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Aaron Swartz Enfrenta Ciberfariseus:
  O Primeiro Mártir da Ciberguerra


Pedro A. D. Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
  15 de Janeiro de 2013

[english version]


Começo a escrever aqui enquanto o funeral de Aaron Swartz acontece, na sinagoga central de Highland Park, nos arredores de Chicago, EUA, onde esse gênio da web nasceu há 26 anos. Escrevo, principalmente para quem ainda não conhece esse herói martirizado ou seu legado, pois o desfecho do seu enfrentamento contra forças avassaladoras de um farisaísmo cibernético cada vez mais dominante enquadra momento propicio para refletirmos sobre a dramática encruzilhada na História em que estamos todos vivendo, nesses nossos tempos.

De acordo com sua mãe, o compromisso de Aaron com justiça social era profundo, e definiu sua vida. Vida de programador, escritor, arquivista, organizador político e hacktivista. O ativismo de Aaron contribuiu, ainda adolescente, via RSS-DEV Working Group, na co-autoria da primeira versão do protocolo de sindicalização eletrônica RSS -- tecnologia "push" que prolifera a democratização do acesso a informação na web --, e depois, com a ferramenta livre de editoração web.py, com a arquitetura da Open Library, e com a incubação do portal Reddit, que inovou na agregação de notícias que circulam na web, incluindo avaliações de leitores sobre a qualidade das mesmas para classificações automáticas.

Contribuiu ainda com o RDF Core Working Group no W3C (World Wide Web Consortium), escrevendo a especificação RFC 3870, que define esse padrão de acessibilidade, e com a implementação da camada de automação, via meta-tags, das licenças genéricas permissivas para uso em obras autorais cujo autor deseje disponibilizá-la sob uma licença Creative Commons, no início desse movimento que popularizou globalmente a filosofia do Software Livre para outros regimes de produção intelectual. Os líderes desse movimento ele conhecera ao vencer, com idade de 13 anos, o concurso ArsDigita Prize, que premiou o melhor criador de "websites não-comerciais, úteis, educacionais e colaborativos."

Mas foram compromissos mais sérios que deram causa a seu enfrentamento com ciberfariseus. Ao invés de buscar, na esfera socioeconômica, o sucesso milionário que seu visionário gênio computacional permitiria, Aaron dedicou-se quase integralmente, na esfera político-acadêmica, a despertar consciências cidadãs e humanistas para o extremo perigo de certas conexões entre sorrateiros e soberbos interesses, viabilizadas pela mediação cibernética. Tal dedicação projetou-o como membro do Centro de Ética da Universidade de Harvard, fundador da ONG Demand Progress, e ativista dos grupos internacionais Rootstrikers e Avaaz.

Ira atiçada

Todavia, a ira de enfatuados moralistas que imoralmente exercem à sorrelfa poder ilegítimo, via de regra por interesseira radicalização normativa e absoluto porém seletivo rigor punitivo, já se atiçara antes: quando Aaron, com sua habilidade de programador, foi colaborar em pesquisa acadêmica envolvendo mineração de dados, depois publicada em revista científica. Quando antes liberou, baixando e postando num serviço de computação-em-nuvem, mais de 19 milhões de arquivos (20%) do repositório PACER (Public Access to Court Electronic Records), site na web gerido por uma agência estatal dos EUA que arquiva digitalmente documentos de processos julgados pela Justiça Federal dos EUA, e que vende acesso a estes mediante pagamento por página.

Tal republicação de cópias, doadas à ONG Public Resource, não viola direitos, como acabou reconhecendo uma investigação do FBI, pois a lei de copyright nos EUA classifica documentos não secretos de entidades estatais sempre como de domínio público. Em 2008 o diretor dessa ONG havia exortado outros ativistas a visitar qualquer das 17 bibliotecas que estavam oferecendo livre acesso ao PACER "em regime experimental" (logo após banido), para baixarem documentos e enviá-los à ONG, para distribuição pública. Aaron foi à do forum de Chicago, onde fez isso rodando um script Perl, mas o que ele queria não era apenas atender a esse apelo, destramelando o acesso a esse tipo de informação pública, como declarou aqui:

"Toda a herança do mundo científico e cultural, publicada através de séculos em livros e revistas, é cada vez mais digitalizada e trancada por umas poucas empresas privadas. Quem quiser ler os artigos que apresentam os resultados mais famosas das ciências vai assim precisar enviar enormes quantias a editoras como a Reed Elsevier. Mas há os que lutam para mudar isso. O Movimento de Acesso Aberto luta bravamente para assegurar que os cientistas não deleguem seus direitos autorais em troca de publicação, mas garantam que seus trabalhos sejam publicados na Internet sob termos que permitam a qualquer um acessá-lo sem restrições." [todas as traduções ao Português aqui por este autor]

Aaron queria também, com esse tipo de informação liberada, minerar correlações entre o financiamento de pesquisas acadêmicas e vieses em decisões judiciais, favoráveis a interesses dos mesmos financiadores, possibilitando a qualquer interessado verificar livremente os resultados que obtivesse. A pesquisa científica para a qual Aaron contribuiu, viabilizando, programando, sistematizando e permitindo a verificação irrestrita dessas correlações, mineradas em mais de 440 mil artigos "científicos", foi publicada no artigo "Punitive Damages, Remunerated Research, and the Legal Profession", na revista Stanford Law Review no final daquele ano.



Correlações mineradas

O resumo do referido artigo ilustra assim o que foi obtido:

"Um dia um professor de sociologia recebe em seu escritório um telefonema não solicitado de um representante de uma grande corporação que enfrentava uma devastadora sentença judicial de indenização punitiva. O interlocutor diz que a empresa está "explorando ... se é viável obter algo publicado em um jornal acadêmico respeitável dizendo que indenizações punitivas fazem mal à sociedade, ou como elas não são realmente uma boa medida." O interlocutor explica: "Quando recorrermos da sentença, podemos citar o artigo, e destacar que o professor fulano de tal disse nesta revista acadêmica, de preferência uma bastante prestigiada, que indenizações punitivas não fazem muito sentido." O professor era William Freudenburg, e a corporação era a Exxon, que contactou Freudenburg e uma série de outros estudiosos depois de condenada a pagar indenização de US$ 5 bilhões por danos ambientais decorrentes do derramamento de óleo do Exxon Valdez na costa do Alasca.
Esta prática, de solicitar e financiar pesquisas "para litigação", não é exclusiva da Exxon. Uma série de outros grupos, incluindo empresas e think tanks conservadores com mantenedores corporativos, continuam a financiar pesquisas com o objetivo de apresentar suas conclusões aos tribunais a fim de desacreditar vereditos que aplicam penas indenizatórias contra eles por danos causados. Este tipo de trabalho, de "pistolagem acadêmica" por encomenda, seria problemático mesmo se os resultados fossem precisos, pois a Corte Suprema reconheceu recentemente que eles geram aparência de parcialidade. Mas é ainda mais preocupante pelo fato de estudiosos proeminentes terem-nos desacreditado mostrando que vários artigos de doutrina jurídica financiadas pela indústria são metodologicamente falhos ..."

Porém a audácia de Aaron, em sua saga por justiça social, não arrefeceu aí. Pelo contrário. Sua iniciativa de fundar a organização Demand Progress culminava, a partir de 2010, um esforço de mobilização social, que começou com abaixo-assinados na web, em oposição ao projeto de lei COICA (Combating Online Infringements and Counterfeits Act), seguido de ano e meio de ativismo para ajudar a derrubar os sucedâneos SOPA e PIPA. Sobre essa derrubada, falei no VI Campus Party de São Paulo e escrevi o artigo "A SOPA Esfriou, mas Há o Prato Principal" em Fevereiro de 2012; e no evento F2C (Freedom to Connect - Washington DC, May 2012), em que foi palestrante honorário, o próprio Aaron resumiu assim:

"Há uma batalha acontecendo agora, uma batalha para definir tudo o que acontece na Internet em termos de práticas tradicionais que a lei entende ... [Sob SOPA] qualquer tecnologia nova, em vez de nos trazer maior liberdade, teria extinguido os direitos fundamentais que sempre tomamos por líquidos e certos...Ganhamos essa luta porque todo mundo se fez herói de sua própria história. Todo mundo tomou como seu o trabalho de salvar essas liberdades fundamentais."

Pesadelo inescapável

Aaron se referia à série de protestos contra o projeto SOPA promovidos por diversos sites -- incluindo Wikipedia e Google --, descrita pela Electronic Frontier Foundation como a maior da história da Internet, com mais de 115 mil sites alterando com alertas ou suspendendo acesso a suas páginas. Sobre o "prato principal" após o pesadelo da investida para se aprovar o SOPA no Congresso dos EUA, no mesmo discurso ele acrescentou:

"E isso vai acontecer de novo, com certeza, ele vai ter outro nome, e talvez uma desculpa diferente e, provavelmente, fazer o seu dano de uma maneira diferente, mas não se enganem, os inimigos da liberdade na era digital não desapareceram. O fogo nos olhos daqueles políticos não se apagou. Há um monte de gente, um monte de pessoas poderosas, que querem reprimir a Internet."

Noutras palavras, há muitos ciberfariseus que querem se apropriar da Internet. Inclusive para isso perseguindo ativistas que tentam minar tal intento. Especialmente hackativistas brilhantes, como ele e como Julian Assange, com o maior furor possível. Armados inclusive de artimanhas e mentiras absurdas, como se pode constatar. Quem pensa que o motivo-mor por trás da enorme pressão sobre governos em todo o mundo para aprovarem leis como COICA, SOPA e PIPA, tratados globais como o de Broadcast na OMPI, ACTA e TPP, ou seus precursores como o CFAA -- que encurralou Aaron até sua morte -- ou o AI-5 Digital -- que sob sorrateiras pressões entrincheiradas na convenção de Budapeste arremeda o CFAA no Brasil --, é a meta de combate ao cibercrime?

Quem ainda crê ou diz crer assim, ingerindo tal propaganda goebeliana como real, age se enganando ou para enganar. No nosso caso, isso pode ser constatado conhecendo-se as circunstâncias em que nasceu, e batizou-se como Lei, o AI-5 Digital. Nasceu sob impacto hediondo de outro cadáver inocente, este porém útil à real agenda desses poderosos, e batizou-se na carona de uma eventual nudez virtual de uma artista global, essa em trapaça ao acordo firmado com oponentes, para que a votação deste sucedesse a aprovação de um Marco Civil para a Internet. Quem entra nesse tipo de acordo crendo que o ciberfarisaímo pode ser aplacado, encontrará péssimas surpresas tentando fugir do pesadelo que há de vir.

Front jurídico

A Internet permite controlar fluxos, na esfera virtual e por for­ça de leis combinatórias, fluxos de significados através de fluxos de dados, mas também vem permitindo respon­sabilizar pessoas, no mundo da vida e por força de normas jurídicas, que operam es­ses fluxos ou são leva­das a agir por eles. Com essas leis e tratados cada vez mais severos e desequili­brados, negocia­dos de for­mas cada vez mais obs­curas, com tipos penais cada vez mais am­plos e va­gos, tornando o uso inepto ou atípico de formas digitais de acesso cada vez mais seletivamente perigoso, e es­sas normas cada vez mais questio­náveis sob qualquer ética universalista ou não-cética, mas alimentando a politização do Judiciário como aconteceu em crises passadas (via leis econômicas, na ascensão do nazismo). Trata-se, agora, dos fronts normativo e jurídico da ciberguerra.

Para encurralarem Aaron com a primeira dessas leis, bastou que o jovem entrasse num quartinho destrancado no MIT e lá conectasse seu laptop. Por outro lado, ninguém de direito se atreve a com elas encurralar soberbos poderosos que criam montões de dinheiro fajuto com meros cliques de mouse, disparando comandos em seus laptops conectados, verdadeiramente roubando do valor de reserva da moeda circulante assim defraudada, enquanto mantêm o mundo na atual crise econômica recitando feitiços, à guisa de se evitar "coisa pior". Quantitave Easing! Esses ciberfariseus seguem chantageando governos, e deles obtendo mais privilégios, enquanto jantam com pompas na Casa Branca e no Planalto, e -- pior -- enquanto vão ditando essas normas por detrás de portas trancadas.

Naquele fatídico quartinho do MIT, Aaron precipitou-se. Para destramelar obras científicas escritas há mais de cem anos, cujo direito de cópia nos é assegurado por elas já estarem em domínio público, ele não esperou por livre acesso "em regime experimental", desta vez ao site da JSTOR. Essa empresa ganha muito dinheiro catracalizando acesso a obras alheias escaneadas, mas seu "regime experimental" só surgiu, a conta-gotas, depois dele já estar encurralado, dias antes de sua morte. O limite de 30 acessos "permitidos" por mês, a pesquisadores de instituições que -- como o MIT -- pagam para usar tais catracas virtuais, inviabiliza pesquisas baseadas em mineração de dados. Regime injustificado, em caso de acesso a obras em domínio público, na ética e na lógica do ativista.

Assim, quando Aaron entrou no quartinho destrancado onde haviam roteadores da rede interna do MIT, exatos dois anos antes de sua morte, e lá plugou seu laptop para conectar-se dali com o site da JSTOR, que assim lhe franqueava acesso identificando o endereço de rede do MIT escolhido, desta forma desviando-lhe da identificação na rede interna que o tangeria para aquela catraca virtual, ele mordeu uma isca. Quando voltou depois para buscar seu laptop, para levar as cópias das obras em domínio público que seu script havia liberado selecionado-as e baixado-as entre as duas visitas, Aaron foi preso por agentes secretos. Foi então formalmente acusado, com as imagens de uma câmera oculta no quartinho como indício.

Incompatibilidade

Logo após sua prisão, o site da JSTOR divulgou nota afirmando que a empresa não iria processá-lo, mas Aaron só foi solto depois de pagar fiança de R$ 100 mil dólares. No aguardo do julgamento, depois marcado para Abril de 2013. Contra Aaron pesaram, até sua morte prematura, ao menos quatro imputações pelo CFAA, em processo penal conduzido pelos procuradores Stephen Heymann e Scott Garland: fraude eletrônica, fraude de computador, obter ilegalmente informação em computador protegido (por uma porta física destrancada numa instituição que lhe acolhera como pesquisador), e danos a um computador protegido (quais?), com suposta intenção de -- pasmem-se -- compartilhar arquivos, os muito baixados.

Deste caso emblemático, que envolveu auto-sacrifício humano para explicitar seu absurdo, a pedra já havia sido cantada várias vezes em críticas ao AI5 Digital: a artimanha fatal nessas leis, aplicável no caso, é descrever tipos penais em branco, mas preenchíveis: por regimes de uso de serviços controlados por barões da tecnologia digital em rede aberta. As extensões desses tipos penais assim se proliferam ad infinitum, junto com os meios disponíveis de prova de suas violações, inclusive intempestivos, enquanto os tipos que presumem responsabilidade objetiva de internautas inviabilizam eventuais meios de prova absolutória a indiciados. Como exemplifica, com cristalina objetividade, este caso. Caso de operação eficaz no front jurídico da ciberguerra, como veremos, executada com artimanhas que exploram sacralizada escassez artificial de bens simbólicos.

Depois de perceber esse absurdo, a JSTOR pediu ao General Attorney Office (GAO), encarregado de processá-lo, que arquivasse o caso, mas do MIT só se ouviu em público silêncio a respeito. O GAO prosseguiu com o caso, expandido a acusação para treze crimes. Questionada sobre a decisão, que ameaçava Aaron com punições de 1 milhão de dólares de multa e 35 anos em prisão federal, com um rótulo de criminoso substituindo seu laptop, a chefa do GAO de Massachussets, Carmen Ortiz, sem dar a menor bola para a cibergrilagem de obras científicas em domínio público que contextualiza o caso em tela, justificou-se assim à imprensa, em frase que mantenho no idioma original para não perder o trocadilho:

"Stealing is stealing, whether you use a computer command or a crowbar, and whether you take documents, data or dollars."

Imagino que a Sra. Ortiz não deva estar falando dos atos praticados por Aaron e seu laptop naquele quartinho. Não faria sentido... a menos que ela estivesse dominada por hipocrisia, cinismo e cara de pau em graus incompatíveis com a importância do seu cargo... mas com as quais cada vez mais se atrevem os ciberfariseus de plantão. Até leigos sabem que, para o Direito, "roubo" (stealing) significa, universalmente, privação forçada da posse de algo a quem de direito. A JSTOR não foi privada da posse dos documentos baixados: os "originais" escaneados continuam lá, imutaveis no mesmo site. Tanto que a própria JSTOR nega ter com isso sofrido roubo, de dados (o que seria isso?) ou do quer que seja, ou mesmo violação de seus direitos autorais. Os documentos copiados estão em domínio público, e por isso o ato praticado -- de copiá-los ao baixá-los -- é legal, e legítimo.

Ato falho?

Estivesse ela falando com uma só letra trocada na frase, tudo mudaria. Se a Sra. Ortiz dissesse "whether you use a computer command, and whether you Make documents, data or dollars", bem que faria sentido. Ela poderia estar então se referindo àqueles soberbos interesses que recitam feitços como o do quantitative easing, já que aí se está a fazer documentos que fazem dados (de "estoque" de moeda) que fazem dólares, prática que -- até leigos vitimados ou não por efeitos inflacionários sabem disso -- sempre rouba de verdade, do valor de reserva da moeda circulante. Se ela abrigar um módico de brios, e admitir possível ato falho em troca da letra M pela T, há um teste para decidir se ela leva ou não a sério a venda nos olhos da emblemática estátua da Justiça.

Simples: basta transferi-la para o cargo de xerife do SEC (Security and Exchange Commission) e cobrar dela o mesmo furor persecutório exibido com o caso ocorrido naquele quartinho, agora contra aqueles soberbos interesses que estão a fazer documentos que fazem dados (de estoque virtual de moeda) que fazem dólares (putrefantes), indo e vindo entre bancos centrais e corporações financeiras. Se ela não entender, desconversar, ou enfurecer-se como fez seu marido, que tuitou vitupérios contra a família de Aaron a respeito do funeral desse primeiro mártir cibernético, vale o princípio de Upton Sinclair -- é difícil fazer uma pessoa entender uma coisa quando o ganha-pão dela depende dela não entender essa coisa --, e o diagnóstico para a Sra. Ortiz se fecha: ciberfarisaísmo em estado falaz -- cujo sintoma definitivo é fluência no doublespeak descrito por Orwell.

Quem crer que o ciberfarisaísmo falaz é apenas desvio psicológico ou traço de caráter, toleráveis sob o relativismo moral dos nossos tempos, ou que esses tipos de distúrbio ainda ou já não fazem tanto mal à sociedade aqui, põe-se em rota de colisão com péssimas surpresas que o pesadelo vindouro nos trará. Pode até ser distúrbio, mas é também arma semiológica quando misturada com poder, eficaz no teatro de uma guerra cibernética cujas fronteiras, atores e alvos são indefiníveis fora do ciberespaço. No mundo real, "alvo" pode se encarnar em mim, que escrevo isto; e em você, que lê e acredita. Até no Brasil, pois essa arma-distúrbio é epidêmica e ubíqua. Na dúvida, constate aqui como o AI-5 Digital poderia ser operado sob fúria ciberfarisaica, e siga lendo.

Quem viveu a guerra fria no terceiro mundo, sob alguma implacável doutrina de "segurança nacional", tocada por lacaios dos poderosos referidos por Aaron no evento F2C, já conhece o roteiro. Esse roteiro se repete na ciberguerra, com novos rótulos, adjetivos, tipos penais e tipos de bruxas, decantando implícita doutrina agora de uma "segurança cibernética". Podemos constatar isso examinando o fluxo da mídia corporativa armado de filtro para falácias ciberfarisaicas. Quem, por exemplo, enfrenta quem na ciberguerra? Uma boa fonte aqui é o jornal favorito desses poderosos e lacaios, o Valor Econõmico. Em sua edição de 14/06/2011, com chamada na capa e matéria de página inteira, podemos ler -- e filtrar -- um recado, sobre a "nova preocupação dos governos" (com a ciberguerra):

Nova preocupação dos governos

Onde se lê, no quadro amarelo, "interesse dos hackers" (que o Brasil cada vez mais despertaria), bem que faria sentido "interesse de grandes potências". Afinal, por trás do agito insuflado na primavera árabe estão o petróleo e a geopolítica, por trás da tumulto no Mali está a maior reserva de minério de urânio do planeta, etc. Broncas por trás de nióbio, água doce, fronteiras agrícolas e reservas ecológicas virão a seu tempo. E quem pode vir a ser marcado como alvo real, por enquanto, fica indefinido no recado; exceto as neobruxas, pessoas que já estão marcadas como hacker-ativistas. Como Aaron, que já o estava seis meses antes do recado, e como Assange, também encurralado pela fúria ciberfarisaica mas ainda vivo, oito meses antes. Doublespeak aqui se lê no fato de inominados "hackers" estarem ativos, por exemplo, por trás do Sutxnet e sucedâneos.

Prosseguindo na leitura, alem dos dois citados que já viraram, qualquer internauta em tese pode virar alvo, pois, afinal, quem é que não tem "supostas aspirações ideológicas?"  Ideologia é como gosto, cada um tem a sua. No caso, maneira adquirida de ver e entender o mundo, e de nele agir. Mesmo os fariseus, originais ou cibernéticos, também tem a sua, mesmo inadmitida como tal. O que faz sentido aqui, então, seria a preocupação "de governos" com os que podem ter aspirações ideológicas conflitantes com as de quem se acha sócio ou dono desses governos. O que nos sugere uma direção a seguir na leitura, sobre a origem desse recado, repassado ao pé da letra pelo serviço midiático-corporativo preferido dos que se acham. Copiamos então mais dois trechos da matéria em tela, abaixo, sob proteção do direito assegurado pelo inciso III do art. 46 da Lei 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais vigente no Brasil).

O recado vem da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), aliança militar que inclui até a Turquia (no Mediterrâneo), e da qual se acham sócios ou donos os maiores executivos e financistas do complexo industrial-militar apontado pelo presidente Eisenhower depois da IIª Guerra Mundial. Para esses senhores da guerra, as fronteiras da guerra cibernética agora incluem, como alvos prioritários à caça, as neobruxas marcadas pelos serviços midiático-corporativos como hacktivistas. Dos traços dessa marca, grifados em amarelo ao lado, talvez só falte em mim o de recrutar colaboradores (os alunos tendem a resistir). De resto, defender causas como a liberdade de expressão advém do meu exercício profissional da liberdade de cátedra, prerrogativa da herança iluminista sob fogo cerrado no front jurídico da ciberguerra. O leitor que se desperte e se cuide, principalmente se herdar algo das minerações de Aaron.

O iluminismo refundou a democracia, em versão representativa, há pouco mais de 300 anos. Refundou-a com um hiato de dois milênios da versão original (grega), a qual não durara muito mais que isso (300 anos); portanto, sem nenhuma segurança empírica de permanência. O iluminismo inaugurou o predomínio de ideologias humanistas, que entendem o ser humano como centro ou referência da criação, da vida e da História. Sob elas a civilização prosperou, então, entronizando o acaso como fronteira de conquista, e a razão como força motriz e guia de valores na sua evolução. O progresso tecno-científico consequente nos trouxe, assim, sucessivas "revoluções" das quais a mais recente -- a digital -- fez brotar a Internet, seu fruto cada vez mais cobiçado. Em perspectiva, sintetizada na tabela abaixo, podemos especular como esse fruto cibernético vem a semear, ao amadurecer, as sementes da ciberguerra.

O que é a ciberguerra?

Podemos entender a ciberguerra como forma de contra-revolução digital, cujo resultado inexorável é precipitar a desintegração do processo civilizatório dominado por ideologias humanistas. Essa contra-revolução corrói por dentro a democracia representativa, com a toxicidade moral dos arsenais que operam em seus fronts normativo e jurídico. A Internet é a primeira rede digital aberta e global, horizontal em sua dimensão semiológica (todo interlocutor pode ser difusor), e nisso englobante; como tal, ela é instrumento insuperável ao mesmo tempo para liberdade intelectual e de controle social. Com tais promessas instrumentais, a soberba e a cobiça tendem a suplantar a razão no coração do homem, e a ciberguerra então se deflagra, como luta entre essas duas formas de ser do mais cobiçado fruto de poder que o empreendimento humano já produziu.
 
Todavia, através de seus profetas Deus nos revela que o humanismo é vaidosa idolatria, pois desespiritualiza o homem, pondo-o em lugar de seu Criador e assim afastando-o Dele. Guiado pelo humanismo o homem eventualmente se desarvora, tendo perdido seu rumo além da matéria, agora fiando-se no virtual para o seu "vôo de Ícaro". Para quem aprende, com o filósofo Gilles Deleuze, que "virtual" não é antônimo de "material", nem de "real", mas é a indistinguibilidade entre o real e o irreal, esse desarvoramento se revela. Quando as promessas do mais cobiçado fruto cibernético se desvanecerem, soprados que serão por escassez alimentar e energética (estas reais), a desintegração consequente, agudizada por corrosão moral no coração do homem, indicará tempo de colheita na fazenda dos sonhos humanos. Assim nos revelam vários profetas bíblicos, desde Joel, portanto desde bem antes da democracia grega nascer.

Para os que aceitam o evangelho de Cristo, essa colheita reserva esperança. Sobre o tempo que a indicará, tempo de pesadelos inescapáveis para os desarvorados, talvez o apóstolo Paulo não pudesse ter sido mais explícito do que foi, mais de dois mil anos antes, ao escrever a segunda carta a seu discípulo Timóteo. Encurralado numa prisão material enquanto aguardava a execução de sua sentença de morte física por pregar o que parece loucura aos incrédulos, o apóstolo dos gentios anunciava, por intermédio de seu discípulo:

"Considera o que digo, porque o Senhor te dará entendimento em tudo. Lembra-te de Jesus Cristo, ressurgido dentre os mortos, descendente de Davi, segundo o meu evangelho, pelo qual sofro a ponto de ser preso como malfeitor; mas a palavra de Deus não está presa. Por isso, tudo suporto por amor dos eleitos, para que também eles alcancem a salvação que há em Cristo Jesus com glória eterna." (II Tm 2:7-10)
"Sabe, porém, isto, que nos últimos dias sobrevirão tempos penosos; pois os homens serão amantes de si mesmos, gananciosos, presunçosos, soberbos, blasfemos, desobedientes a seus pais, ingratos, ímpios, sem afeição natural, implacáveis, caluniadores, incontinentes, cruéis, inimigos do bem, traidores, atrevidos, orgulhosos, mais amigos dos deleites do que amigos de Deus, tendo aparência de piedade, mas negando-lhe o poder. Afasta-te também desses... [que] Não irão, porém, avante; porque a todos será manifesta a sua insensatez." (II Tm 3:1-5,9)
"Porque virá tempo em que não suportarão a sã doutrina; mas, tendo grande desejo de ouvir coisas agradáveis, ajuntarão para si mestres segundo os seus próprios desejos, e não só desviarão os ouvidos da verdade, mas se voltarão às fábulas. Tu, porém, sê sóbrio em tudo, sofre as aflições, faze a obra de um evangelista, cumpre o teu ministério." (II Tm 4:3-5, A.R. 1967)

O legado de Aaron

Por fim, como relacionar tal ministério com esta batalha pessoal de Aaron? Primeiro, sua batalha nos ajuda a entender Deleuze, associando o mais sombrio no que o filósofo ensina às premonições de Kafka e Orwell, ensaiadas no contexto do apóstolo pela sofística e política farisaicas. Segundo, no ministério deste evangelho abundam mártires que, imitando o apóstolo que buscava imitar a Cristo, suportaram suas aflições em amor aos que podem alcançar pela fé sua bendita esperança -- neste caso, de vida eterna na salvação pelo sacrifício vicário de Jesus Cristo --, ao serem eles sacrificados pela fúria de fariseus, originais ou imitadores. Terceiro, Aaron pode não ter suportado as aflições advindas de ter ele minerado o que se profetiza em II Tm 4: 3-4, haja vista a forma em que participou do próprio sacrifício, tendo talvez antes buscado sua esperança na fé humanista.  

Termino de escrever isto no dia da cerimônia em sua memória celebrada na cidade onde ele morava e onde sacrificou-se. Cidade que a tradição humanista gosta de achar que é hoje a sede central de sua fazenda de sonhos, cidade cuja história está ligada à do povo escolhido que recebeu a vida de Aaron, quem por ela nos deu o seu legado. Como o véu sobre esse povo escolhido ainda não foi erguido para a segunda vinda do Messias, o legado de Aaron nos lembra outra mensagem do apóstolo Paulo, esta aos Romanos: "Sabemos que todas as coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito." (Rm 8:28) Quiçá então quando esse véu for erguido, o legado de Aaron contribua para seu povo reconhecer a verdadeira esperança bendita, na glória eterna do Filho de Deus que habitou entre nós, como profetizado.
   

Autor


Pedro Antonio Dourado de Rezende é professor concursado no Departamento de Ciência da Com­putação da Universidade de Brasília, Advanced to Candidacy a PhD pela Universidade da Cali­fornia em Berkeley. Membro do Conselho do Ins­tituto Brasileiro de Política e Direito de In­formática, ex-membro do Conselho da Fundação Softwa­re Li­vre América Latina, e do Comitê Gestor da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-BR). http://www.­pedro.jmrezende.com.br/sd.php


Direitos do Autor

Pedro A D Rezende, 2013:  Este artigo é publicado no portal do autor sob a licença disponível em http://creativecommons.org/licenses/by-nc/2.5/br/