CÂMARA DOS DEPUTADOS


Palestra proferida pela professora Maureen O'Sullivan, da University of West of England, em audiência pública da Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados, em 24 de Agosto de 2004, por convite do Deputado Sérgio Miranda e do prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende. Tradução: serviço da Câmara[original em inglês disponível]


A LEI E O PROCESSO LEGISLATIVO EM UMA ERA DE ALTA TECNOLOGIA


O problema para a sociedade, quando lei e tecnologia se encontram, é que tradicionalmente a lei tem sido uma estrutura hierárquica, com uma crença absoluta em sua própria inteligência e em sua capacidade de alcançar todos os assuntos objetivamente, na ausência de referência de qualquer outra fonte. Isto significa que, quando confrontada por mudanças e desafios pela sociedade ou pela tecnologia, a lei tem sido morosa em responder, e em alguns casos tem sido quase que totalmente fossilizada, em vez de ser revisada, como seria o correto. O tema da minha fala é o modo pelo qual a lei e as políticas têm de se adaptar para fazer face a novas tecnologias a fim de desenvolvê-las da maneira mais construtiva possível e evitar ressentimentos por parte da sociedade civil, caso seja percebido que os interesses de grandes grupos empresariais estão sendo priorizados. Eu creio que a lei necessita de flexibilização em sua intersecção com a tecnologia. Não deveríamos pensar em termos ortodoxos de regulamentação ou desregulamentação: envolvimento, transparência, comunicação e subjetividade são aspectos chave de uma abordagem necessária, pois de que outra forma podemos desenvolver uma cobertura legal apropriada que seja aceitável à população em geral?


Eu estou falando com ideais democráticos em mente. Também falo como um advogado pertencente a um sistema de common law, ou um sistema legal anglo-americano, e não a uma jurisdição continental ou romana, mas creio que minha perspectiva é relevante aqui no Brasil, assim como uma lei internacional sobre qualquer assunto relacionado ao comércio ou a direitos de propriedade intelectual é bastante influenciada pelos Estados Unidos, que também têm um sistema de common law.



ONDE A LEI E AS QUESTÕES SOCIAIS SE ENCONTRAM


Meu primeiro exemplo dos desafios que a lei enfrenta quando lida em território estranho vem de fora do campo da tecnologia, do campo da lei criminal, por ter sido esta a primeira grande área de pesquisa em que me lancei. Usarei esse exemplo aqui porque ele realça de uma forma limitada os tipos de desafios que a lei pode esperar confrontar na tecnologia e como, em princípio, as coisas não devem ser conduzidas.


Nas jurisdições de common law, tais como Irlanda, Canadá, Nova Zelândia, vários países africanos e a maior parte dos Estados Unidos, todos antigas colônias da Inglaterra, cujos sistemas legais são fundamentados principalmente em torno de provisões legislativas fortemente refinadas por leis baseadas em casos, a co-existência de grupos étnicos muito diferentes tem conduzido a interessantes desenvolvimentos no processo legislativo e nos dilemas legais, onde leis antigas encontram novas pessoas com influências e expectações alternativas, em situações sociais flutuantes. A manifestação mais engraçada disso, que eu saiba, é o conceito inglês de “pessoa normal” (“reasonable man”) numa defesa parcial do assassinato conhecida como “provocação” e a maneira como este conceito evoluiu no tempo. Na lei inglesa, pelo crime de assassinato, há uma sentença de morte obrigatória, que é um resquício dos tempos da pena de morte. A legítima defesa é uma defesa total: se você prová-la, será absolvido. Há algumas defesas atenuantes ou parciais tais como a defesa por “provocação”, que mudará a acusação de assassinato para assassinato sem dolo, e a prova é que o acusado deve ter agido nas circunstâncias do assassinato como um homem normal teria agido.




QUEM É O “HOMEM NORMAL”?



Em todas as jurisdições de common law, o “homem normal” pode ser uma mulher, embora o termo “homem normal” não tenha entrado para o vocabulário jurídico. De qualquer forma, minhas fontes me informam que isso existe. Na Irlanda, o homem razoável não pode ter desordem psicológica; ele é, afinal de contas, “normal”, por isso, você deveria invocar outra defesa parcial - “responsabilidade diminuída” - mas na Inglaterra você pode invocar essas duas defesas ao mesmo tempo. Assim, se você for ao tribunal alegando ter sido são e insano ao mesmo tempo, você tem mais chances de absolvição do que se optar por somente uma das defesas. A fim de avaliar o que seja razoável, “experts em testemunhar” são chamados, e o juiz tem a esdrúxula tarefa de decidir quais características são razoáveis e quais não são.


O problema real é sentença obrigatória para o assassinato, e a solução mais simples seria aboli-la e ter uma política de informação para o sentenciamento, mas isso não tem sido feito: ao contrário, a abordagem tem sido permitir a discrição dos juízes na construção do homem normal e expandir a definição da forma como eles vêem que se enquadra. É quase desnecessário mencionar que a maioria dos juízes de direito vêm de uma classe privilegiada e têm pouca experiência na lide com questões de gênero, questões raciais, religiosas, sócio-econômicas e de classe, para citar somente poucas, e lhes falta entendimento da violência doméstica onde esse tipo de defesa raramente é alegado. Portanto, o que é considerado razoável difere a cada jurisdição e às vezes em cada corte. Isto é somente um pequeno exemplo para ilustrar os tipos de problemas que a pessoalidade, preconceitos e a ignorância nas cortes podem apresentar, e também se aplica aos legisladores e advogados.



PRECONCEITOS JURÍDICOS A RESPEITO DE SOFTWARE E DE DIREITOS



É melhor ir direto à causa radicular da questão: de outra forma, mesmo em uma análise superficial, os advogados findarão parecendo um bando de idiotas. O atual estado de direito e a tecnologia no mundo estão numa bagunça maior ainda: a introdução da proteção do copyright de software nos Estados Unidos foi feita por meio de um intenso lobby em um judiciário bastante mal informado. O software também foi protegido sob a lei de copyright porque para o legislador comum, o código da fonte impressa parece com aquele de um livro ou trabalho literário. As leis foram impostas de cima para baixo e serviam a uma estreita faixa de interesses.



Hoje, o judiciário tende a ser mais bem informado sobre tecnologia, mas no caso do software livre, eles ainda não têm uma idéia a respeito de questões sociais: eles caíram na armadilha dos direitos e dos incentivos à “propriedade intelectual” - argumentos sobre o enriquecimento da sociedade e criação de empregos. Esses argumentos sustentam que você tem direito ao que você criou e exclui outros dessa criação, o que é uma postura filosófica baseada numa leitura errônea dos trabalhos de um filósofo do século XVII. Outros argumentos que procuram justificar a propriedade intelectual incluem aqueles relacionados ao incentivo, baseados na idéia de que todos nós somente valorizamos o dinheiro e que, nas palavras de Margaret Thatcher, “não existe essa coisa de sociedade”, há somente os indivíduos. De fato, os aspectos sociológicos da Internet são todos a respeito de sociedade e têm pouco a ver diretamente com economia. O capital amealhado por pessoas como Linus Torvalds, o gerenciador do Linux, é primeiramente de reputação, não financeiro. Embora muitos advogados retenham a fachada de objetividade e neutralidade que mencionei anteriormente, eles permitem que os interesses de grandes negócios afetem sua maneira de trabalhar. Ficam preocupados somente em ganhar causas. A moral muda e toda a profissão e todos aqueles afetados por ela tornam-se menos representativos e representados, respectivamente. Em contrapartida, a sociedade sofre e começou a resistir a esta contínua onda de comportamento anti democrático por parte das grandes corporações operando por meio de processos políticos e legais. O perigo é que, se pressionada demais, a polarização de política e sociedade aumentará com possíveis e imprevisíveis resultados violentos – na Europa, nesses últimos anos, tem havido um aumento monumental da democracia participativa.


Software livre e Internet, os dois sendo virtualmente sinônimos, constituem um recurso feito e gerenciado pelo homem, um ecossistema complexo de intrincados laços sociais entre seus criadores, tecnologia que poucos de nós entende totalmente, e, de maneira importante, um sistema de licenciamento informal bem estabelecido que poderia provar ser o calcanhar de Aquiles, caso não fosse gerenciado corretamente. Isso é porque as comunidades de software livre não podem realmente ser infiltradas por companhias proprietárias de software porque esse não é o quintal delas. Assim, tentativas não serão feitas para abalar membros da comunidade no meio da comunidade à medida que o software livre desbanca o software proprietário em todo o globo. De qualquer forma, a lei como uma arma contra o software livre é uma outra história. As leis de propriedade intelectual, nas quais o software livre parcialmente se ampara, são o terreno de grandes multinacionais: afinal, elas praticamente escreveram e continuam a escrever as leis. Se você enxergar as leis de propriedade intelectual como uma privatização, sancionada externamente, de recursos comuns contra a vontade popular ou dos criadores dos recursos, este será o campo de batalha, a meu ver, no qual companhias proprietárias de software escolherão para lutar. Essas leis são um tipo de colonização porque elas tratam recursos comuns em termos de propriedade privada, com somente um proprietário ou um pequeno grupo deles.


A GNU GPL, que é comumente a mais utilizada licença de software livre, subversivamente depende copyright para permitir um maior acesso ao código de fonte do que está normatizado. Esta licença tem sido descrita pelo Professor Lawrence Lessig como “ O verdadeiro gênio de Stallman” por causa da maneira pela qual aqueles que modificam e publicam suas modificações devem garantir o mesmo acesso a outros. Isso foi escrito por Richard Stallman, um hacker, não um advogado, em um país de common law e agora é utilizada em quase 80% dos projetos de software livre em todo o mundo. Os usuários incluem governos, empresas e autoridades locais e regionais. Advogados não estão envolvidos no processo decisório sobre qual licença adotar porque licenças não são escolhidas, a princípio, tendo-se em mente a lei de qualquer jurisdição em particular. Ao contrário, elas são escolhidas para facilitar o modelo de desenvolvimento de um software específico ou para ser um guia para reutilização de software. Sua força firma-se nos laços sociais e nas regras que elas cultuam, não no respeito às leis de um país em particular. Elas são projetadas para subverter aquelas leis e passar de largo pelo caminho no qual as leis de propriedade intelectual prejudicaram as primeiras comunidades de software livre.


A CC-GNU GPL, ou a versão Comunidade Criativa da GNU GPL para o Brasil é a primeira tentativa de se conseguir a quasi-legalidade da Licença Pública Geral GNU por meio da harmonização dos termos dessa licença com a lei brasileira, mas isso somente é possível em nível nacional. Ela não tem também, como é de meu conhecimento, a aprovação da Fundação para o Software Livre. Isto não é uma crítica, somente uma observação. Enquanto útil, a harmonização nacional somente arranha a superfície das questões legais e sócio-legais, especialmente quando há colaboração internacional no desenvolvimento de software, que os advogados e os gestores de políticas, em colaboração com aqueles que desenvolvem o software livre urgentemente têm de buscar. Digo urgentemente por causa dos outros interesses envolvidos que colocam uma ameaça potencial ao software livre: aqueles interesses das grandes empresas, dos proprietários de patentes e de copyright que estão tentando enfraquecer essa licença. Caso obtenham sucesso, podem fazer cair o castelo de cartas. O modo pelo qual isso pode ser alcançado, as possíveis respostas e as ações preventivas são o foco de minha fala hoje.


O Brasil escolheu defender o o software livre, e eu veementemente estimulo a vocês que sustentem o seu discurso não somente com um combate, uma ação concreta, que eu entendo que vocês já estão fazendo, mas também com uma política apropriada, leis e estratégias para cenários hipotéticos. Para efetivamente fazer isso, vocês precisarão de um brainstorm multi setorial que envolva membros da comunidade de software livre no Brasil na elaboração de suas políticas. Fui convidado recentemente para fazer uma série de palestras na Universidade de Extremadura, na Espanha, onde o governo regional instalou um computador para cada dois estudantes em todas as escolas públicas. Eles também montaram 33 centros para treinar a população no uso de software livre: cada centro tem dois instrutores e, em conjunto com as associações de vizinhança, pensionistas estão comparecendo regularmente e aprendendo como usar email grátis de forma a estar em contato regular com os seus que moram em outras partes da Espanha. Minha grande pergunta para eles foi como eles conseguiram fazer para coordenar tudo tão rapidamente e tão sem arestas, porque a mudança estava muito bem organizada. Eles disseram que o fator mais importante tinha sido a vontade política, que havia apoio vindo de cima e, de fato, uma iniciação de cima para baixo de todo o esquema. Extremadura foi o lugar de onde vieram muitos dos conquistadores da América Latina, e nessa altura eu sugeri que eles estão tentando repetir a história, desta vez com o software livre. O envolvimento de cima para baixo é um ponto importante: vocês têm feito isso em uma escala bem maior ao optar pelo software livre, e seu desafio será certificarem-se de que tudo o mais se encaixe. Eu estou trabalhando com o governo regional para desenvolver alguma legislação nessa área e tenho as seguintes observações a fazer.


A legislação de software livre ainda está num estágio de crescimento em seu desenvolvimento sócio-legal – tem amadurecido como um fenômeno evidenciado em sua larga adoção por todo o mundo, mas legalmente sua situação é precária. Batalhas estão por vir e, se a experiência nos diz algo, é que o esforço será contínuo e haverá muito mais manifestações. As posições são: software livre x software proprietário; leis informais x legislação; locais e mecanismos de resolução de disputas informais x tribunais e leis consuetudinárias; sociedade x grandes empresas. Uma vez que todos os interesses conservadores tem trabalhado em conjunto para criar o clima legal corrente, quero dizer, software proprietário com a legislação, tribunais e as empresas: a fim de ser efetivos, todos os que advogam o software livre devem unir forças e criar um ecossistema para proteger o recurso. Se vocês não estiverem bastante coesos em sua abordagem, na estratégia, nas políticas e na elaboração das leis, será fácil para os que estão de fora desestabilizar seus esforços.


O que eu estou dizendo em relação ao software livre já foi encenado com mais profundidade em uma outra intersecção de lei e tecnologia, cuja luta já passou, parte ganha, parte perdida, e cujo estágio se encontra bem mais avançado na Europa, atualmente. Creio que será útil para vocês se eu fizer uma digressão e falar a respeito da luta de oito anos envolvendo a importação, pela Europa, de grãos transgênicos, ou geneticamente modificados porque há lições a serem tiradas da confrontação entre a lei, a sociedade e a tecnologia, que nós já experimentamos nesta matéria. Muitos dos ítens relacionados ao software livre e aos organismos geneticamente modificados são os mesmos e envolvem o encontro da lei, sociedade e tecnologia; propriedade intelectual, especialmente em forma de patentes; argumentos sobre quem tem o direito de controlar nosso acesso à cadeia alimentar, à informação etc. Essencialmente, estou falando sobre democracia participativa versus democracia representativa, ou sociedade civil versus políticos que operam mais no interesse dos grandes negócios do que representando o povo, como deveriam fazer.



LIÇÕES TIRADAS DA ELABORAÇÃO DE LEIS SOBRE OS TRANSGÊNICOS OU ORGANISMOS GENETICAMENTE MODIFICADOS


Crick e Watson “descobriram” a hélice de DNA nos anos cinqüenta, e desde então cientistas têm estado tentando manipulá-la. Isso foi feito sem consulta pública. Nos anos setenta, cientistas fizeram uma conclamação para uma moratória voluntária na modificação genética por um curto período de tempo a fim de considerar questões éticas, mas também para decidir que o público, ou qualquer pessoa de fora da comunidade científica, não precisaria estar envolvido nessa decisão.


A propósito, eu gostaria de dar uma rápida palavra a respeito do papel da ciência na sociedade, antes de continuar. Eu diria que a ciência, hoje, ocupa uma posição na sociedade somente ocupada pela Igreja Católica na Idade Média, e isto tem muito a ver com a regulamentação da tecnologia. Os advogados somente procuram por respostas do tipo “sim” ou “não” , “é seguro ou não?” e a ciência não pode realmente responder essas perguntas definitivamente, no entanto tem sido forçada a prover absolutos – verdade absoluta e padrões para os quais tudo o mais vem em segundo lugar. Por exemplo, todas as decisões sobre transgênicos são, em última instância, baseadas em uma “ciência sadia”. Assim como o “homem razoável” do meu exemplo anterior, a “ciência sadia” não é a mesma criatura nos Estados Unidos e na Europa, embora a OMC queira nos forçar a uma posição padronizada – a posição dos Estados Unidos. Quase todas as pesquisas sobre transgênicos na cadeia alimentar são conduzidas por um punhado de corporações multinacionais que são orientadas pelo lucro. Os cientistas são obrigados a concordar, caso não queiram ser excomungados da comunidade científica, e há abundantes exemplos disso na Europa, Estados Unidos e em qualquer outro lugar.


Os transgênicos levantam numerosas questões para consideração social, incluindo: possíveis efeitos negativos ou positivos no meio ambiente; conseqüências para a saúde humana e animal; patentes de transgênicos; questões éticas, incluindo as restrições seculares de dieta, que são ameaçadas pela incorporação de genes animais e humanos aos grãos de cereais; a inabilidade para se separar grãos orgânicos, convencionais e os geneticamente modificados; a melhor maneira de se lidar com a fome mundial; e a simples questão de escolha – se a maioria das pessoas não quer alguma coisa, independentemente de suas razões, tal coisa não deveria ser imposta contra sua vontade. Fazer isto é uma total violência aos princípios democráticos, segundo os quais a maioria, em termos numéricos e não em termos de dinheiro, supostamente deveria prevalecer. As decisões sobre os transgênicos são ultimadas, no entanto, baseadas na “segurança dos grãos”, e um dos argumentos favoritos da Monsanto é que os transgênicos têm sido testados bem mais do que os grãos convencionais, por isso são mais seguros. Quando pressionados por evidência destes testes rigorosos, dos quais ainda não encontrei exemplo de forma nenhuma em todos os meus oito anos de pesquisa nessa área, eles replicaram, como se um teste fora, que milhões de americanos vêm comendo esses grãos há uma década e ninguém morreu em decorrência disso. Digno de nota é o fato de que a maioria dos americanos não está consciente de outro fato – o de que o estilo americano da “ciência sadia” decidiu que eles não precisam estar informados de tudo.


Nos anos 80, os EUA decidiram regulamentar a modificação genética com a legislação existente: assim como com o software, eles decidiram que o vinho novo precisava de odres velhos, e não de leis especialmente elaboradas ou sui generis. Em 1992 os grãos modificados haviam se tornado comercialmente viáveis e, naquele ponto, o FDA (Food and Drug Administration), um organismo que realmente goza de confiança nos EUA, contratou um advogado que trabalhara anteriormente para a Monsanto na elaboração de sua política sobre transgênicos. Tal documento previa que o público não seria informado a respeito dos grãos modificados que entravam na cadeia alimentar, caso pudesse ser constatada uma “similaridade substancial” com os outros não modificados. Assim, o grão de soja que incorpora genes de outras espécies, juntamente com alguns vírus e bactérias, rotineiramente recebe essa classificação de similaridade substancial. Não há rotulação caso um organismo geneticamente modificado não seja suficientemente diferente, porém o transgênico que não for suficientemente diferente para receber uma rotulação sob as leis que versam sobre alimentos, é suficientemente diferente para receber proteção de patente. De acordo com as leis sobre alimentos, um transgênico é igual a um não-transgênico; de acordo com a lei de patentes, um transgênico é somente uma nova invenção.


A legislação sobre rotulação de alimentos é, efetivamente, uma total desregulamentação: ninguém sabe realmente quantos tipos de grãos já foram modificados e com quê. Considerando que os vetores responsáveis pela propagação dos novos genes no organismo receptor são derivados de bactérias e vírus – um tipo de escherichia coli é utilizado, por exemplo – não parece ser uma tecnologia totalmente benigna. Argumentos a favor de grãos geneticamente modificados incluem estatísticas sobre a fome mundial como se as grandes companhias de biotecnologia, que têm patentes de todos os seus grãos modificados, fossem repassá-las gratuitamente aos países pobres. Além disso, mais de 99% dos grãos modificados nos últimos doze anos o foram por questões de tolerância a herbicidas e de resistência a insetos. Essas mesmas companhias tinham patentes dos herbicidas conhecidos como Roundup e Liberty, com prazo de expiração se aproximando, por exemplo, vendendo grãos modificados e sugerindo que os fazendeiros poderiam ser obrigados a comprar seus herbicidas do produtor de sementes. Mais ainda, o gene incorporado nos grãos modificados para resistência a insetos, Bt, é comumente utilizado na agricultura orgânica, mas o seu uso continuado ameaça tornar esse inseticida natural sem utilidade e, por conseguinte, prejudicar a indústria de alimentos orgânicos. Se o seu vizinho está cultivando transgênicos patenteados e de alguma forma eles adentram suas terras, você não pode processá-lo por contaminação porque a “boa ciência” decreta que não há problema com eles – nenhuma compensação é necessária porque nenhum dano foi causado – mas o proprietário da patente, não seu vizinho, que é somente um mero licenciado, a grande corporação, pode processá-lo por infringir a patente. A suprema corte canadense recentemente manteve uma sentença da Monsanto contra um fazendeiro, que teve de pagar por massivos prejuízos à companhia.


A Microsoft tem sido um novo investidor na Monsanto. Se o massacre das patentes continuar e não sofrer uma resistência efetiva, em breve a maior parte das informações e dos alimentos do mundo estarão nas mãos destas duas corporações.


A propriedade da cadeia alimentar está sendo costurada: um número bem pequeno de grandes corporações agora detêm patentes de muitos dos grandes cereais: soja, canola e milho – os principais – e há planos em andamento para desenvolver o trigo geneticamente modificado, os quais até agora têm sido arquivados por conta de uma massiva oposição nos EUA e Canadá. Em qualquer caso, a Monsanto está agora concentrando seus esforços no Brasil porque como o segundo maior produtor mundial de soja, por oito anos vocês permitiram à Europa comprar soja não-modificada e a resistir à importação dos transgênicos até o ano passado, quando vocês mudaram a política. Numa escala internacional, isso foi uma vitória enorme para a Monsanto, embora à medida que os cidadãos americanos tornam-se mais informados, uma grande resistência começa a tomar enormes proporções contra os transgênicos, especialmente em estados como a Califórnia, onde pouco a pouco eles estão banindo os transgênicos – indo contra a lei federal.


A importação de transgênicos para a Europa causou uma grande surpresa para as grandes companhias de biotecnologia porque elas jamais esperavam a oposição que encontraram. Sua primeira estratégia, em 1996, foi importá-los em silêncio, com a colaboração da Comissão Européia, um corpo governamental não-eleito da União Européia. Quando isso não funcionou, a Monsanto forçou os carregadores de grãos nos EUA a misturar 2% de soja geneticamente modificada à soja não-modificada e tentou forçar-nos a aceitar isso. A soja havia se tornado importante como alimento animal na Europa após o escândalo da doença da vaca louca e houve muita sensibilidade entre a população sobre segurança dos alimentos paralelamente a uma bem desenvolvida cultura de alimentos na maioria dos países, que difere daquela cultura dos EUA. Uma grande oposição foi erguida por ONGs como o Greenpeace e Amigos da Terra e por meio de processos políticos pelo Partido Verde, que desempenha um importante papel na política européia – tanto no nível comunitário como nacional. Além disso, ainda encontramos uma fonte de soja não modificada no Brasil. A Monsanto foi bastante hábil e conseguiu com que a Argentina fizesse uma completa conversão para a soja geneticamente modificada que ela conseguiu, com o conhecimento de que os fazendeiros brasileiros iriam eventualmente começar a cultivar esses grãos – quer fosse legal ou ilegalmente. Assim, eles ganharam aquela parte da batalha.


A oposição aos transgênicos na Europa foi tão forte que em 1998 uma moratória foi declarada para a sua importação e comercialização. Um novo Ato Diretivo foi delineado em 2001 e foi aprovado em alguns Estados membros com muita relutância. Na verdade, a maioria dos países não incluiu essa legislação para a legislação nacional no tempo aprazado porque na verdade é uma batata quente na mão. A Diretiva proveu um regime bem mais rigoroso, mas não chegou realmente a alcançar seu objetivo maior de suspender a moratória porque muitos Estados Membros simplesmente recusaram-se a impor sanção às importações, e a Comissão caminha muito cuidadosamente.


Tem havido uma contínua destruição de campos de teste: pessoas de todas as classes sociais e idades têm sido envolvidas na destruição de grãos porque o processo legislativo não tem respondido aos seus anseios. Em uma pesquisa a 16.000 em 15 Estados Membros em 2001, a Comissão anunciou que 75% da população categoricamente não queria transgênicos na cadeia de alimentos de forma alguma, e que a oposição tinha tendência a crescer à medida que as pessoas descobriam mais a respeito deles. Ainda assim, o critério é a “ciência sadia” e nós somos informados regularmente sobre nossas obrigações para com o comércio internacional. Os EUA têm pressionado a OMC para aceitar uma causa contra nós pelas estimadas perdas de US$ 4 bilhões em vendas ao ano em nosso mercado.


O que é interessante é que a companhia mais ativa nessa área na Europa, a Bayer, parou com todo o seu cultivo planejado de transgênicos na Inglaterra e Escócia – o País de Gales ilegalmente declarou-se “zona livre para os transgênicos” em 2000 e não foi forçado a cumprir a legislação no local. A sociedade civil agiu de maneira tal que os transgênicos não serão cultivados na Inglaterra e Escócia pelos próximos quatro anos. Grandes tentativas foram feitas na Inglaterra e Escócia por quatro anos, entre 1999 e 2003, e até os cientistas concluíram que todos os três grãos testados estavam causando prejuízo ao meio ambiente, mas o governo quis ir adiante de qualquer forma e autorizou seu cultivo. Nesse ponto, a sociedade civil organizou-se via Internet, empurraram os políticos para o lado e negociaram diretamente com as multinacionais, forçando-as para o campo aberto, onde não poderiam esconder-se atrás dos políticos. A promessa foi que cada transgênico plantado seria arrancado, e 10.000 pessoas assinaram esse compromisso organizado por um grupo que se autodenominou “Greengloves” (luvas verdes). Isso levanta duas questões: o poder do boicote e o fato de que a democracia representativa nos campos da lei e da tecnologia é uma hipocrisia.


A legislação de cima para baixo não funciona nessa área porque o público não tem sido incluído no processo decisório. Na Inglaterra, o governo promoveu um debate público no ano passado para parecer que ele estava escutando, mas foi uma grande farsa porque, por exemplo, quando eu levantei um ponto sobre patentes, os representantes das indústrias começaram a assoviar e o dirigente do debate não fez nada para aquietá-los. Se a Monsanto tivesse aparecido anos atrás e prometido desenvolver grãos que resistissem à seca e que testes de caráter fechado, ou restritos seriam feitos nos meio ambientes apropriados a fim de aliviar a fome, as pessoas teriam um sentimento diferente, mas nós não somos estúpidos. Nós sabemos que os transgênicos não são um caso de caridade ou boa vontade. O seu desenvolvimento, na maior parte, não está sendo patrocinado por governos. Tudo gira em torno de obter-se lucro e subjugar as pessoas – eis o porquê de tanta resistência.


Tem havido uma crescente polarização entre políticos e a sociedade – em alguns casos tal polarização promete tornar-se violenta. Eu creio que é porque o povo resiste instintivamente à colonização que está ocorrendo, e com a educação que a sociedade recebe hoje, você somente pode empurrá-la até certo ponto, ou então findará com uma revolução em suas mãos. Vamos voltar a alguns fundamentos: a democracia representativa existe porque o povo confiou sua representação aos políticos – se isso não está funcionando, a democracia participativa ocupa uma parte maior na sociedade e mais cedo ou mais tarde o povo começará a dizer: “sem representação não há tributação”.




DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA ÀS LEIS PARTICIPATIVAS: FORMALIZANDO AS LEIS INFORMAIS


A lei, bem como o processo legislativo, necessita de uma mudança radical. Ela deve perder sua posição hierárquica e tornar-se mais aproximada, mais participativa e mais representativa das pessoas que governa. Eu defendi uma tese sobre aspectos sócio-legais do Linux alguns anos atrás e concluí que o sistema de licenciamento era bastante vulnerável e que deveríamos, portanto, fixarmos nosso objetivo na criação de uma lei internacional harmonizada. Há modelos de lei “de baixo para cima” que servem como precedente para esse tipo de desenvolvimento: a lei de mercado é um bom exemplo. O tipo de atividade além-fronteiras facilitada pela Internet parece com aquela que costumava ocorrer nos shows de comércio europeus na Idade Média. Mercadores de diversas partes da Europa e Ásia encontravam-se nesses shows e negociavam. Não havia lei internacional governando tais atividades naqueles tempos, e assim os mercadores desenvolveram suas práticas negociais ou “leis”, as quais diziam o que poderiam ou não fazer. Essas “leis” eram um guia para suas atividades comerciais. Com o tempo, isso tornou-se extremamente respeitado na lei comercial de muitos países por todo o mundo – um perfeito exemplo de uma boa legislação “de baixo para cima”, onde os legisladores desempenhavam um papel de sustentação na proteção desses costumes. Isso é especialmente importante no caso de desenvolvimento de software.


Nos primeiros dias da Internet, muitos acadêmicos predisseram que leis similares à lei de mercado se desenvolveriam pela rede e, de fato, isso tem acontecido na comunidade ou nas comunidades de software livre. Grupos juntaram-se e criaram um recurso e havia alguns estritos “faça” e “não faça” sobre o que era um comportamento aceitável. Após a introdução do copyright, que era um tipo de colonização, eles recriaram seu recurso utilizando licenças de software livre. Estas eram como costumes transcritos – um registro escrito de suas práticas e objetivos. A GNU GPL em particular, operava em em dupla também com a lei de copyright. Isso se opunha ao seu caráter e ao mesmo tempo apoiava-se nele para criar uma lei bem diferente: o “copyleft”. Enquanto o copyright “reserva” todos os direitos, “copyleft” os “reverte”. De fato, copyleft é um híbrido legal, um tipo de lei ambidestra muito similar aos direitos morais nos países de lei civil, com um elemento extra – em vez de trancar as pessoas do lado de fora, ele as permite entrar, sob certas circunstâncias. A autoria geralmente é conferível a alguém, muito embora isso nem sempre aconteça, e as condições são que você não deve lucrar sem compartilhar o lucro e não excluir(o nome dos autores da versão anterior) quando publicar. É uma idéia bastante bíblica do “faça ao outros assim como quereis que vos façam a vós”.


No momento, falando legalmente e sócio-legalmente, a GNU GPL está num estágio muito interessante de seu desenvolvimento. Primeiramente, ela opera como um contrato social que une aqueles que desenvolvem software livre – isso é geralmente observado dentro das comunidades de software livre por causa das potenciais sanções às quais pode-se recorrer caso a licença não seja obedecida. Segundo, ela pretende ser uma licença de software de união ou interligação legal, como qualquer outra. Terceiro, Ela está sendo utilizada por grupos de software livre – tanto aqueles que desenvolvem quanto os que promovem – por todo o mundo, independentemente de jurisdição. Quarto, está sendo adaptada para a lei de cada país pelo projeto Creative Commons, da Stanford University – isso pode ser visto como um “tropicalismo” dessa licença. Quinto, eu conduzo um projeto em conjunto com o Consórcio de Software Livre, no qual estamos tentando aprovar uma lei de software livre, alinhada com o modelo já mencionado da lei de mercado. A princípio pensei que isso deveria ser aprovado pela mais alta corte legislativa internacional possível, mas então percebi que isso poderia ser feito no nível da Comunidade de Software, no nível nacional, regional e das comunidades também. Se o clima legal não for propício, as regiões ou municipalidades podem fazer uma declaração em favor desse tipo de legislação, o que poderá ser usado como uma forte ferramenta política.


O ATO DO SOFTWARE LIVRE: UMA RESPOSTA DEMOCRÁTICA PARA AS LEIS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL?


Pressões que o software livre sofre:


  1. Ações vexatórias por infração do copyright – SCO x IBM.


  1. Ações de patentes.


  1. Violação de licença:


a) Copyright não reconhecido – questões de autoria tais como: Quem escreveu o que e onde?

b) Cláusula de contrato não reconhecida.

  1. Violação em outra jurisdição onde a lei não se aplica.


  1. Fundos públicos sendo usados no desenvolvimento de software livre – ações judiciais vexatórias levam a uma publicidade negativa e podem terminar custando muito caro. Ameaças ao regime de licenciamento podem bloquear a adoção de software livre.


Soluções potenciais:


  1. Harmonizar a licença. Isso está sendo feito pelo Creative Commons e é uma solução parcial. Não atinge a questão da colaboração internacional para o desenvolvimento do software livre e não atinge a questão de patentes ou das ações judiciais vexatórias.


  1. Codificar a licença nacionalmente com a legislação e não com um contrato, a fim de unir terceiros, entendido que nenhum acordo tem de ser inserido. Isso deveria aplicar-se a todas as licenças de software livre, caso contrário poderia isolar a comunidade BSD (Berkerly Software Design).


  1. Oferecer proteção legal a todas as licenças, tanto por meio de harmonização ou codificação, e criar uma provisão padrão separada para qualquer um que não escolher uma licença. Isso poderia ser feito internacionalmente bem como nacionalmente. Blocos de comércio poderiam fazer uma declaração de suas intenções em relação ao software livre: um passo possível para o Mercosul?


  1. Se a licença não for legalizada, ela pode ser politizada com declarações estaduais e municipais.


O projeto do Ato do Software Livre teve início ano passado na Costa Rica, onde eu decidi começar a por em prática minhas teorias. Eu rascunhei a versão 1 do Ato do Software Livre, recolhi algum feedback e delineei as versões dois e três, as quais publiquei no Linux Journal e no Linux World. Acabei de fazer o projeto da versão 4, e esta se aproxima da completude de todos os termos que creio deveriam ser abordados. Nós, quero dizer, o Consórcio de Software Livre e eu estamos atualmente em diferentes estágios de discussão deste Ato com cinco instituições legislativas ao redor do mundo e o nosso objetivo é conseguir aprová-lo, uma vez que os ajustes necessários já foram feitos. As questões mais importantes são resistir à ameaça com relação a patentes, incluir os criadores de software livre no processo de elaboração e, por último, mas não menos importante, garantir que o software livre continue a crescer, florescer e substituir, sempre que possível, os softwares proprietários dispendiosos, instáveis e desnecessários.