertido a Cristo em 2007, e assim deixado a teosofia, o autor reedita este artigo em 2012 para recontextualizar, nesta edição, a mensagem deste artigo: Assumir as responsabilidades decorrentes do amadurecimento do corpo mental inferior da espécie humana significa aceitar a mensagem do Evangelho de Jesus Cristo enquanto há tempo.


Bibliografia

[1]- Burtt, E.: "As Bases Metafísicas da Ciência Moderna", Ed. UnB, 1991.
[2]- Kuhn, T.: "A Estrutura das Revoluções Científicas", Ed. Perspectiva, 1972.
[3]- Kleene, S.: "Introduction to Metamathematics", Ed. North Holland, 1971.
[4]- Blavatski, H.: "A Doutrina Secreta", Ed. Pensamento, 1971.
[5]- Braga, R.: "A Apercepção Originária de Kant na Física do Século XX", Ed. UnB, 1991.
[6]- Bachelard, G.: "A Epistemologia", Ed. 70, Lisboa, 1971
[7]- Mehra, C.: "The Quantum Principle: its Interpretation and Epistemology", Ed. Reidel, 1974.
[8]- Soros, G.: "A Alquimia das Finanças", Ed. Nova Fronteira, 1997.
[9]- Roth, J.: "Will the Sun Set on Radioastronomy?", Sky & Telescope, April 1997.
[10]- Popper, K.: "A Teoria dos Quanta e a Cisma na Física", Ed. Don Quixote, Lisboa, 1992.