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A ALCA e o Cenário de Princeton

Publicado em resumo no caderno "internet" do Jornal do Brasil em 26/04/01
e no
Observatório da imprensa em 2/05/2001

Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Univerisadade de Brasília
24 Abril 2001


O professor Edward Felten e sua equipe de computatas, da Universidade de Princeton nos EUA, descobriram a ineficácia do sistema de Verance para "marca d'água digital", mas se viram impedidos de publicar seus achados, porque estariam assim violando dispositivos anti-burla na lei DMCA (Digital Milenium Copyright's Act). Este sistema é adotado pela RIAA (a Associação das Gravadoras dos EUA). Embora paguem no máximo 4% da venda de discos aos seus artistas, sem lhes abrir sua contabilidade, seus membros dizem que a tecnologia de Verance destina-se a proteger os direitos autorais dos artistas contra pirataria. Esta ineficácia não é surpresa, pois a marca d'água digital é um oxímoro, por ser um conceito físico que se quer aplicar no plano sintático dos bits. Qualquer tecnologia que tente implementá-la será uma tecnologia, digamos, da carochinha. Como o é aquela que protegia o sigilo dos votos no painel do Senado Federal, que, segundo peritos, teria 18 furos.

A notícia deste cenário em Princeton, divulgada pela revista eletrônica Wired, em http://www.wired.com/news/print/0,1294,41183,00.html, é uma amostra de como evoluem as tecnologias da informação, quando livres de salvaguardas nas leis que regulamentem seu uso. Tecnologias da carochinha são postas em uso pela indústria, vestidas com coloridos emblemas de mecanismos de proteção a direitos autorais, ou de mecanismos de controle de acesso digital, independentemente de sua eficácia e verdadeira funcionalidade. E como tal desfilam sob a proteção da DMCA, uma lei que, pelo nome, pretende ser milenar. O sistema de Verance segue atrás do CSS, sobre o qual tenho já escrito (em DVD Aberto, Risco).

Com esta lei, se alguém quiser mostrar como e porque tais tecnologias não justificam o título que recebem de quem as promove, poderá ser censurado e processado criminalmente por prejuízos ao uso comercial de tecnologias nas quais se investiu dinheiro. Estas censuras e ameaças se voltam agora, no desenrolar do primeiro ato neste cenário de Princeton,  detalhado na lista Politech em http://www.politechbot.com/p-01946.html, contra a atividade acadêmica, onde a liberdade de expressão sempre foi o oxigênio da ciência e do conhecimento. Princeton é uma das mais importantes instituições de ensino e pesquisa no mundo, enquanto Verance e DMCA me faz lembrar Veneza. Dizem que lá foi aprovada, no século XVI ou XVII, uma lei que proibia às prostitutas saírem às ruas vestidas em quaisquer cores. Só podiam circular em cores permitidas (duas ou três, não me lembro quais), para que as damas da cidade não fossem com elas confundidas. Esta lei, meio milenar, ao que parece ainda não foi revogada.

Que novas tecnologias subirão ao palco, no próximo ato do cenário de Princeton? Provavelmente as de assinatura eletrônica. Lá elas estarão sob a proteção de mais uma lei, a lei e-Sign. Como estariam aqui pelas leis que, como a e-Sign, seguem o modelo de outorga proposto pela UNCITRAL. Há dois projetos de lei deste molde tramitando no Congresso Nacional, competindo, em filosofia e votos, com outro projeto da OAB. Assim como a DMCA, que outorga ao mercado o poder de definir o que seja tecnologia anti-pirataria, essas leis outorgam ao mercado o poder de definir o que venha a ser tecnologia anti-fraude, a assinatura eletrônica. A indústria que vive de criar e promover tecnologias da informação está impaciente para por suas criações nesta avenida, já tendo conseguido aprovar um enredo, com a lei e-Sign. Suas novas tecnologias, e seus fluxos de caixa, pedem passagem.

Entretanto, a menos que o seu fundamento semiótico seja um segredo autenticatório não compartilhado do assinante, o conceito de assinatura eletrônica será outro oxímoro. Deve-se rir, quando não for possível refutar, mas nunca fingir-se de entendido, se alguém chamar de assinatura eletrônica a autenticação efetuada por senhas ou registros biométricos, já que, nesses casos, assinante e sistemas verificadores compartilham este segredo. E esses sistemas são tão perfeitos, confiáveis e honestos quanto quem os cria, instala e gerencia. Tal fundamento é o que permite a um pretenso assinante repudiar fraudes de sua assinatura. Nele se baseia o projeto de lei da OAB, e as primeiras leis do gênero no mundo.

Mas então, por que há hoje tanta insistência para a outorga e a omissão semiótica (ou conceitual) nessas leis? Acontece que as tecnologias fundadas na semiose do segredo não compartilhado -- os sistemas criptográficos de chaves públicas ou assimétricas -- estão já em domínio e em padrões abertos, e não podem mais ser "repossuídas" por esta indústria. Pelo menos as quatro já descobertas, que deram indícios de serem essas muito raras. Talvez por isso alardeia-se que salvaguardas semióticas são engessamentos, e que gesso é ruim. Tal qual a raposa e as uvas. (veja http://www.cnn.com/2001/TECH/ internet/04/09/internet.security.ap/index.html?s=8).

Mas mesmo que se queira chamar semiótica de tecnologia, não fica claro porque a limitação de tecnologias em leis seja necessariamente ruim. Onde a civilidade já acomodou a cobiça, não se ouve mais este tipo de argumento, como por exemplo, em relação ao código de trânsito, às leis de controle santiário, ou às de porte de armas, todas contendo referências restritivas a tecnologias. A cena ganha em dramaticidade quando se misturam os poderes para se definir o que seja tecnologia antipirataria e tecnologia antifraude. Explosiva como a mistura da dinamite, sua detonação poderia demolir o efeito da lei áurea.

Para estimularmos nossa imaginação, enquanto aguardamos o próximo ato, podemos ir consultando o artigo 13 no modelo de lei da UNCITRAL.( http://www.uncitral.org/en-index.htm). Ali se recomenda, ocultando da lei os seus paradoxos, que o ônus da prova de forja de uma assinatura eletrônica se faça recair sobre o pretenso assinante, revertendo-se assim grande parte da jurisprudência, vigente no mundo civilizado, do direito comercial e de contratos. Vale lembrar que nos softwares de código proprietário e fechado, tais como o sistema Windows, o pretenso assinante estaria legalmente impedido, pela DMCA, de colher tais evidênicias ou provas de fraude.

Imaginemos por um momento que o enredo para o próximo ato inclua também a extensão, a todo o nosso hemisfério, da jurisdição de leis como a e-Sign e a DMCA, através do regime da ALCA, e que agentes de mercado aptos ao exercício das suas outorgas, tais como o cartel das administradoras de cartão de crédito, ou o monopólio de sistemas operacionais de código fechado, ou a Febraban, ou a Receita Federal, ou a Justiça, etc., restrinjam ou eliminem o uso da nossa assinatura de punho ou de chaves assimétricas, forçando-nos a substituí-las por novas tecnologias da carochinha, escolhidas por burocratas ou executivos através de processos, concorrências ou contratos obscuros ou opacos. Seria verossímil?

Quem defende o modelo de outorga para a lei brasileira, ou quem irá participar nas negociações da ALCA em nome do Brasil, com ou sem interesses corporativos multinacionais a lhe arejar as idéias ou a lhe amparar, deve refletir sobre os desdobramentos prometidos pelo cenário de Princeton. E quem lhe delega tal poder deve observar-lhe a conduta. Será que os riscos sociais por trás do palco podem mesmo ser compensados pela liberdade que o mercado pede, para escolher nossas "novas tecnologias" segundo critérios que lhes são próprios, mas estrábicos? Estrábicos porque o capital, quando regido por si mesmo, (situação que hoje chamam de livre comércio) não aceita riscos. E por isso, em modo auto-regido repele controles. E riscos não desaparecem simplemente porque ninguém os queira. Não é preciso muita imaginação para se adivinhar como tal regência os irá distribuir, assim como a água é distribuida pela força da gravidade.

Será que as verdadeiras marionetes neste palco são mesmo aqueles que derrubam as novas cercas de Québec, ou quebram vidraças de lanchonetes globais, conforme se apressam a explicar, em uníssono, experts em telejornais? Será que o efeito prático combinado de leis como a e-Sign e a DMCA vai ser, ao pior, inócuo, como tem sido o código cromático de um certo segmento de mercado em Veneza? Será que a tecnologia social costurada pelos defensores do livre comércio e do modelo de outorga nos levará mesmo a uma cultura de prosperidade e fartura, ou será ela mais parecida a uma cultura Orwelliana? Ou Kafkiana? Ou frankensteiniana? Aguentaremos o fardo se esses pragmáticos e espertos idealistas tiverem sucesso em instalar o reino do deus-mercado sobre a face da terra?

Na revista Veja de 23/4/01 o ex-diretor do BC, Dr. Gustavo Franco, com insuperável maestria e clareza, fala sobre os paradoxos que a esperteza coletiva traz à economia. Quem assumiu, por escolha profissional, responsabilidades sociais que afetam decisões coletivas sobre o tipo de lei, digital ou não, sob as quais viveremos no futuro, têm o dever histórico de refletir com honestadade intelectual sobre aquilo que as coreografias no cenário de Princeton estão a nos dizer. Pode-se estar entrando para a história --  parodiando o Ministro Nelson Jobim em abertura de sessão no I Congresso Internacional de Direito na Informática e na Internet --, ao melhor, ao lado de um anônimo vereador Veneziano do século XVI.

v.4
24/04/01